Curso Introdução ao pensamento de Kant
Professora Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do dia 23.07.2006
Por Nícolas Pioccopi
“Pobres filhos da Terra” que somos, nunca freqüentaremos as coisas – é verdade. Mas essa é uma boa nova, pois tais coisas, afinal, como Hume tão bem viu, nunca ofereceriam relação necessária à inspeção de nosso espírito” (Lebrun, Gerard. ‘Hume e a astúcia de Kant’ In: Sobre Kant. Tradução de José Oscar de Almeida Marques; Maria Regina A. C. da Rocha; Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Edusp, Iluminuras, 1993, p. 12).
No último estudo leu-se e discutiu-se dois parágrafos do texto de Gerard Lebrun – “Hume e a astúcia de Kant’ – que trata do conhecimento que se pode possuir acerca de um objeto. “Pobres filhos da Terra que somos, nunca freqüentaremos as coisas” – diz Lebrun em seu texto.
O astrofísico Stephen Hawking em uma de suas entrevistas, neste ano, disse certa coisa que muito chama a atenção para este nosso problema de não termos ingresso para que possamos freqüentar as coisas. Hawking falava que a matemática que orienta os físicos em suas deduções e observações talvez teria de ser “re-inventada” - ou que pudesse ser encontrada uma nova forma de enxergar a mesma coisa - por não poder dizer exatamente a significação das coisas - o que, num futuro nada distante, poderia vir a causar um problema em nossas investigações acerca do universo. Da mesma forma, o problema dos movimentos que levou o filósofo grego do século IV a.C, Zenão de Eléia, a formular, entre outros paradoxos, o de “Aquiles e a tartaruga”, apontava para a necessidade de uma nova forma de pensar. Este paradoxo fala de uma corrida que Aquiles apostaria com uma tartaruga e esta começaria à frente numa distância de tantos metros de Aquiles - por este correr dez vezes mais rápido do que a tartaruga. Digamos que Aquiles começasse a corrida oitenta metros à frente da tartaruga. Quando é dado o sinal de largada ambos começam a correr. Quando começam a correr Aquiles percorre em um dado intervalo de tempo “t” os oitenta metros que a tartaruga tinha de vantagem dele e, neste mesmo intervalo de tempo “t” que Aquiles gastou para percorrer estes oitenta metros, a tartaruga andou mais oito metros para frente. Em virtude de Aquiles correr dez vezes mais rápido que a tartaruga, a distância percorrida pela tartaruga é a distância de Aquiles dividida por dez. Quando Aquiles percorre estes oito metros, a tartaruga anda mais estes oito metros divididos por dez, ou seja, caminha mais oitenta centímetros (0,8 metros) - e assim ao infinito. Zenão alega que Aquiles jamais conseguiria alcançar a tartaruga, o que certamente é um equívoco notório, visto que Aquiles, de fato, alcançaria a tartaruga e a ultrapassaria. O que resolveria este problema seria uma nova forma de raciocinar e que só foi concebida no século XVII por Leibniz e Newton. Até então nossa matemática não dava suporte para que pudéssemos conhecer os movimentos dos objetos visíveis a olho nu - como é o caso de Aquiles e a tartaruga - objetos de nossa experiência diária. Ambos tiveram que inventar uma nova matemática, um novo modo de ver as mesmas coisas, poder-se-ia dizer que “um novo método” e, dessa forma, foi possível que nós adentrássemos nos movimentos das, o que até então era a visão da época, engrenagens bem definidas que era o universo.
Porém, com o passar do tempo, as nossas observações e dúvidas foram aumentando até que chegamos às partículas elementares dos átomos e, portanto, a outras velocidades e distâncias. A mesma matemática, que antes era a principal ferramenta para calcular os movimentos dos objetos, ainda é usada tanto quanto antes. Porém, a idéia de universo já não é mais a mesma, ou seja, apareceram inúmeros outros objetos a serem observados e, portanto, a “física já não é mais a mesma”, quer dizer, surgiram problemas que esta matemática não é capaz de resolver “exatamente”. A idéia que se tem do início do universo, na verdade, é uma interpretação que se faz de cálculos cujo resultado final é uma divisão do tipo “um sobre zero”. Isso em matemática é um número infinito e, portanto, indefinido. Com base nisto dizemos que o universo era primariamente um ponto de “densidade infinita”. O que se pretende dizer aqui é que, apesar de termos raciocínios poderosos para a tentativa de compreensão dos objetos, de tornar a ciência dos mesmos sólida e verdadeira, em muitos casos esta ferramenta acaba por não servir plenamente e acabamos por precisar de algo mais para a compreensão dos objetos. Faltaria algo que desse a chance de especulação sobre tais objetos. Um exemplo da diferença entre a matemática e a física - de como a matemática é um raciocínio que usamos como ferramenta para tentar adentrar nos objetos - foi o que Lorentz disse ao refazer alguns cálculos de Galileu que diziam a respeito da velocidade relativa dos corpos: “Os cálculos estão certos, mas, não faço a mínima idéia do que estes querem dizer. Isto é matemática, enquanto matemática está certo.” Isso lembra muito o seguinte trecho do texto de Gerard Lebrun: “Se alguém, dizia Hume, pudesse abstrair tudo o que sabe ou viu, seria completamente incapaz, consultando apenas suas próprias idéias, de determinar que espécie de espetáculo o universo deve ser...” (Lebrun, Gerard. ‘Hume e a astúcia de Kant’. p. 12). Se pensarmos nas ciências a priori, nunca iremos chegar a conhecimento algum sobre o que é nosso meio, porém, o conhecimento delas, no plano delas, é exato e, portanto, são válidas independentemente de qualquer experiência. Todavia, estas são incapazes de nos dar a luz necessária ao esclarecimento de dada questão apenas por si mesma. Para tanto é necessário que haja um forte elo entre uma coisa e outra e que, sem ele, tudo tornar-se-ia uma questão de crença ou superstição. Este elo, ao menos no plano sensível, é o da causalidade, afirma Kant. Desta forma o ingresso para as coisas parece tornar-se mais acessível e este acesso se daria de modo especulativo - o que parece salvar a metafísica - e certamente dá um novo horizonte para a compreensão de dado objeto. Se, por um lado, Lorentz, ao consultar apenas suas idéias para tentar compreender o meio, ou seja, apenas consultar a matemática, não chegou a alguma conclusão acerca do nosso meio empírico, Einstein, por outro lado, ao interpretar dadas ocorrências dispostas no meio empírico de modo certamente especulativo e, ao relacioná-las com as conclusões de Lorentz, criou a teoria da relatividade.
sábado, setembro 16, 2006
quinta-feira, setembro 07, 2006
Crença, ficção ou superstição?
Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 08 de julho de 2006
Por Espinosa de Aquino
No encontro de 08 de julho de 2006, foram discutidos os seguintes pontos: 1. Leitura e discussão do relatório do encontro anterior elaborado por Fábio Roberto Zambrin. 1.1. Esclarecimentos sobre a distinção entre crença, ficção e superstição em Hume.
Inicialmente a diferença entre ficção e crença foi traçada com base na consideração segundo a qual a crença, comparativamente à ficção, representa um sentimento mais forte, mais intenso. A partir disso, levantou-se a questão sobre a diferença entre a “crença” de um indivíduo delirante em seres exóticos, como, por exemplo, a crença na existência de sereias ou a crença na existência de bovinos voadores, presumivelmente mais forte que a crença de um indivíduo normal na existência, digamos, dos anéis de saturno Mas deve-se considerar, como alertou a professora Marília, que acreditar em anéis de saturno ou em dinossauros tem relação com a difusão de informações que a autoridade da ciência nos oferece, na medida em que tais informações não se opõem a tudo que encontramos na experiência, ainda que de forma indireta. Penso que há aqui o peso da autoridade influenciando, com superioridade, as paixões e a imaginação. A professora Marília esclareceu também que, de acordo com Hume, o delirante está excluído da reflexão que distingue ficção de crença. Ela citou a Investigação sobre o entendimento humano (IEH) II § 1. Se o delirante tiver uma sensação mais forte que o indivíduo normal, ainda será ficção, pois o que ele acredita é fruto apenas de sua imaginação. Ou seja, Hume pensa, ao esclarecer os conceitos de ficção e crença, em termos de normalidade, vale dizer, em uma mente sã. Com efeito, poderíamos dizer que Hume se refere à experiência comum e não à experiência incomum de um homem delirante. Se entendi bem, o que a professora Marília quis dizer é que exemplos patologicamente extravagantes fogem do horizonte da vida comum, que é o horizonte da filosofia humeana. Sublinhe-se, aqui, o termo “patologicamente”, porque exemplos extravagantes de pessoas consideradas sãs cabem na teoria. É o caso dos fanáticos (num sentido frouxo) e dos supersticiosos. Pessoas que acreditam em santos, anjos-da-guarda ou coisas que o valham se encaixam na distinção, e esses exemplos podem ser considerados extravagantes.
Foi lido em apoio aos esclarecimentos mencionados, IEH V § 8, p. 69.
[...] toda crença relativa a fatos ou à existência efetiva de coisas deriva exclusivamente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro.
Leu-se também IEH V § 9-10:
Nada é mais livre que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhe possível inventar uma séria de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhes uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para si mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer, no qual acredite com a máxima certeza. Em que consiste então, a diferença entre ficção desse tipo e uma crença? Ela não repousa simplesmente em alguma idéia peculiar que estaria anexada às concepções que exigem nosso assentimento e ausente de todas as ficções reconhecidas como tais; [...].
[...] a diferença entre ficção e crença localiza-se em alguma sensação ou sentimento que se anexa à segunda, mas não à primeira, e que não depende da vontade nem pode ser convocado quando se queira.
Surgiu também a questão sobre por que dizemos, ou deveríamos dizer, conforme sugere o pensamento de Hume, que a existência de dinossauros é uma crença e não uma ficção. De acordo com a professora, essa dificuldade é resolvida se atentarmos para o fato de que na crença há uma sensação, o mesmo não ocorrendo com a ficção. Precisamos notar que os devaneios soltos da imaginação nunca serão sentidos por nós do mesmo modo que sentimos aquilo em que cremos.
Foi observado ainda que a perspectiva empirista de Hume parece prescindir de uma teoria da verdade, o que a própria distinção entre ficção e crença a partir da intensidade das sensações parece confirmar.
Após o tratamento desse ponto, passamos a discutir a diferença entre superstição e entusiasmo. Vimos que a superstição se refere ao medo de males desconhecidos [fraqueza e melancolia também] e o entusiasmo à esperança, ao orgulho, à presunção [e cálida imaginação]. Contudo, superstição e entusiasmo têm uma fonte comum, a saber, a ignorância.
Para a próxima reunião restou ainda a discussão sobre o tópico - destacado no relatório de Fábio Zambrin – sobre a liberdade ilusória. O próximo encontro retomará esse ponto e dará seqüência à leitura do artigo de Lebrun “Hume e a astúcia de Kant”, bem como ao estudo da CRP.
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 08 de julho de 2006
Por Espinosa de Aquino
No encontro de 08 de julho de 2006, foram discutidos os seguintes pontos: 1. Leitura e discussão do relatório do encontro anterior elaborado por Fábio Roberto Zambrin. 1.1. Esclarecimentos sobre a distinção entre crença, ficção e superstição em Hume.
Inicialmente a diferença entre ficção e crença foi traçada com base na consideração segundo a qual a crença, comparativamente à ficção, representa um sentimento mais forte, mais intenso. A partir disso, levantou-se a questão sobre a diferença entre a “crença” de um indivíduo delirante em seres exóticos, como, por exemplo, a crença na existência de sereias ou a crença na existência de bovinos voadores, presumivelmente mais forte que a crença de um indivíduo normal na existência, digamos, dos anéis de saturno Mas deve-se considerar, como alertou a professora Marília, que acreditar em anéis de saturno ou em dinossauros tem relação com a difusão de informações que a autoridade da ciência nos oferece, na medida em que tais informações não se opõem a tudo que encontramos na experiência, ainda que de forma indireta. Penso que há aqui o peso da autoridade influenciando, com superioridade, as paixões e a imaginação. A professora Marília esclareceu também que, de acordo com Hume, o delirante está excluído da reflexão que distingue ficção de crença. Ela citou a Investigação sobre o entendimento humano (IEH) II § 1. Se o delirante tiver uma sensação mais forte que o indivíduo normal, ainda será ficção, pois o que ele acredita é fruto apenas de sua imaginação. Ou seja, Hume pensa, ao esclarecer os conceitos de ficção e crença, em termos de normalidade, vale dizer, em uma mente sã. Com efeito, poderíamos dizer que Hume se refere à experiência comum e não à experiência incomum de um homem delirante. Se entendi bem, o que a professora Marília quis dizer é que exemplos patologicamente extravagantes fogem do horizonte da vida comum, que é o horizonte da filosofia humeana. Sublinhe-se, aqui, o termo “patologicamente”, porque exemplos extravagantes de pessoas consideradas sãs cabem na teoria. É o caso dos fanáticos (num sentido frouxo) e dos supersticiosos. Pessoas que acreditam em santos, anjos-da-guarda ou coisas que o valham se encaixam na distinção, e esses exemplos podem ser considerados extravagantes.
Foi lido em apoio aos esclarecimentos mencionados, IEH V § 8, p. 69.
[...] toda crença relativa a fatos ou à existência efetiva de coisas deriva exclusivamente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro.
Leu-se também IEH V § 9-10:
Nada é mais livre que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhe possível inventar uma séria de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhes uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para si mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer, no qual acredite com a máxima certeza. Em que consiste então, a diferença entre ficção desse tipo e uma crença? Ela não repousa simplesmente em alguma idéia peculiar que estaria anexada às concepções que exigem nosso assentimento e ausente de todas as ficções reconhecidas como tais; [...].
[...] a diferença entre ficção e crença localiza-se em alguma sensação ou sentimento que se anexa à segunda, mas não à primeira, e que não depende da vontade nem pode ser convocado quando se queira.
Surgiu também a questão sobre por que dizemos, ou deveríamos dizer, conforme sugere o pensamento de Hume, que a existência de dinossauros é uma crença e não uma ficção. De acordo com a professora, essa dificuldade é resolvida se atentarmos para o fato de que na crença há uma sensação, o mesmo não ocorrendo com a ficção. Precisamos notar que os devaneios soltos da imaginação nunca serão sentidos por nós do mesmo modo que sentimos aquilo em que cremos.
Foi observado ainda que a perspectiva empirista de Hume parece prescindir de uma teoria da verdade, o que a própria distinção entre ficção e crença a partir da intensidade das sensações parece confirmar.
Após o tratamento desse ponto, passamos a discutir a diferença entre superstição e entusiasmo. Vimos que a superstição se refere ao medo de males desconhecidos [fraqueza e melancolia também] e o entusiasmo à esperança, ao orgulho, à presunção [e cálida imaginação]. Contudo, superstição e entusiasmo têm uma fonte comum, a saber, a ignorância.
Para a próxima reunião restou ainda a discussão sobre o tópico - destacado no relatório de Fábio Zambrin – sobre a liberdade ilusória. O próximo encontro retomará esse ponto e dará seqüência à leitura do artigo de Lebrun “Hume e a astúcia de Kant”, bem como ao estudo da CRP.
sábado, setembro 02, 2006
Postulados da razão pura prática
Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 19 de agosto de 2006
Por Espinosa
No encontro de 19 de agosto de 2006, foram discutidos os seguintes pontos:
1. Leitura e discussão do relatório do encontro de 15 de julho de 2006, elaborado por Carlos Nadalim.
2. Digressão sobre como ler textos filosóficos
3. Esclarecimento sobre dúvida do último encontro acerca da relação entre transcendental e experiência
4. Esclarecimentos gerais sobre o papel das idéias de Deus, alma e liberdade na filosofia kantiana.
■ 1) Foram feitas algumas observações corretivas ao relatório. Estas observações foram pontuais. Foi salientado pela professora Marília a excelente qualidade do texto redigido por Carlos Nadalim.
■ 2) Argumentou-se que devemos ler os autores de filosofia como se eles estivessem querendo dizer o que disseram. Apenas quando esse método de leitura não prosperar, estamos autorizados a recorrer a interpretações que levem em conta elementos subjacentes ao que o texto registra. Um autor como Kant permite tranqüilamente que pratiquemos, em geral, a leitura de suas obras supondo que o que ele escreveu era o que ele queria de fato dizer. Autores que se servem, por exemplo, de alegorias e ironias com freqüência devem ser lidos com mais cuidado, talvez se justificando, nesse caso, o recurso a uma interpretação que não se prenda apenas ao que o texto diz. Destacam-se, entre esses autores, Platão e Hume.
■ 3) Na CRP Kant afirma:
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori (CRP B 25. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Assim, pode-se dizer que a experiência tem como apoio metafísico o transcendental (o termo metafísico é usado aqui no seu sentido crítico, não dogmático ou tradicional). Não há experiência sem princípios do entendimento e formas puras da intuição. Vale citar uma ilustrativa passagem dos Prolegômenos:
A palavra transcendental [...] não significa o que ultrapassa a experiência, mas o que a precede (a priori), para mais nada determinado a não ser tornar possível o conhecimento da experiência. Quando tais conceitos ultrapassam a experiência, então seu uso é transcendente, distinto do imanente, isto é, o uso limitado à experiência” (Proleg. p. 93, n. 31. Tradução de Tânia Maria Bernkopf. Os Pensadores, 1980).
■ 4) Antes de esclarecer o papel das idéia de Deus, alma e liberdade, foi assinalado preliminarmente que é um equívoco pensar que as três críticas de Kant respondem, respectivamente, aos problemas do conhecimento, moralidade e estética. É um erro, pois a CRP não trata apenas do conhecimento e CFJ não trata apenas da estética. Argumentou-se que as três idéias dizem respeito aos postulados da razão pura prática e, em especial, Deus e imortalidade da alma funcionam como requisitos conceituais para se pensar no conceito de sumo bem, que é a conjunção necessária entre virtude e felicidade. Essa tese é questionável e alguns problemas foram levantados. Como podemos pensar em felicidade para um ser não sensível, como se supõe devam ser as almas? Deus e alma não funcionariam, no fundo, como móbiles da ação, tendo em vista o desejo de felicidade acalentado por todos os seres humanos? Sobre esse segundo problema foi citada uma passagem da CRP B 841-42 em que Kant parece de fato sucumbir a uma moral heterônoma. Vale citar a passagem.
É necessário que todo o curso de nossa vida seja subordinado a máximas morais; por outro lado, é simultaneamente impossível que isto aconteça se a razão não conectar com a lei moral, a qual é uma simples idéia, uma causa eficiente que determine ao comportamento conforme àquela lei um êxito exatamente correspondente aos nossos fins supremos, seja nesta vida, seja numa outra. Portanto, sem um Deus e sem um mundo por ora invisível para nós, porém esperado, as magníficas idéias da moralidade são, é certo, objetos de aprovação e admiração, mas não molas propulsoras (aber nicht Triebfedern) de propósitos e de ações, pois não preenchem integralmente o fim que é natural a cada ente racional e que é determinado a priori, e tornado necessário, por aquela mesma razão pura (CRP B 840-841. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Foi alertado, porém, que esse ponto de vista foi abandonado por Kant na Fundamentação com a tese da autonomia da vontade. Para o Kant da moral autenticamente crítica – que parece não ser o caso do Cânon da CRP – a lei moral não é apenas o princípio de conhecimento, mas também princípio de execução, isto é, móbil das ações morais. Sublinhe-se que a lei moral é o único e suficiente móbil da ação moral.
Com respeito à primeira questão, isto é, como pensar em felicidade – que é um componente do sumo bem – para seres não físicos, como se presume devem ser as almas, o grupo não chegou a nenhuma conclusão positiva. Pareceu a todos que Kant deveria ter se explicado melhor.
domingo, agosto 20, 2006
Fragmentos de um discurso amoroso
Hoje resolvi acrescentar ao meu blog (na postagem logo abaixo) algo que tem me feito muita falta: LITERATURA! Sou, de fato, uma amante da filosofia, mas como meu coração é bem grande, cabe-lhe também amar a literatura. E há tempos, por conta das exigências da filosofia (que com muito gosto e prazer eu procuro satisfazer) e da vida corrida (que nem sempre tenho gosto e dou conta de satisfazer), tenho negligenciado esse meu amor. Chegou a hora de me redimir. Para tanto, apresento aqui, alguns fragmentos inspirados nos "Fragmentos de um Discurso Amoroso" de Roland Barthes.
Para quem não conhece, esse livro contém essencialmente a figura do enamorado “que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala”. Quando eu os escrevi (na verdade, fiz um recorte dos fragmentos), vivia essa figura completa e desesperadamente enamorada. Sentia-me no turbilhão de uma crise dolorosa, mórbida, da qual eu precisava me curar. Na ausência e esfacelamento do meu amor, buscava fragmentos que pudessem recompô-lo. Precisava de uma trégua, de adocicar meu coração, pois não suportava mais minha própria amargura. Assim, eu procurava incessantemente um lenitivo. E foi na literatura do discurso amoroso que o encontrei, ainda que apenas de modo fugaz. Leia aqui: http://mariliacortes.blogspot.com.br/2006/08/fragmentos.html
Fragmentos dos fragmentos
Nota explicativa
sexta-feira, agosto 18, 2006
A rainha metafísica
O texto abaixo consite em anotações feitas durante as aulas do Curso de Introdução ao pensamento de Kant.
Relatório do encontro de 17 de junho de 2006.
Profª. Marília Côrtes de Ferraz.
Por Carlos F. de Paula Nadalim
(obs: Os relatórios não obedecem necessariamente uma ordem seqüencial das aulas).
Retomando as discussões realizadas na aula precedente, continuamos nossas análises sobre o parágrafo 4 do prefácio A da Crítica da Razão Pura. Anteriormente, vimos o abalo denunciado por Kant, que a senhora das ciências – a Metafísica - recebera através dos ataques desferidos principalmente por Hume. Ora, se as percepções dos sentidos captam impressões sensíveis, e as transformam em idéias, a chamada “Metafísica” teria seu nascedouro nas constatações empíricas. Ou seja, seriam apenas cópias de impressões, sem um referencial exterior a elas. Estas impressões, para Hume, transformadas em idéias pela mente, não possuiriam outra origem senão das próprias impressões sensíveis. Logo, a validez da metafísica, partindo de tais pressupostos, encontrar-se-ia em maus lençóis pelo fato de ter suas bases epistemológicas colocadas em xeque.
As dúvidas levantadas sobre o texto pairaram sobre o seguinte trecho:
“Embora essa suposta rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experiência comum e, por isso, com justiça, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigências, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada falsamente e, assim, a metafísica continuou a afirmar as suas pretensões; pelo que de novo tudo caiu no dogmatismo arcaico e carcomido e, finalmente, no desprestígio a que se tinha querido subtrair a ciência. Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências, mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências...” (CRP A IX-X).
Kant estaria se referindo a quais ciências? Seriam as ciências denominadas metafísicas? Ou as chamadas empíricas? Ou ainda àquelas a priori como a matemática, e a física pura? No parágrafo terceiro, encontramos uma possibilidade de resolução do problema. O mesmo nos ensina: “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras...” (CRP A VIII). Num primeiro momento, teríamos a tendência de contrapor, pela leitura do texto em tela, a ciência (metafísica) de um lado e as demais ciências (empíricas) do outro. Contudo, tal solução aparenta-se precipitada ao constatarmos, no parágrafo VI da introdução da Crítica da Razão Pura afirmações obscuras sobre tal diferenciação categórica. Se considerarmos a razão pura como aquela onde se encontram proposições metafísicas, independentemente da experiência, as ciências empíricas estariam dentro de tal classificação. Nelas, encontraríamos, segundo Kant, princípios a priori e a posteriori. Assim, a meu ver, parece que as ciências possuem princípios metafísicos por excelência para Kant, pois se encontram permeadas daquilo que Hume não havia percebido, a saber, juízos sintéticos a priori.
O segundo ponto levantado encontra-se no início do quinto parágrafo. A discussão se fundamenta na idéia de que aqueles indiferentes quanto às questões da razão seriam indiferentes a si mesmos, tendo em vista a existência do sujeito se pautar justamente nela. Logo, ao ser indiferente às questões suscitadas pela razão, mesmo adotando uma linguagem menos rigorosa para isso, o indiferentismo acaba sendo não-indiferente, na medida em que tais representações, afirmativas ou negativas sobre a importância de tais questões, acabam sendo questões sobre a questão da razão em si.
Relatório do encontro de 17 de junho de 2006.
Profª. Marília Côrtes de Ferraz.
Por Carlos F. de Paula Nadalim
(obs: Os relatórios não obedecem necessariamente uma ordem seqüencial das aulas).
Retomando as discussões realizadas na aula precedente, continuamos nossas análises sobre o parágrafo 4 do prefácio A da Crítica da Razão Pura. Anteriormente, vimos o abalo denunciado por Kant, que a senhora das ciências – a Metafísica - recebera através dos ataques desferidos principalmente por Hume. Ora, se as percepções dos sentidos captam impressões sensíveis, e as transformam em idéias, a chamada “Metafísica” teria seu nascedouro nas constatações empíricas. Ou seja, seriam apenas cópias de impressões, sem um referencial exterior a elas. Estas impressões, para Hume, transformadas em idéias pela mente, não possuiriam outra origem senão das próprias impressões sensíveis. Logo, a validez da metafísica, partindo de tais pressupostos, encontrar-se-ia em maus lençóis pelo fato de ter suas bases epistemológicas colocadas em xeque.
As dúvidas levantadas sobre o texto pairaram sobre o seguinte trecho:
“Embora essa suposta rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experiência comum e, por isso, com justiça, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigências, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada falsamente e, assim, a metafísica continuou a afirmar as suas pretensões; pelo que de novo tudo caiu no dogmatismo arcaico e carcomido e, finalmente, no desprestígio a que se tinha querido subtrair a ciência. Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências, mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências...” (CRP A IX-X).
Kant estaria se referindo a quais ciências? Seriam as ciências denominadas metafísicas? Ou as chamadas empíricas? Ou ainda àquelas a priori como a matemática, e a física pura? No parágrafo terceiro, encontramos uma possibilidade de resolução do problema. O mesmo nos ensina: “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras...” (CRP A VIII). Num primeiro momento, teríamos a tendência de contrapor, pela leitura do texto em tela, a ciência (metafísica) de um lado e as demais ciências (empíricas) do outro. Contudo, tal solução aparenta-se precipitada ao constatarmos, no parágrafo VI da introdução da Crítica da Razão Pura afirmações obscuras sobre tal diferenciação categórica. Se considerarmos a razão pura como aquela onde se encontram proposições metafísicas, independentemente da experiência, as ciências empíricas estariam dentro de tal classificação. Nelas, encontraríamos, segundo Kant, princípios a priori e a posteriori. Assim, a meu ver, parece que as ciências possuem princípios metafísicos por excelência para Kant, pois se encontram permeadas daquilo que Hume não havia percebido, a saber, juízos sintéticos a priori.
O segundo ponto levantado encontra-se no início do quinto parágrafo. A discussão se fundamenta na idéia de que aqueles indiferentes quanto às questões da razão seriam indiferentes a si mesmos, tendo em vista a existência do sujeito se pautar justamente nela. Logo, ao ser indiferente às questões suscitadas pela razão, mesmo adotando uma linguagem menos rigorosa para isso, o indiferentismo acaba sendo não-indiferente, na medida em que tais representações, afirmativas ou negativas sobre a importância de tais questões, acabam sendo questões sobre a questão da razão em si.
domingo, julho 16, 2006
Liberdade e determinismo I
Por Nicolas Piocoppi
Os dois textos a seguir são observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Côrtes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.
Os dois textos a seguir são observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Côrtes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.
O tema “liberdade” que foi discutido no último estudo pode ser também entendido como uma relação de causa e efeito quando se pensa na liberdade de vontade e na liberdade da ação. Para a liberdade da vontade pensa-se, obviamente, em uma vontade livre de qualquer “determinação” anterior a seu surgimento – da vontade – o que é certamente complicado de se pensar, pois nossos desejos estão entrelaçados com “n” determinações dispostas no meio externo. Parece, de fato, que o meio externo é verdadeiramente aquilo que “determina” a vontade. Se morássemos em um lugar de breves dimensões – o que não deixa de ser verdade – desde o nosso nascimento, e nunca conhecêssemos nada “diferente” do local, não teríamos vontade de ir aonde não conhecemos e se não conhecemos tal coisa poder-se-ia dizer que é como se tal coisa não existisse. Há também a problemática das leis da natureza que determinam nossas rotinas e nosso modo de viver e, além disso, também determinam o que somos hoje. Se você vai à loja de sapatos e, ao analisar cada modelo de sapato acaba por ficar em dúvida entre um e outro, e digamos que um seja de cor verde e o outro de cor branca, certamente a sua escolha será para aquele que “agrade mais a sua vista” – ou o bolso dependendo do caso – e esse “agradar” certamente é o que “gera a vontade” de levar tal produto. Porém, nossos gostos são determinados por “n” fatores, sejam os fatores sociais como a moda, sejam outros fatores tradicionais familiares. Quer dizer, até mesmo fatores genéticos imperam em nossos gostos - como os da cor, tamanho, forma ou cheiro de cada um.
Por outro lado, a liberdade é também uma questão metafísica; se admitíssemos a idéia de Deus, ou deuses, fatalmente nos perguntaríamos se Deus conhece o futuro – como Santo Agostinho em seu tempo se perguntou. Se admitirmos que sim, teremos de arcar com a problemática de que toda ação e toda liberdade que se comete é já pré-destinada a ocorrer e, dessa forma, o livre-arbítrio tornar-se-ia apenas uma expressão alegórica encontrada nos livros religiosos. Se perguntarmos se Deus conhece o futuro e encontrarmos nas escrituras uma resposta para tal questão, se a resposta for positiva, talvez devêssemos perguntar: qual é a validade de toda a história nela contida? Pois certamente poderíamos considerar todas as ações e discursos proferidos no determinado livro, vazios e sem sentido.
sábado, julho 15, 2006
Liberdade e determinismo I I
Por Nicolas Piocoppi
Também com os gregos, nos tempos do “nascimento de sua tragédia”, o destino fora um tema bastante discutido como nos mostra o clássico grego Édipo Rei escrito por Sófocles em torno do século IV a.C. Nessa obra, Laio, o rei de Tebas, é advertido pelo oráculo de Delfos sobre o trágico acontecimento de que seu filho iria matá-lo e, em seguida, casaria com sua mulher. Diante desse mau presságio, Laio tenta matar o filho Édipo quando este é recém nascido pregando seus pés e largando-o numa estrada afastada do seu reino. Anos mais tarde, ao retornar para Tebas sem saber que era a cidade onde nasceu e quem é seu pai, Édipo, em uma briga com o próprio pai acaba por matá-lo e, mais tarde, casa-se com sua mãe, também sem saber quem era esta. Neste exemplo de Édipo a liberdade da vontade parece ser completamente possível ao passo que a liberdade da ação não, pois o destino, que era representado como um deus, imperava entre humanos e em suas relações diárias e não só entre humanos, mas também sobre os deuses e até mesmo sobre o próprio Zeus – Deus dos deuses na mitologia grega. Portanto todos eles poderiam livremente sentir vontade para qualquer coisa, mas suas ações eram todas pré-destinadas.
Contudo, seria a idéia de destino tal qual os gregos pensavam de fato uma “má” observação acerca das coisas? Se pensarmos na natureza e analisarmos a idéia da grande explosão – big bang – tudo no universo outrora fora um ponto infinitamente pequeno e de densidade infinitamente grande que quando explodiu lançou todas as peças do quebra-cabeça no espaço-tempo. Newton se admitisse a idéia de começo dos tempos e das coisas, certamente diria que uma ação efetuada no passado como, por exemplo, impulsionar uma corda esticada e com isso produzir uma ondulação na mesma, certamente essa ação se refletiria em todos os “pontos” do futuro que, nesse caso, seria o mesmo que uma pessoa que estivesse do outro lado da ponta da corda percebesse a ondulação na corda tempos depois. É claro, a lei de Newton que diz que “para toda ação existe uma reação de igual ou maior intensidade” descreve um pensamento inteiramente determinista, o que não é completamente aceito na atual ciência da natureza. Com o advento dos princípios da mecânica quântica a idéia que se tem das coisas é que se alguém efetuar um impulso na mesma corda citada anteriormente, não necessariamente alguém do outro lado receberá a ondulação provocada inicialmente e, assim, tudo tornar-se-ia uma questão probabilística. O que nos remete de certo modo às idéias de David Hume. Neste caso seria possível, pois, driblar as “imposições” do primeiro e “extraordinário” acontecimento. Mas aí, como diz uma personagem de um filme chamado “Waking Life”, teríamos de nos perguntar se a liberdade consiste em um cálculo probabilístico de acontecimentos. Talvez, se se pensar em um determinismo na óptica newtoniana, seja mais possível conceber a idéia de liberdade, ainda que haja todo o determinismo a agir sobre cada um, ou todo o destino.
Conhecimento em Hume e Kant
Por Nicolas Piocoppi
O texto a seguir consiste em observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Cortes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.
Podemos afirmar que, quando pensamos nos conceitos “causa e efeito”, nossa mente cria um certo círculo vicioso de modo quase imperceptível. Para todo efeito existe uma causa e toda causa gera um efeito ─ o que significa que ambos os termos estão intimamente ligados um com outro. Porém qual seria esta ligação? Fatalmente Hume perguntaria ao sujeito quando este afirmasse a idéia da causa sobre o efeito observado. No exemplo da bola de bilhar Hume pergunta se a noção de impulso já está contida no simples movimentar da bola de bilhar sobre a mesa, e se dissermos que sim, que já está, fatalmente caberia indagar o que é que nos leva a afirmar tal coisa. Responder-se-ia, talvez: “ora a bola de bilhar precisa de um impulso para que possa se movimentar”, todavia esquece-se da possibilidade da mesa estar “torta” e haver uma certa inclinação de tantos graus de modo que cause o “movimentar da bola” ou, ainda, como disse Lebrun no texto “Hume e a astúcia de Kant”; “você poderá, vencido pelo cansaço, invocar a sua experiência passada e a de todos os homens” para justificar a idéia de impulso sobre a bola. Do mesmo modo pergunta-se se a cena que descreve uma explosão de uma casa contém já a idéia de bomba ou atentado. Hume diz que não, pois há tantas possibilidades de explosão quanto se pode imaginar e a de bomba é apenas uma delas. Desta forma, como é notório, a ciência em geral é praticamente reduzida à mera crença, pois trabalharia com as mesmas afirmações e o que diferenciaria uma simples crença de uma “crença científica” é que a ciência iria testar mais vezes o mesmo objeto antes de atribuir tal crença.
Kant ao descrever a idéia de um conhecimento sintético a priori parece retirar a ciência destes “maus lençóis” a que o ceticismo humeano a havia colocado e, portanto, perguntar-se-ia; é possível determinar a priori uma ligação de causa e efeito entre dois acontecimentos? Certamente que ao escrever um romance o sujeito que o escreve tem todo o conhecimento acerca das relações espaciais, cronológicas (condições físicas do ambiente em geral), psicológicas, etc, que as respectivas personagens da trama toda possuem. Deste modo qualquer relação de causa e efeito dita por este escritor sobre o romance tem completa valia, pois é ele quem determina todos os acontecimentos no mesmo. De forma análoga eu posso afirmar que um certo número “y” é igual a outro número “p” mais outro número “f” multiplicado por “x” e desta forma eu obtenho uma função simplória do primeiro grau de forma “y = p+ f.x”. A partir deste momento que estabeleço regras para a obtenção de y eu indico as relações necessárias para que se obtenha o mesmo – que nesse caso depende das incógnitas “f”, “x” e “p”. Como é uma função simples de uma única variável apenas, portanto, uma das três incógnitas citadas poderá ser entendida como sendo uma variável. Supõe-se que x seja a variável; “y” imediatamente torna-se uma “função” dessa variável x. Portanto, qualquer valor futuro de “x” acarretará imediatamente um efeito que neste caso será o de “dar valor a y”.
Deste modo, parece ser completamente possível que exista uma “ligação” entre “idéias” oriundas das observações acerca de dado objeto e assim é possível conhecer, por exemplo, a intensidade e dimensões de um campo elétrico, ou gravitacional ou eletromagnético a agir em determinado meio por simples questões de “causa e efeito” que têm a ver com as propriedades dos objetos que estejam a ser estudados.
O texto a seguir consiste em observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Cortes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.
Podemos afirmar que, quando pensamos nos conceitos “causa e efeito”, nossa mente cria um certo círculo vicioso de modo quase imperceptível. Para todo efeito existe uma causa e toda causa gera um efeito ─ o que significa que ambos os termos estão intimamente ligados um com outro. Porém qual seria esta ligação? Fatalmente Hume perguntaria ao sujeito quando este afirmasse a idéia da causa sobre o efeito observado. No exemplo da bola de bilhar Hume pergunta se a noção de impulso já está contida no simples movimentar da bola de bilhar sobre a mesa, e se dissermos que sim, que já está, fatalmente caberia indagar o que é que nos leva a afirmar tal coisa. Responder-se-ia, talvez: “ora a bola de bilhar precisa de um impulso para que possa se movimentar”, todavia esquece-se da possibilidade da mesa estar “torta” e haver uma certa inclinação de tantos graus de modo que cause o “movimentar da bola” ou, ainda, como disse Lebrun no texto “Hume e a astúcia de Kant”; “você poderá, vencido pelo cansaço, invocar a sua experiência passada e a de todos os homens” para justificar a idéia de impulso sobre a bola. Do mesmo modo pergunta-se se a cena que descreve uma explosão de uma casa contém já a idéia de bomba ou atentado. Hume diz que não, pois há tantas possibilidades de explosão quanto se pode imaginar e a de bomba é apenas uma delas. Desta forma, como é notório, a ciência em geral é praticamente reduzida à mera crença, pois trabalharia com as mesmas afirmações e o que diferenciaria uma simples crença de uma “crença científica” é que a ciência iria testar mais vezes o mesmo objeto antes de atribuir tal crença.
Kant ao descrever a idéia de um conhecimento sintético a priori parece retirar a ciência destes “maus lençóis” a que o ceticismo humeano a havia colocado e, portanto, perguntar-se-ia; é possível determinar a priori uma ligação de causa e efeito entre dois acontecimentos? Certamente que ao escrever um romance o sujeito que o escreve tem todo o conhecimento acerca das relações espaciais, cronológicas (condições físicas do ambiente em geral), psicológicas, etc, que as respectivas personagens da trama toda possuem. Deste modo qualquer relação de causa e efeito dita por este escritor sobre o romance tem completa valia, pois é ele quem determina todos os acontecimentos no mesmo. De forma análoga eu posso afirmar que um certo número “y” é igual a outro número “p” mais outro número “f” multiplicado por “x” e desta forma eu obtenho uma função simplória do primeiro grau de forma “y = p+ f.x”. A partir deste momento que estabeleço regras para a obtenção de y eu indico as relações necessárias para que se obtenha o mesmo – que nesse caso depende das incógnitas “f”, “x” e “p”. Como é uma função simples de uma única variável apenas, portanto, uma das três incógnitas citadas poderá ser entendida como sendo uma variável. Supõe-se que x seja a variável; “y” imediatamente torna-se uma “função” dessa variável x. Portanto, qualquer valor futuro de “x” acarretará imediatamente um efeito que neste caso será o de “dar valor a y”.
Deste modo, parece ser completamente possível que exista uma “ligação” entre “idéias” oriundas das observações acerca de dado objeto e assim é possível conhecer, por exemplo, a intensidade e dimensões de um campo elétrico, ou gravitacional ou eletromagnético a agir em determinado meio por simples questões de “causa e efeito” que têm a ver com as propriedades dos objetos que estejam a ser estudados.
terça-feira, julho 11, 2006
Ainda sobre a ordem e o caos
Caro Diego
Receio que nosso acordo não seja tão grande quanto você pensa. Gostaria de insistir num ponto. Você afirma que “ao menos não existe um caos tamanho que possibilite o surgimento de matéria”. Essa, a meu ver, é uma afirmação temerária, pois, na verdade, podemos afirmar apenas que não temos a experiência de ver a matéria surgir de tamanho caos, e não de que ele, de fato, não exista. Temos sim a experiência das transformações da matéria, mas a origem desta permanece oculta às nossas percepções. Não entendo por que você considera o argumento da subjetividade humana válido, mas, ao mesmo tempo, abominável em relação às leis físicas e químicas. Não estou segura, mas parece-me que a física quântica já admite a possibilidade de que não haja imparcialidade do sujeito em relação aos movimentos das partículas atômicas. Também não vejo como se possa demonstrar que se partirmos do pressuposto de que em tudo há subjetividade humana deveríamos declarar um caos absoluto. Ora, subjetividade não é igual a caos. Ao contrário, do modo como a subjetividade foi por mim expressa, pode-se dizer que ela tem uma estrutura própria de ordenação dos materiais apreendidos. A questão seria: é o universo que possui ordem ou é nossa subjetividade que o ordena de modo a torná-lo o mais compreensível possível?
Bem-me-quer, mal-me-quer
Querido Aguinaldo
Penso que a discussão promovida, de fato, causa um grande impacto nas noções comuns de bem e mal, precisamente no ponto que você mesmo toca. Ora, na medida em que se assume a tese de que a origem do mundo e a ordem que nele pode ser observada provêm apenas de um princípio gerador e ordenador intrínseco à própria matéria, poder-se-ia prescindir da crença na existência de uma divindade ordenadora que deu origem e imprime movimento a essa imensa máquina chamada mundo. Certamente isso estremeceria as bases da moralidade, tal como concebida de um ponto de vista religioso, uma vez que a tese de que a moral está fundamentada em princípios religiosos é muito mais difundida e bem aceita do que a tese contrária. Aqueles que acreditam que nossas noções de bem e mal são, tanto quanto nós mesmos, criadas por Deus e que, portanto, a moralidade é ditada por Deus, provavelmente concordariam com o personagem de Dostoievski. Mas eu, embora não possa afirmar como verdadeira a hipótese da matéria, não penso que é preciso acreditar em Deus e crer na imortalidade da alma para ter motivos para agir moralmente. A meu ver não é preciso mergulhar em águas teológicas para fundamentar a moralidade, pois nossos juízos morais, para que sejam válidos, não pressupõem necessariamente padrões teológicos de bem e mal. Eles podem repousar simplesmente em nossos naturais sentimentos de aprovação ou desaprovação experimentados diante de certas ações, comportamentos e inclinações. Também não vejo a necessidade de pressupor um mundo pós-morte, no qual a alma sobreviveria, para agirmos moralmente. Podemos ter razões suficientes para agir moralmente nessa vida mesmo, como por exemplo, o desejo de uma convivência pacífica ou uma consciência tranqüila, mesmo que dessa vida nada possa restar no futuro.
terça-feira, julho 04, 2006
Ordem ou Caos?
Caro Diego.
Se entendi bem, quando você fala em surgimento e desaparecimento da matéria, acho que o que você está querendo dizer é que a matéria se transforma, não é? Com efeito, a matéria não desaparece. Nós não temos acesso pela experiência ao surgimento e desaparecimento da matéria, mas apenas à sua transformação. E essa transformação pode ser fruto – como disse antes e você também menciona – de princípios ordenadores intrínsecos à matéria.
Sobre monoteísmo e politeísmo. Penso que o defensor do monoteísmo tem de enfrentar realmente a dificuldade que você assinala. Sobre isso estamos de acordo. Contudo, acredito que um litígio apenas entre o monoteísta e o politeísta seria provavelmente vencido pelo primeiro. Platão e Aristóteles, para citar apenas os dois maiores filósofos gregos, nunca deram crédito ao politeísmo.
Em relação à inteligência do cosmos, a meu ver, não está de modo algum excluída a possibilidade do cosmos ser na realidade caótico e o princípio ordenador ser apenas uma imposição de nossa subjetividade às coisas.
Um abraço!
quarta-feira, junho 21, 2006
Comentário ao comentário de Lui Fernando
Caro Lui,
Muito obrigada pelo comentário. Ele não deixa de ser oportuno porque me dá a chance de esclarecer algumas coisas. Você diz que “se olharmos para a enxurrada de bobagens e futilidades que a TV despeja nos lares brasileiros, o referido quadro soa como algo inteligente”. Mas veja bem: se eu adotasse aqui essa perspectiva, a qual vou chamar de perspectiva de juízos comparativos, não veria nenhum problema nisso que você diz. Contudo, não estou nem um pouco convencida de que devemos adotar juízos comparativos em relação ao que a TV nos oferece. A adoção de tais juízos nos conduz facilmente a praticarmos uma generosidade indevida. A minha frustração, a qual você considera perder um pouco de razão, encontra sua razão no seguinte ponto: está relacionada com as exigências que faço e não com as possíveis comparações, tais como a que você fez.
Não posso deixar de assinalar também mais alguns pontos de desacordo contigo. Você está preocupado com o fato de a filosofia ser popularesca ou pretensiosa. Porém, a primeira preocupação soa incoerente porque se adotarmos a tua perspectiva, isto é, a dos juízos comparativos, a filosofia facilmente será conduzida ao “popularesco”. Já a segunda preocupação me parece equivocada porque a filosofia é e sempre foi pretensiosa (mesmo e, principalmente, fora do dia a dia).
terça-feira, junho 20, 2006
O Príncipe de Maquiavel
Caros ex-alunos
Soube que teve gente desesperada por não saber nada de Maquiavel. Para tentar aliviar esse desespero, administro aqui uma gotinha do que significa virtude para o príncipe, segundo Maquiavel. O príncipe virtuoso, para Maquiavel, é aquele que tem êxito em chegar e manter-se no poder. Sua virtude está em mediar as situações que a necessidade impõe e a fortuna oferece. “Assim, é preciso que, para se conservar, um príncipe aprenda a ser mau, e que se sirva ou não disso de acordo com a necessidade” (Maquiavel. O Príncipe | cap XV). “... quando um príncipe se apóia apenas na fortuna, arruína-se de acordo com as variações daquela". " Julgo feliz, também o que harmoniza sua maneira de agir com as características de cada época, e infeliz aquele cujo modo de proceder discorda dos tempos” (cap. XXV). Pode-se dizer, pois, que para o príncipe de Maquiavel, a virtude não pode ser confundida com a moral (uma relação comumente feita), embora ele possa até possuir princípios morais. Porém, no exercício de sua função, tais princípios devem (de acordo com a necessidade) ser abstraídos, devendo o príncipe agir com o máximo de esperteza e atenção à sorte.
O primeiro dia (1794) William Blake
Coloquei a gravura ao lado para ilustrar a idéia de rigor e precisão.
Pintada por William Blake e intitulada O primeiro dia (1794), tal gravura "representa a regularidade encontrada em cada nível do universo conhecido, desde o maior até o menor de todos, e normalmente em formas que podem ser expressas em equações matemáticas. É como se o universo mesmo contivesse a racionalidade. Como disse alguém um dia, é como se 'Deus fosse matemático'" (Bryan Magee. História da Filosofia).
Como vocês podem observar, a imagem representa um Deus que possui em suas mãos um compasso - instrumento de precisão. E, de fato, o título "O primeiro dia" alude, neste contexto, ao momento da criação do universo (supostamente criado por Deus). Portanto, a figura remete, ao menos em linhas gerais, à tese do criacionismo. Isso me leva a pensar naquilo que os filósofos chamaram de argumento do desígnio e que Hume, nos Diálogos Sobre a Religião Natural, também discute.
O argumento do desígnio é o argumento mais difundido e bem aceito da religião natural em favor da existência de Deus. Há várias versões deste argumento, mas em sua forma mais abrangente ele reza que a partir da aparente ordem, beleza e desígnios do universo, podemos legitimamente inferir a existência de um criador, possuidor de atributos naturais e morais, tais como inteligência, poder, sabedoria, benevolência, justiça e misericórdia. Embora Hume, na voz do personagem Cleanthes, não pense exatamente num ordenador matemático, a análise que ele faz do argumento do desígnio tem uma íntima relação com as idéias que a imagem nos desperta. Mas aqui vou apontar ao menos dois problemas que Hume levanta nos Diálogos: por que pensar num único ser ordenador e não em vários seres ordenadores? Ou por que não pensar que a própria matéria possa ter um princípio organizador interno responsável por toda essa ordem aparente?
segunda-feira, junho 19, 2006
Rigor e precisão
Olá novamente moçada!
Gostaria de retomar aquela idéia de rigor e precisão exposta na carta de John Locke a Philippe de Limborch. Notaram que precisar tem dois sentidos? Aproveito essa deixa para falar de um problema (grave) que percebi dando aulas, trocando cartas e avaliando vocês. Gente: uma coisa é certa! O Português do Brasil vai muito mal. Quero dizer, a língua portuguesa, meninada, a nossa rica e bela língua portuguesa. E vocês têm que prestar atenção nisso. Sabem por quê? Porque do jeito que a nossa língua vai indo por água abaixo, daqui a muito pouco tempo vamos estar a grunhir em vez de conversar. Daí que para que isso não aconteça, afinal, há algo que nos diferencia dos animais (rsrs), deixo aqui uma outra regrinha para a gente conversar.
Eu admito e aceito (com restrições que aqui não vêm ao caso) que com a Internet, Messengers, Orkuts, e-mails e toda essa velocidade estonteante que se instalou nas comunicações, criou-se uma nova linguagem, tipo fast-food, para atender a esse nosso novo ritmo. Mas vamos fazer algumas distinções. Neste blog eu me proponho a uma atividade filosófica (ainda que a conta-gotas) e não um bate-papo sem compromisso. E uma das características da atividade filosófica é o rigor. Essa é uma palavra que todo mundo conhece, mas que também deve ser procurada no dicionário. Simplesmente para que a concepção de filosofia que expresso aqui fique bem clara. Como assim, rigor? É simples: por favor, evitem ao máximo a linguagem de Messenger, tipo naum , aki, axei, kibom, hiuhasiauhisuhaisudhf e semelhantes. Eu aceito que vocês errem e façam interjeições. Mas gostaria que quando tratarmos de questões filosóficas, por favor, que sejam bem formuladas, bem escritas. Ah (interjeição)! Podem dar umas risadinhas quando se tratar de alguma comunicação mais pessoal, mas tentem escrever com um certo rigor, cuidando das palavras, de escrevê-las na forma correta, usar vírgulas, acentos, concordâncias verbais, etc...
Esse é um treino indispensável não só para vocês que vão ter de fazer a redação do vestibular, mas para toda e qualquer pessoa que pretende se comunicar por escrito. Não tenham vergonha de errar. Tenham de não tentar acertar, se for o caso. Eu pedirei licença para corrigi-los e não passarei nenhum sermão. Não vai valer tirar sarro. Entendo que seja, talvez, difícil escrever corretamente para quem não está acostumado a ler e a escrever bastante. Aliás, esse é o grande caminho para se escrever bem: ler e escrever bastante. Portanto, não tenham preguiça de ler. Sugiro que vocês façam dos livros grandes amigos. Com preguiça até podemos ir a alguns lugares (a uma praia, talvez), mas posso garantir que jamais iremos mergulhar nas profundas águas da filosofia.
Francine Van Hove
quarta-feira, junho 14, 2006
Sobre o quadro "Ser ou não ser?" do Fantástico
Foi ao ar no programa Fantástico do último domingo [11.06.06] o quadro pretensamente filosófico “Ser ou não Ser?”, apresentado por Viviane Mosé. O tema do programa configurou-se em torno da concepção de Disputa, Guerra ou Conflito. Viviane Mosé apresentou algumas situações criadas pelos homens, nas quais se dão a disputa, o conflito, ou mesmo a guerra. Entre essas situações pudemos ver algumas competições que fazem parte do contexto de certas culturas indígenas, dos jogos olímpicos e copas do mundo. A concepção de disputa escolhida para desenvolver o tema foi aquela encontrada nas teorias do filósofo Nietzsche. Várias outras concepções de conflito foram ali salpicadas, em especial, a dos gregos em geral (generalização inapropriada a meu ver) e a de Sócrates. Porém, é preciso distinguir bem cada uma delas. Mas isso eu só conseguiria fazer em aulas, ou com um texto de no mínimo 50 páginas (acho que vocês prefeririam aulas rsrsrsrsrs). Do modo como as concepções foram apresentadas, pareceu que Nietzsche e Sócrates convergem em seus pensamentos. Contudo, entre Nietzsche e Sócrates há mais divergências do que convergências. Vale lembrar que Sócrates era um apologista do logos e Nietzsche um contundente crítico do logos (Cadê o dicionário, moçadinha?).
De fato, o tema é bastante instigante, mas confesso que fiquei com uma sensação de frustração. Apesar de se poder considerar a proposta do programa válida, na medida em que, no mínimo, contribui para despertar a curiosidade de alguns (provavelmente poucos) interessados, uma coisa é certa: ele peca por induzir o telespectador à superficialidade e confusão. Esse é o problema de se tentar tratar de filosofia em poucos minutos. Talvez não se deva imputar culpa à apresentadora. A meu ver o programa, por sua própria natureza (a de apresentar o tema em apenas alguns minutos), não permite o aprofundamento necessário para que a obscuridade e confusão dêem lugar à clareza e precisão. A pressa é uma das maiores inimigas da filosofia.
sexta-feira, junho 09, 2006
Aos meus caríssimos ex-alunos do Colégio Universitário
Olá moçada!
Conforme prometi, declaro aberto este espaço para aquela nossa (famosa) interlocução filosófica. Bom, algumas coisas têm de ficar bem claras, e algumas regras bem definidas. Uma coisa que me preocupa é como a gente pode travar aqui uma conversa (interlocução) que seja profícua. Olhem só essa palavra! Tenho quase certeza de que a maioria de vocês não sabe o que ela significa. Portanto, lá vai a primeira regra:
Não vai dar para a gente conversar sobre filosofia se vocês não se dispuserem a ser amigos de ao menos um bom dicionário de português. Vamos lá, sem preguiça! Dicionário à mão! Melhor, quem tiver um no computador, mantenha-o aberto (sugestões de dicionários de português eletrônicos: Aurélio Século XXI e Houaiss). Procurem (ou digitem) essa palavrinha esquisita que eu coloquei aí para vocês - profícua. Temos de enriquecer nosso vocabulário. Vocês podem até dizer: ah... eu tenho uma idéia do que é, posso imaginar, inferir o sentido a partir da frase contemplada em seu todo, etc... Bom, ter uma idéia (imaginar, inferir) é algo muito vago que implica uma série de outras coisas. Para a gente compreender qualquer coisa é preciso, de fato, ter ao menos uma idéia dessa coisa. Mas em filosofia é preciso muito mais do que isso. É preciso alcançar uma idéia precisa das coisas, ou seja, do que queremos saber, entender, compreender. E o primeiro passo para isso é conhecer e precisar os termos (e as idéias) que vamos empregar nas questões e respostas.
Para ilustrar...
Para ilustrar o que disse, caros ex-alunos, vale citar uma carta que o filósofo John Locke (1632-1704) escreveu a Philippe de Limborch [em 12 agosto 1701].
“Assim como você, eu penso que convém evitar toda obscuridade e ambigüidade no uso das palavras; mas gostaria de acrescentar que mesmo aqueles que querem isso não conseguem sempre evitar a obscuridade. As idéias que se observam no espírito dos homens – e sobretudo daqueles que procuram a verdade – são, com efeito, muito mais numerosas que as palavras de qualquer língua que dispomos para exprimi-las. Disso se segue que os homens (a quem não é próprio inventar à vontade palavras novas a cada vez que eles têm necessidade de dar significado a idéias novas), utilizam a mesma palavra para designar idéias diferentes, sobretudo quando estas lhes são vizinhas. É isto que faz com que, no discurso, a obscuridade e o sentido incerto não sejam raros, quando é necessário alcançar a precisão e a exatidão. E não é somente o espírito daqueles que escutam que é vítima, mas também o espírito daqueles que falam”.
Bom, moçadinha, é claro que o velho e bom Locke pega pesado aqui. Não precisamos ser tão rigorosos assim. Mas vamos ao menos tentar seguir seus conselhos de modo a não nos tornarmos vítimas da obscuridade e do sentido incerto, nem vitimar aqueles que nos escutam.
segunda-feira, junho 05, 2006
Curso sobre Kant
Segue o programa do curso sobre Kant para graduandos e pós-graduandos da UEL. O curso está aberto para interessados.
Curso sobre Kant
Por Marília Côrtes de Ferraz
Mestre em Filosofia pela UNICAMP
1. PROGRAMA
1.1. Introdução ao pensamento de Kant Análise dos prefácios A e B da Crítica da Razão Pura (CRP) 1.2. A distinção entre conhecimento empírico e a priori Análise da Introdução da CRP (seções I-III) 1.3. Juízos sintéticos a priori. Análise da Introdução da CRP (seções IV-VII)
1.4. A terceira antinomia da Crítica da Razão Pura. Dialética transcendental. Antinomia da razão pura. Terceiro conflito das idéias transcendentais
1.5. Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Boa vontade. Dever. Imperativos em geral. Imperativo categórico. Liberdade.
2. CRONOGRAMA (HIPOTÉTICO)
* encontros semanais Junho 2006:
- Introdução ao pensamento de Kant, Julho 2006:
- A distinção entre conhecimento empírico e a priori, Agosto 2006:
- Juízos sintéticos a priori, Setembro 2006:
- A terceira antinomia da CRP, Outubro 2006:
- Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Novembro 2006:
- Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Fevereiro 2007:
- Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Março 2007:
- Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Abril 2007:
- Análise da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Maio 2007:
3. BIBLIOGRAFIA
ALQUIÉ, Ferdinand (s/d): La morale de Kant. Centre de Documentations Universitaire, Place de la Sorbonne Paris V.
BECK, Lewis White (1966): A Commentary on Kant’s Critique of pratical reason. Chicago: The University of Chicago Press.
ESTEVES, J C Ramos (2000): “Kant tinha de compatibilizar natureza e liberdade no interior da filosofia crítica? Studia kantiana 2 (1): 53-70.
HÖFFE, Otfried (1993): Introduction à la philosophie pratique de Kant. La morale, le droit e la religion. Tradução de Francois Rüegg e Stéphane Gillioz. Paris: Vrin.
KANT, Immanuel. (FMC): Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo, Abril Cultural, 1980.
KANT, Immanuel (CRP): Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994.
domingo, junho 04, 2006
Liberdade e Imputabilidade Moral em Hume
Eis o resumo da minha dissertação de Mestrado, defendida na UNICAMP em 2006
A dissertação examina a análise de Hume dos conceitos de liberdade e imputabilidade moral. O texto de referência para a pesquisa é a seção VIII da Investigação sobre o entendimento humano. Mostro, a partir do estudo dessa seção, em que sentido os conceitos de liberdade e necessidade são compatíveis para Hume. Para tanto, analiso o compatibilismo humeano enfatizando a unidade explicativa que o autor esposa claramente na obra citada. De fato, Hume, em seu exame das noções de liberdade e necessidade anuncia introduzir novidades que prometem ao menos algum resultado na decisão da controvérsia entre a doutrina da necessidade e a doutrina da liberdade (da vontade). Ele propõe um ‘projeto de reconciliação’ (reconciling project) que consiste em mostrar que liberdade e necessidade são perfeitamente compatíveis entre si, e que afirmar que as ações humanas são livres não é afirmar que estejam fora do âmbito da necessidade, mas apenas que se realizaram sem constrangimento. Em seguida, esclareço as razões que conduzem à crença na vontade livre, crença esta infundada, segundo Hume. Por fim, procuro estabelecer as conseqüências que o compatibilismo humeano traz para a noção de responsabilidade moral. Hume entende que não só é perfeitamente possível explicar os juízos morais pelo seu compatibilismo, como também que o seu compatibilismo é a única alternativa de fato consistente para dar conta dos ajuizamentos que fazemos acerca da moralidade. Entendo que a explicação dos juízos morais de imputabilidade oferecida por Hume representa uma hipótese altamente persuasiva e com vigor suficiente para responder a objeções geralmente apresentadas pelos incompatibilistas.
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