sábado, janeiro 29, 2022

Triiimmm

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Marília? Chegou uma encomenda pra você... 

Desci achando se tratar daquele tênis que ganhei de presente das minhas filhas. Pelo tamanho da caixinha não poderia ser. O peso? leve, muito leve. Olhei o remetente: era do meu amigo Miguel. O sorriso mordeu minhas orelhas. 

Ah... que surpresa! O que seria? Não esperava. Não era meu níver, nem natal, nem nenhuma data comemorativa. Eita! Deve ser uma das peripécias delicadas e criativas do Miguelito. Um mimo para quem tinha acabado de mudar de apartamento. 

Subi apressada, louca de curiosidade, com a caixinha nas mãos. Abri o pacote e encontrei algo envolto em plástico bolha. Inferi que era um objeto sensível, provavelmente de vidro, quebrável. Desembrulhei com cuidado e, eis senão quando, encontrei um copinho pink estampado com a Penélope Charmosa a viajar loucamente pelo mundo afora, numa de suas corridas malucas. 

Quando liguei pra agradecer o presente, Miguelito me contou que ao vê-lo na lojinha pensou: é a cara da Marília. Confesso que também achei rs.

De imediato me lembrei que minha mãe havia dado o nome de Penélope Charmosa à nossa Caravan 76. Miguelito não sabia disso. Era uma Caravan cor de café com leite, 3 marchas, banco inteiro na frente, bem espaçoso, bom pra namorar. 

Meu pai comprou a Penélope zero km, em 1976, e ela ficou em nossa família por 26 anos. Destes, por 6 mais ou menos ela foi só minha. Ganhei de presente no início de 1997. Era bem conhecida. Ao que tudo indicava, na época, só circulavam três daquela cor na cidade. E a nossa nunca passava despercebida. No final de 2002 troquei-a por um Passat prata, mais novo, mas bem usadinho.

Além de Penélope Charmosa, eu a chamava também de Sedenta, já que era difícil satisfazer a sede dela por gasolina (que já custava os olhos da cara). A Sedenta rodava de 5 a 6 km por litro. Era mesmo insaciável. De vez em quando a marcha encavalava e, daí, eu tinha que parar onde estivesse, descer, atrapalhar o trânsito, abrir aquele capô imenso e pesado, e desencavalá-la. Mas essa já é outra história.

Quanto ao copinho, é meu xodó. Um charme!


domingo, janeiro 09, 2022

Domingo poético

Montanhas são frias quando a noite cai

Numa noite sem nome
a severa senhora de olhos escuros
toca-nos a face
com seus dedos de pelica
e vai arrancando, uma a uma,
todas as máscaras
que vestimos

e nessa hora sem hora
até o mais valente dos valentes
sente um tremor,
ainda que leve,
na mão que empunha o revólver

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[ Ademir Assunção | (Pinduca para os amigos e amigas) | RISCA FACA | Poesia | São Paulo | Selo Demônio Negro | 2021 | p. 31 ].




Trato

fiz um trato com o vento,
vamos dar um tempo, um
do outro, escapar deste
cenário viciado, e vagar
sem rumo pelas montanhas,
pradarias e pastagens,
sem deixar rastros nem
postagens, antes que eu
esteja morto, condenado
que sou, desde o nascimento

você não, você sempre estará
por aqui, mudando de cara,
em movimento, ora rugindo
feroz, destelhando casas,
arrastando vacas, ora brisa
suave, acariciando os cabelos
da menina, que caminha pela
praia, quase pronta pra parir,
outra vida, neste redumunho
do mundo em desalinho

fiz um trato com o vento,
você vai por lá, eu por ali,
por deus, por buda, por allah,
pelo nome que tanto faz,
quem sabe a gente volte
a se encontrar, naquela
esquina inesperada, onde
os fantasmas procuram a
paz, e os corvos crocitam
como loucos, antes que eu

esteja morto e você bem
posto, no alto, com sua
farda puída, guardando
as muralhas precárias dessa vida

fiz um trato com o vento
e tudo o que vi foi um aceno,
em silêncio, breve tremular
nas folhas finas do feno


[pp. 15-16]