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segunda-feira, janeiro 30, 2023

Plenitude

Estive vasculhando algumas velhas anotações e encontrei a seguinte passagem: 

"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar em um parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro" (Lou Andreas-Salomé).

Não sei quando a anotei, nem de onde a extraí. Tenho duas biografias de Lou Salomé. Uma delas, li e grifei inteirinha (a que tem um prefácio da Anaïs Nin), cujo título é LOU, minha irmã, minha esposa, de H. F. Peters (Jorge Zahar). A outra, de Dorian Astor (L&PM Pocket), li e grifei boa parte, mas não a li inteira ainda.

Fiz uma rápida pesquisa e é certo que tal passagem se encontra aos borbotões na internet, todas sem referências pontuais, o que me faz desconfiar se a passagem é dela mesma, se a tradução é boa ("funesto de se enxertar um sobre o outro?" não soa bem, há termos melhores para designar o que se quer dizer), ou se se trata de mais uma daquelas imposturas que encontramos pelas nets. Mas isso, aqui, não tem importância. Importa o que a passagem diz, e o porquê desse trecho ter me chamado a atenção (provavelmente há uns 10 ou 15 anos). 

Creio que desejava alcançar esse estado de vida, pois, naquele tempo, ao amar louca e apaixonadamente, não me sentia propriamente "eu mesma", ao menos em toda a minha inteireza, tal como me sinto hoje: plena, sem necessidade de me adaptar a ninguém, ou de fazer concessões que possam trair, em nome do amor, meus próprios princípios, opiniões e/ou sentimentos. Hoje, posso dizer que me encontro enraizada em meu solo particular, robusto e independente (ainda que não tenha garantia de que será sempre assim). Hoje, sou todo um mundo, seja apenas para mim mesma, ou mesmo para um outro amor, além do meu próprio. E isso não tem preço. Tem valor, mas não tem preço, se é que vocês me entendem...



photo by
Ryan Widger 
The Conversation | 2006

quarta-feira, setembro 05, 2018

Na faina turva dos dias


Permaneço no escuro como um cego
Porque meus olhos não te encontram mais
A faina turva dos dias para mim
não é mais que uma cortina que te dissimula.

Olho-a, esperando que se erga
esta cortina atrás da qual há minha vida
a substância e a própria lei da minha vida
e, apesar disso, minha morte.

Tu me abraçavas, não por desrazão
mas como a mão do oleiro contra o barro
A mão que tem poder de criação.
Ela sonhava de algum modo modelar –

depois se cansou,
se afrouxou
deixou-me cair e me quebrei.

Eras para mim a mais maternal das mulheres,
eras um amigo como são os homens,
eras, a te olhar, mulher realmente,
mas também, muitas vezes, criança.

Eras o que conheci de mais terno
e mais duro com que tenho lutado.

Eras a altura que me abençoou –
te fizeste abismo e naufraguei.

[Rainer Maria Rilke a Lou Andreas-Salomé, In: Correspondência Amorosa]

photo by Kasia Derwinska

quarta-feira, abril 16, 2014

Oh vida enigmática!


Hino à vida

Claro, como se ama um amigo
Eu te amo, vida enigmática –
Que me tenhas feito exultar ou chorar,
Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento,
Amo-te com toda a tua crueldade,
E se deves me aniquilar,
Eu me arrancarei de teus braços
Como alguém se arranca do seio de um amigo.
Com todas as minhas forças te aperto!
Que tuas chamas me devorem,
No fogo do combate, permite-me
Sondar mais longe teu mistério.
Ser, pensar durante milênios!
Encerra-me em teus braços:
Se não tens mais alegria a me ofertar
Pois bem – restam-te teus tormentos.

[Lou-Andreas Salomé]

Devo confessar, ainda que a contragosto de muitos, que embora eu estude Hume e outros filósofos criticados por Nietzsche, tenho uma forte identificação com este autor, especialmente no que diz respeito ao seu interesse e apreço pela relação entre a arte, a filosofia, a vida e o espírito trágico.

Ora, mas o que tem a ver falar de Nietzsche aqui se o poema é de Lou- Salomé? Pois bem, não estou aqui para falar propriamente de Nietzsche, mas sim e tão-somente apresentar o belo poema da escritora russa Lou Salomé [1861-1937] (o grande amor da vida de Nietzsche), considerada a primeira mulher moderna que existiu na face desse ínfimo planeta chamado Terra.

Lou entregara um exemplar deste poema como presente de despedida a Nietzsche ao deixar Tautenburg  ─ local onde passou as férias de verão com ele e sua irmã Elizabeth Nietzsche. A meu ver, o poema revela que, a despeito da relação Lou-Niezstche não ter dado certo ─ pois embora Lou admirasse Nietzsche em demasia, desejava ser apenas sua amiga ─ eles compartilhavam do mesmo espírito trágico, ou, digamos assim, do mesmo amor fati (revelado no poema acima).



[Aviso aos leitores navegantes que o poema pode ser encontrado em traduções ligeiramente diferentes. Como não entendo bulhufas de alemão nem de russo, tenho que me contentar (e confiar... sempre com aquele ceticismo mais do que recomendado) com a pesquisa que fiz pela internet, pois o poema não aparece completo na biografia que li durante minhas férias de verão 40 graus, em dezembro de 2013. Se algum ser bondoso e versado na língua original do poema, preocupado com a precisão da tradução (que é mesmo importante), quiser fazer alguma correção, sinta-se à vontade].

A referência da biografia de Lou-Andreas Salomé é a seguinte:
Peters, H.F. Lou: minha irmã, minha esposa. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, (com prefácio de Anaïs Nin).  

quarta-feira, outubro 30, 2013

Eros e Thanatos

Num daqueles dias em que perambulo ao léu... procurando qualquer coisa que arrebente ou arrebate meu coração, ou mesmo que o estraçalhe de uma vez por todas, encontrei esse belo hino de Lou Andreas-Salomé. Não resisti à tentação. Não resisti a esse impulso de vida... e de morte! Voici!

Hino à Morte

No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua.

(NOVAES, Adauto (org.) Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987)


[Jardin du Luxembourg. La fontaine Médicis. Polyphemus surprising Acis and Galatea (1866). Auguste-Louis-Marie Jenks Ottin (1811-1890)]