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quarta-feira, novembro 28, 2012

Amor Fati

Outro dia, ao passar algumas horas a divagar entre prosas e poesias, dei de cara com um poema do poèt maudit Du Bocage, dirigido a uma de suas musas que, aliás, chama-se Marília. Mera coincidência, todos dirão! E eu, é claro, concordo com todos: isso não tem a menor importância. Interessa-me aqui o que o poema diz, e não a quem ele se dirige. Trata-se do famoso e controverso embate entre razão e paixão - um tema bastante caro aos filósofos e literatos.

O título do post, amor fati, refere-se à expressão latina "amor ao destino" ou "amor ao fado". Significa, de uma perspectiva nietzscheana, a aceitação integral do destino, mesmo em seus aspectos mais trágicos, cruéis e dolorosos. Eis o poema:

Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, seu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.



Há quem rejeite as fortes paixões em nome de uma alma tranquila e bem equilibrada. Essa é a receita de felicidade dos sábios ─ uma receita razoável (e sábia). De fato, quando a paixão chega às raias da loucura e do dilaceramento, tendemos a evocar as mais retas e sóbrias razões para extirpá-la.

Ora, mas como esperar que a reta razão tenha algum poder sobre nós se estamos subjugados aos movimentos violentos de nossas paixões? Ah... isso requer um lento, longo e doloroso exercício de persuasão e autocontrole. A dificuldade é: sob turbulentas paixões, somos naturalmente fracos e insensatos. O "murmúrio da razão se mostra vão", como diz o poèt maudit.

Subjugado, tal como um vassalo, à impiedosa lei do amor e da ternura, Bocage deprecia os mecanismos racionais e, num ato de temeridade blasfematória, esconjura a razão a calar sua ríspida voz. À mercê do amor e da amada, ele clama à razão deixá-lo apreciar sua loucura: prefere arrancar os cabelos e delirar... delirar... delirar... até se entregar, de uma vez por todas, à total consumação de si próprio. Bocage não quer maldizer Marília, não quer desdenhá-la, tampouco fugir dela. O que ele quer mesmo é "morrer por ela". E é culpado, dizem alguns, de escolher não resistir a seu amor fatal. Pobre Bocage, pobre Marília, pobre raça de efêmeros mortais!

[marília côrtes | novembro |2012]

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Incita-me


"É a sua vez, agora, de empunhar este pesado remo e esforçar-se para defender suas sutilezas filosóficas contra os ditames da simples razão e experiência" (D X # 37, p.42)


(Hume. Diálogos sobre a Religião Natural. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Martins Fontes, 1992).

[imagem: Monet. Rock Arch West of Etretat - The Manneport (1883)

segunda-feira, abril 02, 2007

A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?


Numa noite dessas recebi um telefonema do Aguinaldo dizendo que ao tentar trocar a lâmpada da cozinha cortou de maneira dramática seu dedo no lustre. É claro que o drama maior estava no modo como ele contava do que propriamente no corte. Ele tem o poder de deixar a gente sem saber qual é mesmo a verdade, se está a brincar e, se pudermos falar em graus de verdade, qual é esse grau. Fiquei um tanto desconcertada porque, a distância (e eu estava impossibilitada de ir até lá), não poderia fazer nada, a não ser dizer algumas palavras de conforto. Na manhã seguinte enviei-lhe um e-mail assim:
- Bom dia! Sarou o dedinho? Precisa de algo? Beijos!

E ele, com aquela sempre endiabrada mente filosófica, enviou-me a provocação que se segue:
- Oi. Segundo o grande filósofo escocês, "não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo" (T: 2. 3. 3). O que você acha? A mim, não convence. O meu dedo está bom. Beijo.

Aguinaldo sabia que eu conhecia essa passagem do Tratado da Natureza Humana de Hume. Ele sabia também que sua provocação atingiria meu punctum pruriens (explico depois o que isso significa), afinal, eu já havia me incomodado muito com essa passagem. Fui lá no Tratado conferir e apresentei-lhe a seguinte resposta como conclusão (passível de revisão, é claro!).

Caro Aguinaldo: a mim também não convence. E nem acho que Hume queira mesmo nos convencer disso. A meu ver, a afirmação é capciosa e serve de estratagema para corroborar sua tese de que as paixões, como móbiles das ações, têm primazia sobre a razão, ou seja, de que “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (TNH: 2.3.3)

O que Hume está a dizer? Que a razão não se opõe à preferência da destruição do mundo e que é perfeitamente natural e legítimo optarmos por ela em vez de arranharmos um dedo? Ou que a perspectiva de virmos a sentir dor em conseqüência de um arranhão no dedo tem mais poder e influência sobre nós do que a perspectiva racional de preferir a destruição do mundo?

Ora, não vejo (e acredito que Hume também não vê) como a idéia de destruição do mundo possa envolver somente a razão. A meu ver essa perspectiva inevitavelmente envolve paixão, pois a destruição do mundo todo (ao menos para um ser humano) implica uma perspectiva de dor e, portanto, uma paixão - por certo muito maior do que a de um arranhão em meu dedo. Talvez essa afirmação possa valer para a alma de um egoísta facínora (ou seja, para a alma de um desalmado rsrsr, e o que é pior, completamente irracional, pois não posso compreender como alguém pode preferir a destruição do mundo sendo racional), mas não para a de um ser humano mortal e comum, dotado de razão e sensibilidade.

Ademais, se tomarmos ipses litteris a afirmação em pauta, sem levarmos em conta o que vem antes e o que vem depois, penso que as próprias explicações de Hume destruir-se-iam a si mesmas - e não acredito que Hume cometeria um deslize tão crasso como esse.

Veja só: ele diz que “... a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade...” (TNH: 2.3.3). Pois bem, como eu já disse, não me parece possível que só a razão intervenha na preferência da destruição do mundo todo. “E, em segundo lugar, que [a razão] nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade” (TNH: 2.3.3).

Ora, ao preferirmos a destruição do mundo não é a vontade de destruí-lo que está a se exercer? Se não for assim, teríamos de dizer que a razão sozinha influenciou a preferência da ação de destruir o mundo. Como você pode ver, ela teria agido sozinha, completamente depurada de vontade, e como ele mesmo diz, “a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição e é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção” (TNH: 2.3.3).

A bem da verdade, penso que o que Hume está a dizer quando afirma que “não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo”, ele está apenas querendo mostrar que é contrário à minha paixão preferir a destruição do mundo, ou seja, que a paixão de não destruí-lo tem de intervir com muito mais força sobre a perspectiva passional de um arranhão em meu dedo.

Um beijo!