quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Um hemisfério numa cabeleira




Deixa-me respirar por um bom tempo, por um bom tempo, o odor dos seus cabelos, neles mergulhar meu rosto, como um homem sedento mergulha o seu numa fonte. Deixe-me agitá-los com a mão como lenço perfumado, a fim de evocar lembranças na atmosfera.

Se você soubesse quantas coisas eu vejo, quantas coisas eu sinto, quantas coisas seus cabelos me dão a entender! Minha alma viaja levada por esse perfume como a de outros homens viaja pela música.

Em sua cabeleira cabe todo um sonho, em que abundam velas e mastros, imensos oceanos cujas correntes me levam a regiões de um clima deleitante, onde o espaço é mais azul e profundo, e a atmosfera é perfumada de frutos, folhas e pele humana.

No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto que fervilha de canções melancólicas, de homens vigorosos de todas as nacionalidades, de embarcações de todas as formas, cuja arquitetura sutil e complicada se recorta sob um céu imenso em que se instala o calor eterno.

Acariciando sua cabeleira, recupero os langores de longas horas passadas sobre um divã, na cabine de um belo navio, embalado pelo balanço imperceptível do mar no porto, entre vasos de flores e botijas refrescantes.

Na fogueira de sua cabeleira, respiro o cheiro do tabaco, misturado a ópio e açúcar, na noite de sua cabeleira, vejo resplandecer o infinito azul tropical; nas praias aveludadas de sua cabeleira, me inebrio de odores mesclados de alcatrão, almíscar e óleo de coco.

Deixe-me morder por um bom tempo essas tranças morenas e pesadas. Ao mordiscar esses cabelos elásticos e rebeldes, sinto como se experimentasse lembranças.




Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  p.57-58

quarta-feira, fevereiro 15, 2017

Na infinita dispersão do meu ser


             Pergunta-me
             se ainda és o meu fogo
             se acendes ainda
             o minuto de cinza
             se despertas
             a ave magoada
             que se queda
             na árvore do meu sangue

             Pergunta-me
             se o vento não traz nada
             se o vento tudo arrasta
             se na quietude do lago
             repousaram a fúria
             e o tropel de mil cavalos

            Pergunta-me
            se te voltei a encontrar
            de todas as vezes que me detive
            junto das pontes enevoadas
            e se eras tu
            quem eu via
            na infinita dispersão do meu ser
            se eras tu
            que reunias pedaços do meu poema
            reconstruindo
            a folha rasgada
            na minha mão descrente

            Qualquer coisa
            pergunta-me qualquer coisa
            uma tolice
            um mistério indecifrável
            simplesmente
            para que eu saiba
            que queres ainda saber
            para que mesmo sem te responder
            saibas o que te quero dizer"




Mia Couto  | Pergunta-me | Raiz de Orvalho e Outros Poemas  
Editorial Caminho | Lisboa | 1999

domingo, fevereiro 12, 2017

Êxtase musical II



"Nesses instantes em que ressoamos no espaço e o espaço ressoa em nós, nesses momentos de torrente sonora, de posse integral do mundo, só posso me perguntar por que não serei eu todo esse mundo. Ninguém experimentou com intensidade, com uma louca e incomparável intensidade, o sentimento musical da existência, a menos que tenha tido o desejo dessa absoluta exclusividade, a menos que tenha sido possuído de um irremediável imperialismo metafísico, quando desejara a ruptura de todas as fronteiras que separam o mundo do eu."




"O estado musical associa, no indivíduo, o egoísmo absoluto com a maior das generosidades. Queres ser só tu, mas não por um orgulho mesquinho, mas por uma suprema vontade de unidade, pela ruptura das barreiras da individuação, não no sentido de desaparição do indivíduo, mas de desaparição das condições limitativas impostas pela existência deste mundo. Quem não tenha tido a sensação da desaparição do mundo, como realidade limitativa, objetiva e separada, quem não tenha tido a sensação de absorver o mundo durante seus êxtases musicais, suas trepidações e vibrações, nunca entenderá o significado dessa vivência na qual tudo se reduz a uma universalidade sonora, contínua, ascensional, que evolui para o alto em um agradável caos. E o que é esse estado musical senão um agradável caos cuja vertigem é igual à beatitude e suas ondulações iguais a arrebatamentos?"


Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco 2014 | p.8

quarta-feira, fevereiro 08, 2017

Súplica ao Vento


Livra-me, Senhor, desse grande ódio, do ódio do qual brotam os mundos. Acalma o agressivo tremor de meu corpo e afrouxa meus maxilares apertados. Faz com que desapareça esse ponto negro que se acende em mim e se estende por todos os meus membros, fazendo nascer da infinita negrura de meu ódio uma mortífera chama das brasas.


Livra-me dos mundos nascidos do ódio, salva-me da negra infinitude sob a qual morrem meus céus. Acende um raio de luz nesta noite e que saiam as estrelas perdidas na densa névoa de minha alma. Mostra-me o caminho para mim mesmo, abre-me uma senda em minha espessura. Desce em mim com o sol e dá início a meu mundo.


Cioran, Emil  | O Livro das Ilusões | Tradução de José Thomaz Brum | Rio de Janeiro | Rocco | 2004 | p.104

imagem | KwangHo Shin | Untitled 27 | 2013

domingo, fevereiro 05, 2017

Tears




"Deitado, ele sorri desajeitado e seus olhos brilham. Ela sentiu todo o seu amor subir à garganta e as lágrimas aos olhos. Ela se lançou sobre seus lábios, desmanchou em lágrimas entre seus rostos. Ela chorava em sua boca e ele mordia em seus lábios salgados toda a amargura de seu amor."

Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.55-56

quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Vento




Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros




[ Título: Santa Clara | Iracema Macedo |  Invenção de Eurídice | Panorama da Palavra | 2004 ]