segunda-feira, março 30, 2020

Pandemia




Assistindo ao Jornal Hoje, vejo o mundo mobilizado. O arsenal é de guerra, tanto em relação ao tratamento dos feridos quanto no combate aos inimigos.

Ouço os planos dos governos, dos chefes de estado e suas equipes. Os fatos, as news, as estatísticas, as previsões e possíveis estratégias. A ciência a todo vapor produzindo novas descobertas e instrumentos. Drones sobrevoando os espaços. Alertas.

Médicos, enfermeiros, auxiliares e toda uma cadeia de serviços essenciais. Medidas de isolamento, problemas de abastecimento. Toques de recolher. Consequências econômicas. Pacotes e mais pacotes de assistências emergenciais. Políticas de distanciamento, medidas restritivas. Mortes.

Itália, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, França: mortes e mais mortes. A China, dizem, aos poucos, vai voltando ao normal. População educada, higienizada, a maioria de máscaras e obedecendo às medidas de proteção. Rígido controle social. A Nigéria? Uma lástima. Muitas favelas. Não há saneamento básico. Água suja, lixo, miséria, doenças, tristeza e desorganização. Um caos. 

A calamidade é pública, quase universal. Há que se conter a crise. Impõe-se uma nova ordem. Tudo é urgente. A imprensa internacional critica Bolsonaro. Ouço falar na liberação de 306 bilhões de reais para assistir parte da população brasileira. O processo é moroso, depende da burocracia e da aprovação no congresso.

E lá vem o presidente, passeando pela cidade do Distrito Federal, fazendo politicagem. Viola as medidas de distanciamento. Posa para uma foto ao lado de uma criança no colo do pai ou outro irresponsável qualquer hipnotizado pelo mito. 

Bolsonaro faz um discurso tosco. É contra a política de isolamento social recomendada pelos mais bem preparados profissionais e instituições de saúde. Diz que devemos enfrentar o vírus como homem. Wow, cabra-macho! Em tom fatalista, culpa os pobres pela pobreza. E pergunta: É crime trabalhar?

Pergunta errada, Sr. Presidente!

Maju não consegue disfarçar sua indignação ao falar no dito-cujo. Nem eu.


................................................................


Imagem: Eyes without a face - Sophie Calle

segunda-feira, março 23, 2020

Sobre a vontade de morrer


De repente, depois de um longo sumiço, meu amigo aparece e, comme d'habitude, saca sua arte do bolso da morte e atira de lá do fundo do abismo.



eu tenho vontade de morrer
só pra ver o céu sem mim
e o cais vazio de embarcações
só pra ver o ar, a areia do ar
as coisas todas em silêncio
as brumas paradas do depois
e o vento imóvel nas estepes

eu tenho vontade de morrer
só pra ver as coisas despidas
a água de um mar indecifrável
a sombra que fecunda o chão
e a linha do horizonte sem luz

eu tenho vontade de morrer
morrer como se diz das horas
das cinzas, das brumas
das rochas que tão caladas
repousam sem mágoa
e ternamente não falam

eu tenho vontade de morrer só
sem nada sem dor sem ninguém
só pra fruir não ser não estar
e sentir fundo o esquecimento
só pra ver o trabalho das nuvens

nuvens, que são delicadas
sem alarde sem mágoa
que se desfazem sem som
quero morrer como nuvem
tentar morrer sem saudade
reservado e docemente casto
desataviado de tudo

eu tenho que morrer urgente
antes que as pessoas notem
e me importunem com ais
e me cubram de flores
e maculem a hora precisa
com o arrastar dos móveis
com "como eu era bom"
e depois me encerrem
num lugar sem nuvens

eu tenho vontade de morrer
de uma angústia no peito
da mesma que eu conheço já
eu que sei tanto de angústia
daquela boa, que tranca os canais

daquela que me dá vontade
de morrer num quarto
sem tv a cabo, sem wi-fi
sem janelas, sem serviçais
morrer como um dardo
que ao perder impulso cai
e ali permanece olvidado
sem flecha, sem alvo, sem arco
e sobretudo sem arqueiro.


                                  [ poema & pintura | ygor raduy ]

terça-feira, março 17, 2020

Stop the world


Quem diria que um microscópico vírus, uma coisinha mutante, supostamente cega, que se prolifera numa progressão geométrica, supostamente aleatória - e que as pessoas, em geral, mal sabem diferenciar de uma ameba (também não sei) - um "monstrinho" a pulular loucamente, numa velocidade voraz, sem inteligência nenhuma, sem sistema nervoso central, sem ciência e sensibilidade - quem diria, dizia eu, que uma bolinha esquisita viesse a impor uma nova ordem mundial? Uma nova ordem nas relações humanas, sociais, políticas, econômicas e culturais?

'Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...'

Seria a natureza cega a procurar, espontaneamente, uma nova ordem em meio ao caos mundial? A grande obra a se reorganizar, soberanamente, sem se importar com suas vítimas? Aquela que seleciona, sem enxergar um palmo adiante do nariz, quem fica, quem sobrevive, quem sucumbe e quem vai? Um corpúsculo diminuto, fluídico venenoso, descerebrado, e que, muitas vezes aumentado, mais parece um brinquedinho para divertir bichinhos de estimação?

Quem diria que essas bolinhas minúsculas e invisíveis viessem a ditar como nós, seres "humanos inteligentes", devemos nos comportar de agora em diante? Quem diria que esses parasitas intracelulares exigiriam que, de um "ninguém solta a mão de ninguém", passássemos a um "ninguém toca as mãos de ninguém?"

- Mantenham distância, manda o figurino. Lavem as mãos, sejam mais cuidadosos, solidários, reclusos, compassivos, empáticos e humanos. Protejam-se. No kisses, no hugs. Ensimesmem-se, aculturem-se, cuidem de seus filhos, seus pais, seus avós, seus irmãos e amigos, seus meramente conhecidos e, também, cuidem daqueles completamente desconhecidos.

Don't touch in... on... all or anymore?

To touch or not to touch?

Don't touch!
Stop the world!

'Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...'




.