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sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

quarta-feira, maio 24, 2017

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste.


Carlos Drummond de Andrade | 'A Um Ausente' | In: Farewell | Poesia Completa | Editora Nova Aguilar | Rio de Janeiro | 2007



Qualquer ser humano que conhece o amor e a dor da perda de um amor, ou de um amigo, sentir-se-ia, creio eu, profundamente tocado por esse belíssimo e penetrante poema. Mas nem todos, talvez, procurassem saber a trágica história que ele conta. A quem interessar possa, deixo aqui o link que a conta, por Marcelo Bortoloti:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1659927-a-homossexualidade-na-vida-e-na-obra-de-carlos-drummond-de-andrade.shtml


quarta-feira, novembro 11, 2009

Vaidade das vaidades: uma paixão vital


Hoje resolvi fazer aquela brincadeira de abrir um livro numa página qualquer para saber o que ele teria a me dizer de interessante, e que eu pudesse fazer comentários, de preferência, também, interessantes rs. Isso foi às 7:00 hs da manhã, quando me preparava para ir à academia cuidar um pouco, se Platão estiver certo, do cárcere da minha alma. Ora, se tenho de manter minha alma durante toda a minha vida num cárcere, que seja, então, num cárcere bem cuidado e agradável de se habitar.

Escolhi abrir o livro das citações de Eduardo Gianetti, já que ali se encontram boas e interessantes citações, especialmente, de filósofos e literatos. Perguntei a mim mesma: o que este belo e bom livro tem a me dizer right now? Abri, assim, ao acaso, na página 226, capítulo III.8 sobre “Ética pessoal: vícios, virtudes, valores”, intitulado, Vanitas Vanitatum, et Omnia Vanitas (Vaidade das vaidades, tudo é vaidade). Aliás, devo confessar, sem cerimônia, um título muito apropriado à ocasião, à minha própria pessoa e, conforme a opinião da maioria das mais eminentes figuras deste mundo, muito apropriado a qualquer pessoa; poder-se-ia mesmo dizer: a vaidade é própria da natureza humana.

É claro que ela deve variar em grau ou intensidade de pessoa para pessoa, mas, ao fim e ao cabo, o que eles dizem é que somos todos seres vaidosos (je suis d’accord). E isso, pelo que se vê, ocorre tanto pelo bem quanto pelo mal. Porém, em geral, fala-se da vaidade como algo muito negativo, uma guerra entre egos obesos (sabe-se que o desejo de admiração, reconhecimento e glória, quando levado ao exagero, transforma-se num dos sete pecados capitais). Todos se vangloriam de perceber a vaidade nos outros, mas quase ninguém a percebe em si próprio (o que não é o meu caso: percebo nos outros e em mim própria haha). Embora possamos mesmo constatar a existência de uma verdadeira guerra de vaidades entre as pessoas, num sentido negativo, por outro lado, penso que a vaidade, numa certa medida e, de preferência, na medida certa (quem sabe qual é?) é uma característica positiva da nossa natureza: uma paixão vital!


Ao que tudo indica, Malebranche (La recherche de la verité) concordaria comigo (rs, na verdade, eu é que concordo, em parte, com ele), pois eis o que o eminente padre diz: “Os homens não estão cientes do calor que emana de seu coração, embora ele dê vida e movimento a todas as outras partes do seu corpo. [...] O mesmo se dá com a vaidade: ela é tão natural para o homem que ele não a percebe. E, embora seja isso que dê, por assim dizer, vida e movimento à maioria dos seus pensamentos e desígnios, isso ocorre de um modo que é imperceptível para o sujeito”. Bom, eu diria quase imperceptível, tanto que na sequência Malebranche usa o termo ‘suficientemente’. “[...] Os homens não percebem suficientemente que é a vaidade que dá ímpeto à maioria de suas ações” (p.224). Não sei se na sequência da obra Malebranche depreciará o valor da vaidade (pois a citação se encerra aí), mas, a partir do que foi dito acima, pode-se reconhecer que a vaidade é, no mínimo, um elemento essencial em nossa vida.

La Rochefoucauld (Maxims), por sua vez, ao que parece, também concebe de modo positivo a presença da vaidade em nossa natureza quando afirma: “a virtude não iria longe se a vaidade não lhe fizesse companhia” e que “se alguma vez chegamos a admitir as nossas deficiências, fazemos isso por vaidade” (p.226).

Adam Smith (The theory of moral sentiments) segue mais ou menos a mesma linha quando assinala: “o desejo de obter a estima e a admiração de outras pessoas, quando se dá por meio de qualidades e talentos que são objetos naturais e apropriados da estima e da admiração, é o amor real da verdadeira glória; uma paixão que, se não é a melhor da natureza humana, está certamente entre as melhores. A vaidade é com freqüência nada mais que a tentativa de usurpar prematuramente essa glória antes que seja devida. Embora seu filho, antes dos vinte e cinco anos, não passe de um pretensioso, não desespere, por isso, de que ele se torne, antes de chegar aos quarenta, um homem sábio e valoroso, com real aptidão para todos os talentos e virtudes em relação aos quais não passa, no presente, de um vazio e exibido dissimulador. O grande segredo da educação reside em direcionar a vaidade para os objetos apropriados” (p.232-233).

Hugh Blair (On the proper estimate of human life) pensa que “embora todos os homens estejam de acordo sobre a doutrina geral da vaidade do mundo, tal é a sedução do amor-próprio que, não obstante, quase todos se vangloriam de que o seu próprio caso é uma exceção à regra comum” (p.224).

Na linha dessas reflexões, Nietzsche (Human, all too human), talvez o mais assumido vaidoso de todos os vaidosos, aquele que explica, em Ecce Homo, por que ele é tão sábio, tão inteligente e por que escreve livros tão bons, dá a velha e habitual alfinetada: “Aquele que nega possuir vaidade normalmente a possui de forma tão brutal que instintivamente ele fecha os olhos diante dela para não se ver obrigado a desprezar a si mesmo” (p.226).

Carlos Drummond de Andrade (Passeios da ilha), por seu turno, fala de si próprio do seguinte modo: “por muito que examine a minha vaidade, não lhe vejo o mesmo tom desagradável da dos outros. O que é uma vaidade suplementar” (p.224).

Já Hume abre sua autobiografia “My Own Life” escrevendo: “é difícil para um homem falar por muito tempo de si mesmo sem vaidade, portanto serei breve” (p.233).

Para encerrar, deixo aqui as palavras de Pascal (Pensées) a respeito do assunto:

“A vaidade está tão arraigada no coração do homem que um soldado, o ajudante de um soldado, um cozinheiro, um porteiro, todos vivem a se gabar e a procurar admiradores, e mesmo os filósofos [eu diria que, em geral, principalmente os filósofos] desejam tê-los. E aqueles que escrevem contra a vaidade desejam ter a glória de escrever bem; e aqueles que leem o que estes escreveram desejam a glória de ter lido isso; e eu, que escrevo este ataque à vaidade, talvez alimente também o mesmo anseio de glória: e talvez também os que leem isto” (colchetes meus, p.228).


(Citações extraídas de GIANETTI, Eduardo. O livro das citações: um breviário de ideias replicantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [cap. III8]. As páginas referem-se às citações encontradas no livro de Gianetti, e não às encontradas nas obras dos autores citados).

sexta-feira, outubro 09, 2009

Observações memoráveis



Gente! O Rio de Janeiro continua lindo... e isso é incrível, pois é uma terra de muitos contrastes (talvez por isso ele seja lindo, mas não só por isso). Ele é lindo, embora, logo na chegada, tenhamos que passar por um extenso caminho poluído com muito lixo e odores fétidos. E isso é lamentável, não dá pra deixar de perceber e, num certo sentido, sentir-se indignado. Vale perguntar: cadê o responsável, melhor, os responsáveis por esse desleixo com o lixo?

Mas eis que senão quando (?)... aos poucos, começamos a adentrar nas maravilhas dessa cidade que não é à toa que seja conhecida como “a” cidade maravilhosa, cheia de encantos mil. As maravilhas vêm primeiro à distância, por meio do porte das rochas que se impõem, lá de longe, aos nossos olhos. Depois, aquela natureza abundante e desbundante, que brota desavergonhada e imponentemente no meio dos espaços transitados, habitados e desabitados. Um verdadeiro espanto!

Podemos observar de tudo um pouco e, em alguns casos, de tudo muito. Muita gente bonita, aliás, linda, e muita gente feia também, aliás... (desculpem-me, mas não acredito que tenha alguém nesse mundo que não enxergue que existe uma diferença entre o belo e o feio, a despeito das diferenças nas apreciações que os seres humanos fazem).

Mas o Rio de Janeiro continua lindo. Do lixo chegamos ao luxo, da velharia das construções quatrocentonas com suas paredes e pisos revestidos de mármores e granitos à contemporaneidade iluminada e plastificada em meio a um trânsito caótico e colorido. Os sotaques arraxxxxxxtados, as figuras mais bizarras, as cores, o brega, o chic, o sofisticado, o tosco, o glamour e a simplicidade: quanta diversidade! As rochas são magníficas, de tirar o fôlego. A vegetação nem se fala, impossível não pasmar com ela. A lagoa, o mar, ah... o mar, nem é preciso dizer... "no mar estava escrita uma cidade". É preciso lê-la, e vivê-la.

E pra completar, além de todas as maravilhas que o Rio oferece, tive o prazer de sentar-me ao lado da estátua “o pensador de Copacabana”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, e ficar ali, na mesma pose que ele, a pensar e observar tanta vida. Confesso que por pouco não enlouqueci e bati um papo com ele rsrs. 


Carlos Drummond de Andrade, " No mar estava escrita uma cidade."