domingo, novembro 26, 2017

Alfinetada nietzscheana


Contra a soberba

Não se encha de ar: senão basta
Uma alfinetada para o estourar.



Para quem entende a língua alemã (o que não é o meu caso):

Gegen die Hoffahrt

Blas dich nicht auf: sonst bringet dich
Zum Platzen schon kleiner Stich.

[vich rs]

[Nietzsche | A gaia ciência | "Brincadeira, astúcia e vingança": Prelúdio em rimas alemãs | Tradução de Paulo César de Souza | São Paulo | Cia das Letras, 2001, p. 27]

segunda-feira, novembro 20, 2017

Perambulando


"Ele despertou suando, desarrumado, perambulou por um momento no apartamento. Depois acendeu um cigarro e sentou, com a cabeça vazia, olhou as dobras de sua calça amassada. Em sua boca havia o amargo do sono e do cigarro. Em torno dele, o dia lânguido e mole patinhava como na lama."




Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.11-12

sábado, novembro 04, 2017

Entre a solidão e o convívio social


David Hume [1711-1776], na conclusão do Livro 1 do Tratado da Natureza Humana (T) encontra-se num estado que tenho (quase) certeza de que, se não todos, ao menos a maior parte daqueles que estudam filosofia já se encontraram num dado momento de seus estudos, numa certa hora de seus dias ou de suas noites.


Hume se vê assustado, confuso, e numa solidão desesperadora diante das reflexões que empreendeu ao escrever e concluir o livro I do Tratado intitulado Do Entendimento


Logo no § 1 ele confessa, um tanto melancólico e desesperado, além de assustado e confuso, como se sente diante da viagem que empreendera. Salta, ao menos aos meus olhos, que Hume é, aqui, não apenas um filósofo, mas também um literato muito poético...



“Sinto-me como um homem que, após encalhar em vários bancos de areia, e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro, ainda tem a temeridade de fazer-se ao mar na mesma embarcação avariada e maltratada pelas intempéries, levando sua ambição a tal ponto que pensa em cruzar o globo terrestre em circunstâncias tão desfavoráveis. A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro. A condição desoladora, a fraqueza e desordem das faculdades que sou obrigado a empregar em minhas investigações, aumentam minhas apreensões. E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero, fazendo-me preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventurar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão. Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia; e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras, não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras, que o presente tema me proporciona em tamanha abundância” (T 1.4.7 §1).


Caminhando do prazer à dor, Hume hesita entre a inclinação natural a buscar diversões e companhias e a inclinação natural a devanear solitariamente.

“A  visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha existência, e a quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço influência, e quem exerce influência sobre mim? Todas essas questões me confundem, e começo a me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela mais profunda escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades (T 1.4.7 §8). Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então fornecendo-me alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que apagam todas essas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão. Quando quero retomar essas especulações, elas me parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não me sinto mais disposto a levá-las adiante” (T 1.4.7.§9).

Nesse momento, Hume se encontra “absoluta e necessariamente determinado a viver, a falar e a agir como as outras pessoas, nos assuntos da vida corrente”, e se diz pronto a lançar ao fogo todos os seus livros e papéis, bem como disposto a nunca mais renunciar “aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia” (T 1.4.7.§10).

Em seguida, ele pergunta a si mesmo: “... seguir-se-á que devo lutar contra a corrente da natureza, que me conduz à indolência e ao prazer? Que devo me isolar, em alguma medida, do comércio e da sociedade dos outros homens? E que tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias, no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão penosa, nem tenho qualquer perspectiva tolerável de, por seu intermédio, chegar à verdade e à certeza (T 1.4.7.§10)?

E então? Deverá Hume continuar “a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora” (T 1.4.7.§10) ele encontrou? 


E eu? Deverei...?

[HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. — São Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001].

quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)