sexta-feira, julho 28, 2017

Cumplicidade



[ Eve | by Anna Lea Merritt 1844-1930 ]

MAÇÃ

Como se esta, ela, não estando morta, porém vivacíssima, guarda a suculência e o ritmo – como guardas tu a plenipotência o ritmo da tua pulsação – ela, a fruta sobre a mesa, nem flor, nem luz, nem silêncio, porém delicadamente silenciosa, como tu és delicadamente silencioso quando te convém. Ela, que pendia de um galho da árvore do conhecimento, proibida, porém atraente e infinitamente sedutora – assim como tu pendes à minha frente, evidentemente dulcíssimo, sem que eu possa em ti cravar os dentes, ou melhor, lentamente passear em ti e ao teu redor. Ela, a fruta, ele, o ente, estando ambos secretamente semelhantes, secretamente cúmplices de um mesmo e inocente crime, qual seja, o de estarem simplesmente existentes, porém absolutamente inacessíveis.

[ Ygor Raduy ]

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(Trata-se, acima, de mais um verbete do 'Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir) Relevantes II', written by my dearest friend Ygor Raduy, que gentilmente me concedeu o privilégio e o prazer de torná-lo público, tal como, aos poucos, tenho feito). 

sábado, julho 22, 2017

Dissolução


Pois se vens tu ao meu encontro ao fim da tarde, e com teus olhos negros, teu sorriso, te diriges a mim, com teus passos cuidadosos, tua fala macia e hesitante, procuro recolher em mim o som da tua voz, de modo que em algum lugar em mim possa ele permanecer guardado, quem sabe em algum fundo recesso do meu peito, quem sabe mesmo no centro do meu coração.

Pois se vens tu ao meu encontro ao fim da tarde, desconfio que sejas tu a própria tarde, e que o vento, o farfalhar das folhas e até mesmo a luz que ao fim da tarde arredonda os contornos das coisas e cobre tudo e todos com seu brilho fosco – desconfio que seja tudo isso uma parte de ti, que o que vejo ao fim da tarde não passa de uma extensão do teu corpo, do teu nome e do teu ser.

Mas em tudo isso devo estar enganado. Pois se algo em mim quer apagar o limite que te separa da tarde, se algo em mim insiste em dissolver-te na tarde, é porque dissolvendo-te em ar posso aspirar-te, dissolvendo-te em vento posso sentir na face o contato quase imaterial dos teus dedos e dissolvendo-te em luz posso participar do teu brilho e secretamente desfrutar do teu calor.


texto | Ygor Raduy | Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes II 



quarta-feira, julho 19, 2017

Voz da noite


O sol se apaga.
De mansinho,
a sombra cresce.

A voz da noite
diz, baixinho:
esquece... esquece..

[ Helena Kolody | Viagem no Espelho | 1988 ]



domingo, julho 16, 2017

Ausência de tudo


Há apenas o que chamamos silêncio
ou uma ausência de tudo: nome este que damos
à instância que nos remete ao nada,
à constância que nos remete ao vácuo,
o inapelável que nos remete à morte.

Há um rangido macio, sem quebras
mas com rodopios, falsetes, arabescos:
é o que chamamos sonho, miragem,
clivagem de entraves espaçados,
aragem dos frutos na colheita.

Há um susto, um murmúrio surdo,
um baque sem ouvintes, vestimenta:
é quando um poeta deixa de crer na linguagem.
Tão inteiro então é o silêncio
que é como se a noite mesma se fechasse.

Como se o ar, parado se abismasse;
e o fruto mesmo então é inconsistente;
e as vagas cedem, recrudescem à procura
De um pouso inabitável. Ou ainda:
inexistente.

[ poema & pintura | ygor raduy ]



domingo, julho 09, 2017

Retrato antigo


Ontem, ao rever essa foto de minha mãe, Walkyria Ferraz, lembrei-me desse poeminha...

"Quem é essa
que me olha
de tão longe,
com olhos que foram meus? "

[ Helena Kolody | Retrato Antigo | Poemas do amor impossível | 2002 ]



Para minha surpresa, ela [my mom] me disse que foi aluna da Helena Kolody no Instituto de Educação do Paraná. Achei o máaaximo (quisera eu...).

A foto, de Mirian Costa Vajani, foi a vencedora do 1º lugar no Concurso Desafio Virtual do Fotoclube de Londrina/2016 e encontra-se exposta no foyer do Cine Teatro Ouro Verde.

quinta-feira, julho 06, 2017

Pintura



man over yellow background
drawing | ygor raduy


Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos


Ferreira Gullar | Pintura | in Relâmpagos | São Paulo | Cosac & Naify  2003

segunda-feira, julho 03, 2017

Noturno


VIII

É noite. Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado;
e, no tear da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus lumiosos para o universal noivado.

Suponho ser a treva uma alcova sombria,
onde tudo repousa unido, acasalado.
a Lua tece, borda e para a Terra envia
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.

Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra de quando em quando. É uma noite de bodas
esta noite... há por tudo um sensual arrepio.

Sinto pelos no vento... É a Volúpia que passa,
flexuosa, a se roçar por sobre as coisas todas,
como uma gata errando em seu eterno cio.


[Gilka Machado | Cristais Partidos ]


sábado, julho 01, 2017

O poeta pergunta a seu amor...

             
               "[...]
             
                Não viste pelo ar transparente
               uma dália de penas e alegrias
               que te mandou meu coração quente?"


surreal digital paintings 
by aykut aydoğdu


F. García Lorca | Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit | Tradução de William Agel de Mello | SP | MEDIAfashion | 2012 | p.27