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domingo, agosto 05, 2018

Diletantes, diletantes!





Os escritos filosóficos considerados menores de Arthur Schopenhauer, Parerga e Paralipomena [1851] (traduzido por Restos e Acessórios), traz um título bastante estranho, mas que se esclarece em seu subtítulo: "Pensamentos isolados, todavia ordenados sistematicamente, sobre diversos assuntos".

Pode-se dizer que essa obra é uma espécie de coletânea de pequenos ensaios filosóficos sobre temas variados. Nela, Schopenhauer discute questões fundamentais que já foram desenvolvidas em algumas de suas obras anteriores como, por exemplo, em O mundo como vontade e representação [1818] ou em Sobre o fundamento da moral [1840], mas discute também assuntos mais prosaicos como, por exemplo, em Sobre as mulheres, a natureza, o valor e a aptidão das mulheres - um escrito polêmico sobre o qual já  me meti a comentar aqui - o que, por sua vez, causou a fúria de grande parte do meu parco exército de leitores anônimos (cujos comentários ofensivos não foram publicados), e alguns pequenos debates interessantes.

Contudo, não vim aqui para falar sobre as mulheres, mas sim para apresentar uma curiosa passagem de A arte de escrever: uma pequena coletânea de cinco escritos extraídos dos Parerga e Paralipomena (na tradução de Pedro Süssekind) que a LP&M, em sua primeira edição, publicou em 2005. Em tais ensaios, Schopenhauer tece considerações a respeito de diversos assuntos relacionados à literatura. 

Ele critica de modo sempre muito contundente e, às vezes, até mesmo muito engraçado, mal-humorado (as usual), e, ainda, de modo injusto, a literatura de consumo, buscando identificar a decadência da literatura por intermédio de uma crítica aos escritores eruditos de sua época, sobretudo da Alemanha. Conforme Süssekind assinala, nestes curtos ensaios ele também defende "um outro tipo de produção literária que possa ser contraposto ao então vigente" (p.9). Mas o ponto aqui não é esse.





 Vamos à passagem:

"Diletantes, diletantes! - Assim os que exercem uma ciência ou uma arte por amor a ela, por alegria, per il loro diletto [pelo seu deleite], são chamados com desprezo por aqueles que se consagram a tais coisas com vistas ao que ganham, porque seu objeto dileto é o dinheiro que têm a receber. Esse desdém se baseia na sua convicção desprezível de que ninguém se dedicaria seriamente a um assunto se não fosse impelido pela necessidade, pela fome ou por uma avidez semelhante. O público possui o mesmo espírito e, por conseguinte, a mesma opinião: daí provém seu respeito habitual pelas 'pessoas da área' e sua desconfiança em relação aos diletantes. Na verdade, para o diletante, ao contrário, o assunto é o fim, e para o homem da área como tal, apenas um meio. No entanto, só se dedicará a um assunto com toda a seriedade alguém que esteja envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor, con amore. É sempre de tais pessoas, e não dos assalariados, que vêm as grandes descobertas" (Schopenhauer | Sobre a erudição e os eruditos | § 6 | p.23).

Well, nada impede alguém da área de se ocupar de seu assunto com amor, e de um assalariado fazer grandes descobertas. Quer dizer, "alguém da área" e "ocupar-se de seu assunto com amor" não são coisas necessariamente excludentes, tampouco um "assalariado" fazer "grandes descobertas". Mas sabemos que Schopenhauer possui uma verve acalorada, considerada muitas vezes no mínimo politicamente incorreta, e o que ele quer mesmo dizer é que "para a imensa maioria dos eruditos, sua ciência é um meio e não um fim, [...] e que a verdadeira excelência só pode ser alcançada, em obras de todos os gêneros, quando elas forem produzidas em função de si mesmas e não como meios para fins ulteriores" (§ 4, p.21). 

No entanto, os fatos parecem contradizer essa teoria se pensarmos, por exemplo, nas condições sob as quais, de acordo com o que a história nos conta, muitas vezes, Balzac e Dostoiévski produziram suas obras, ou seja, para pagarem suas dívidas.  Talvez se Schopenhauer tivesse incluído um 'apenas', a frase acima citada teria soado melhor: "a verdadeira excelência só pode ser alcançada, em obras de todos os gêneros, quando elas forem produzidas em função de si mesmas e não [apenas] como meios para fins ulteriores". Pois nada impede que os artistas, literatos, escritores e filósofos se sustentem ou ganhem dinheiro com a arte e/ou a ciência que os envolvem con amore, ou com as quais eles se envolvem per amore. 


sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]

sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Um pico certeiro na veia



Dalton Trevisan disse uma vez que "um bom conto é pico certeiro na veia". A meu ver, ao dizer isso, Trevisan já nos dá um pico na veia. No entanto, não estou aqui para falar de contos, mas sim de filosofia.

Mutadis mutandis, penso que existem mais coisas boas, além de um bom conto, que podem ser consideradas um "pico certeiro na veia": uma frase forte, densa, profunda, curta e precisa (tal como essa picada dada pelo próprio Trevisan); três, cinco, ou, talvez, sete linhas contidas numa ideia breve, mas brilhante, que nos atinja como um olhar dardejante, ou mesmo uma paulada na cabeça, um corte na jugular ou um tiro na fonte. Sim, um pico certeiro na veia, tal como uma facada no peito, pode nos levar desta para o nada absoluto (pois não creio que a gente vá desta para melhor). 

Além dos literatos, alguns filósofos são especialistas em picar nossas veias. Schopenhauer é um deles. Ao tratar do tema "felicidade", um tópico caro à filosofia, bem como a qualquer mortal comum, ele tem coisas interessantes a dizer, ainda que possa soar no mínimo curioso um filósofo pessimista (que concebe o sofrimento como a essência da vida e a felicidade como simples ausência de dor) ter algo interessante a dizer sobre a arte de ser feliz. Acerca desse tema já teci alguns comentários aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/02/felicidade-amor-pelo-estudo-e-ilusoes.html e aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/03/ilusao-crenca-esperanca-paixao-e-auto.html a partir de outros autores da filosofia.

Em A Arte de Ser Feliz (um pequeno tratado que contém anotações, máximas e regras de vida), Schopenhauer afirma, entre muitas outras coisas, que a principal verdade da arte de ser feliz é a de que tudo depende muito menos daquilo que se tem ou representa do que daquilo que se é... e que "a personalidade é a felicidade suprema" (p. 126). Quer dizer, o que se tem (bens e posses) ou representa (a reputação, a categoria, a fama) são bens necessários para a felicidade, mas o que se é (a personalidade), é, de longe, mais fundamental para atingir tal fim (p.123). “Aquilo que alguém tem para si mesmo, aquilo que o acompanha na solidão e que ninguém pode lhe dar ou tirar é muito mais essencial do que tudo o que possui ou do que ele representa aos olhos alheios” (p.126).

Convém notar que o termo personalidade é aqui concebido em sentido muito mais amplo, “compreendendo a saúde, a força, a beleza, o caráter moral, a inteligência e a educação da inteligência" (A Arte de Ser Feliz, p.123). De acordo com Schopenhauer, a maior parte desses bens  ─ que não só contribuem para a felicidade, mas também estabelecem “a diferença na sorte dos mortais” (p.123) ─ depende do quanto a natureza foi ou não generosa conosco - o que não significa, obviamente, que não podemos fazer nada com o que a natureza fez de nós. Como e qual é a (suposta) margem de manobra (ou liberdade) que temos para alterar as determinações que a mãe ou, dependendo do caso, a madrasta natureza fez de nós seria matéria para outro post (que não sei se um dia vou escrever).

Ele diz também (e aqui me aproximo de onde quero chegar) que "em todas as ocasiões possíveis usufrui-se na verdade apenas de si mesmo: se o próprio eu não vale muito, então, todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel” (Máxima 44, p.108).

Ora, quando Schopenhauer faz menção ao "próprio eu" (esse é o ponto), ele está a se referir especificamente ao caráter moral do sujeito, ou seja, àquilo que ele é em sua essência. Vale dizer, em sua consciência moral.

Em Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer se serve da máxima expressa pelos escolásticos  “Operari sequitur esse” segundo a qual as “ações se seguem do ser” ou “o fazer se segue do ser”, para enfatizar a dependência da ação de alguém em relação ao seu caráter. “Como alguém é, assim tem de agir” (SFM § 10: 96). Nesse sentido, as ações dos homens são signos de seu caráter. Então, se queres conhecer alguém, observes regularmente como ele age, como ele se comporta, que tipo de coisas ele é capaz ou não de fazer. A observação constante do temperamento, do comportamento e das ações de uma pessoa, sob determinadas circunstâncias, é fator indispensável para o conhecimento de seu caráter. Essa é uma regrinha básica de sabedoria de vida que poderia ser considerada um truísmo caso não fosse pronunciada pela boca de um filósofo da envergadura de Schopenhauer (e de outros tantos do mesmo calibre). Pois não se exige propriamente filosofia para o seu conhecimento ─ a experiência confirma a regra.

Mas voltemos à picada na veia (deixando de lado os problemas que emergem da distinção schopenhaueriana acerca do caráter inteligível, caráter empírico e caráter adquirido, bem como as consequências disso tudo para a teoria sobre a liberdade e responsabilidade moral). 

A sentença segundo a qual se o caráter do indivíduo "não vale muito... todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel" é, a meu ver, um pico certeiro na veiaFeliz de quem sacar essa “sabedoria de vida” e souber usar a margem de manobra que se tem para conseguir corrigir, com a experiência e a instrução (a educação da inteligência) os péssimos traços ou desvios de caráter com os quais a madrasta natureza por ventura o dotou. Ser belo, saudável, inteligente, sedutor, abastado (e possuir muitos outros bens) contribui em muito para a felicidade, mas se o caráter não for bom, dificilmente tal indivíduo será feliz ─ o que significa que a qualidade do caráter de um indivíduo é o que mais importa para a sua felicidade. 

Quem não teve a sorte de ser agraciado por uma natureza-mãe em sua constituição natural (especialmente quanto ao caráter e temperamento), e não compreender os princípios básicos da arte de ser feliz, jamais poderá saborear os néctares dos deuses, ainda que eles desçam dos céus e lhe ofereçam diretamente em seus lindos lábios.

segunda-feira, outubro 27, 2014

Vontade e vontade: Como assim?

Penso que é possível dizer que o conceito mais fundamental da filosofia de Schopenhauer é o de vontade. À primeira vista, parece muito simples, afinal, quem não sabe o que é vontade, ter vontade, sentir vontade? Como Schopenhauer mesmo diz: a vontade é o que há em nós de mais imediatamente conhecido (MVR §18). Mas cuidado: essa vontade é apenas a vontade como fenômeno. Ora, como assim? Bom, para responder a essa questão é necessário distinguir a vontade como coisa em si e a vontade como fenômeno. A vontade fenomênica (ao menos a nossa) é essa que se expressa em nossos desejos e atos particulares, ou seja, essa de que temos consciência e conhecemos através do nosso corpo. Vontade como designação da coisa em si e vontade como aparência ou manifestação fenomênica são coisas bem diferentes e essa distinção é condição sine qua non para entendermos a filosofia de Schopenhauer. Não se pode confundir a primeira que, considerada puramente em si mesma, é desprovida de conhecimento e, portanto, não é mais que um impulso cego, sem finalidade e direção; não se pode confundir, dizia eu, com a vontade humana ou com nenhum outro tipo de processo consciente. Ora, mas a vontade não é aquilo que sempre quer alguma coisa? Que corre para a satisfação de um ou mais desejos? Então, como pode não ter finalidade ou direção? Mais uma vez impõe-se a necessidade da famosa distinção.

A afirmação schopenhaueriana de que a vontade, como coisa-em-si (bem entendido) é um impulso cego, sem finalidade e direção, é inequívoca, uma vez que é textual em vários parágrafos de O Mundo como Vontade e Representação. Precisamente no § 29 Schopenhauer diz: “A ausência de qualquer finalidade e de qualquer limite é, com efeito, essencial à vontade em si, que é um esforço sem fim” (§29 p.172). “A renovação contínua da matéria em cada organismo é ainda uma simples manifestação deste esforço e deste movimento perpétuos. Um eterno devir, um escoamento sem fim, eis o que caracteriza as manifestações da vontade. Todo ato particular tem uma finalidade; a própria vontade não a tem; como todos os fenômenos naturais isolados, a sua aparição em tal lugar, em tal momento, é determinada por uma causa que lhe dá fundamento; mas a força mais geral que se manifesta nesse fenômeno não tem ela própria causa, visto que ela é apenas um grau das manifestações da coisa em si, da vontade que escapa ao princípio da razão. Em resumo, a vontade sabe sempre, quando a consciência a ilumina, o que quer em tal momento e em tal lugar; o que ela quer em geral, ela nunca o sabe” (§29 p.173).

Como vocês podem ver, Schopenhauer fala em finalidade também. Mas essa só existe no ato particular (de uma vontade como fenômeno, iluminada pelo conhecimento e submetida ao princípio de razão suficiente). “Assim, o homem tem sempre uma finalidade e motivos que regulam suas ações: pode sempre dar conta da sua conduta em cada caso. Mas perguntem-lhe por que é que ele quer, ou por que é que ele quer ser, de uma maneira geral: não saberá o que responder, a questão lhe parecerá mesmo absurda”(§29 p.172). Pois bem, em suma, para Schopenhauer o que a vontade (como coisa em si) quer é simplesmente viver. A vontade como coisa em si é vontade de vida, mas carece da consciência disso. Schopenhauer chega a dizer que falar em vontade de vida seria mesmo um pleonasmo porque vontade, como essência do mundo, já pressupõe o querer viver, à medida que incessantemente disputa, cega e obstinadamente, a matéria, o espaço e o tempo para objetivar-se no fenômeno. E a vontade pode objetivar-se como matéria inorgânica, orgânica vegetal ou orgânica animal. Seja aqui, lá ou acolá. Seja neste ou noutro momento qualquer.


quinta-feira, outubro 23, 2014

O espanto filosófico


"E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar pleno de admiração" (Platão. Teeteto, 155 d).


Não sei de quem é a tradução dessa passagem do Teeteto. Retirei-a daqui 
http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115685_03_cap_03.pdf
mas fui conferir na minha edição e a encontrei traduzida de modo diferente:

Vale dizer que nessa passagem Sócrates diz a Teeteto que Teodoro parece ser um bom avaliador no que tange à natureza de Teeteto (de possuir, entre muitas outras virtudes, um intelecto prodigiosamente bem dotado). Teeteto havia acabado de dizer a Sócrates estar perplexo, a ponto de chegar a experimentar vertigem quando se põe a considerar todas as questões que emergem da discussão a respeito do "que é conhecimento". Sócrates diz: "esse sentimento de perplexidade (müsteria) revela que és um filósofo, já que para a filosofia só existe um começo: a perplexidade"  (Teeteto, 155-d, edição da Edipro/2007).

Na edição da Fundação Calouste Gulbenkian a mesma passagem se apresenta traduzida do seguinte modo: "Efectivamente, meu amigo, Teodoro parece não ter adivinhado mal a tua natureza. Pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filósofo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este" (155-d).


"Teeteto - Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens.
Sócrates - Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia" (155-d).

Preciosismos acerca das traduções à parte (ai que mania), Aristóteles perfilha essa mesma visão ao afirmar na Metafísica [A 2 982 b 10-15] que "de fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples." 

Por sua vez, Schopenhauer, com sua concepção pessimista da existência, diz no suplemento 17 (referência ao § 15) do livro I do Mundo Como Vontade e Representação que:

"O espanto filosófico é no fundo uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam acalmar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias."

Sobre essa passagem (bem como sobre o significado de punctum pruriens) escrevi em 

[e, vejam só, cinco dias depois descubro de quem é a tradução da citação lá de cima, a que inspirou este post: é do Giovanni Reale em sua História da Filosofia Antiga volume I, p.387]

quinta-feira, dezembro 05, 2013

Tango Fati

Tango of the Archangel | Kees Van Dongen |1877-1968 
 Oil on canvas


Hoje, ao ouvir um tango, transbordei, tangamente, de emoções e lembranças. Coração disparado, agitado... Inspirei, expirei, suspirei, pausei! pensamentos pulularam no ritmo sincopado de meus batimentos cardíacos enquanto dirigia. Pisei no freio. Derrapei! ouvindo um tango. Ora, por que os tangos me encantam, arrebatam e extasiam desse modo? Porque são belos, penetrantes. Invadem-me não só pelos ouvidos, mas também pelas veias, poros e pulmões. Tangos circulam por todo o meu sistema sanguíneo e, por pouco, não me arrebentam as veias. Tangos... tangos... que bonitos. O que dizer?

Seria um caso daquilo sobre o que não se pode falar e que, portanto, deve-se calar? Se sim...  dane-se! vou transgredir esse famoso enunciado e falar mais um pouco sobre o que, talvez, devesse calar, ainda que Wittgenstein venha a se revirar na tumba. Trata-se de falar sobre o inefável, ainda que a lógica se descabele por eu ter proferido tamanha contradição. Trata-se de dizer sobre o indizível, ainda que me faltem palavras para exprimir as paixões que se agitam em meu peito em chamas e que se diga que o indizível só pode, então, ser mostrado.

Transbordo-me quando ouço um tango. Tangos agitam minhas paixões (desejos, amores, temores e dores). Eles têm um "q" de sagrado e um "q" de profano. Ao ouvir um belo e bom tango, ao menos por um breve momento, abandono-me em mim mesma e para além de mim mesma, tornando-me, digamos assim, metafísica ─ pura contemplação estética! É como se eu e o universo inteiro nos tornássemos um só em toda a sua plenitude. 

[ Acho que Schopenhauer iria gostar dessa última frase rs, mas só dessa última, uma vez que ele entende o belo como uma dissolução do eu: um rompimento completo das amarras da vontade de viver, que, por sua vez, é enlouquecida pelo querido e amado eu. Para Schopenhauer, a contemplação estética se dá por um apaziguamento, uma libertação momentânea dos grilhões da vontade, e não uma agitação do eu em tormentos passionais, como no meu caso. Well. deixemos, então, o "velho rabugento" pra lá ].

A meu ver, os tangos inspiram o amor ─ os amantes latinos ou os simplesmente amantes. A vida e a literatura estão repletas de amores calientes, ardentes, trágicos, dramáticos ou simplesmente amores. Quando ouço um tango, não quero mais nada, talvez, no máximo, um amante argentino rsr (brincadeirinha ─ mantenham o senso de humor)

Há tangos alegres ou felizes? Acho que não! Ao menos não me vem nenhum à memória. Arrisco-me a dizer, pois, que os tangos são sempre trágicos ─ exprimem os sofrimentos e dramas da existência, o que ela tem de belo, profundo, triste, dolorido e... (pausa)... trágico! E não são menos belos por trazerem à tona a tragicidade da existência. Ao contrário, precisamente por serem trágicos, os tangos são ainda mais belos. Creio que vêm ao encontro do conceito de Amor-Fati exposto por Nietzsche do seguinte modo:

"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas ─ assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas.  Amor Fati: Amor ao Destino". Tango Fati: "seja este, doravante, o meu amor" (A Gaia Ciência IV | § 276).



terça-feira, agosto 17, 2010

Schopenhauer, as mulheres e os homens


Caro Fernando, obrigada pelo comentário em http://mariliacortes.blogspot.com/2010/03/arte-de-lidar-com-as-mulheres.html. Minhas observações estouraram o número de caracteres no campo dos comentários, por isso, publiquei-as aqui.



Infelizmente não tenho comigo, de modo completo, essa parte da filosofia de Schopenhauer. Meus comentários foram com base nas pequenas citações contidas no pequeno excerto que citei. Sei que isso traz o inconveniente de nos levar a imprecisões e equívocos interpretativos ─ por não contemplar a profundidade e extensão da teoria que o filósofo apresenta. Schopenhauer é um grande filósofo, mas que, como qualquer outro, pode cometer alguns pecados filosóficos, talvez não por estar completamente equivocado, mas simplesmente por fazer afirmações peremptórias que, a meu ver, não passam de hipóteses mais ou menos prováveis. Digamos que a hipótese de Schopenhauer seja mais do que menos provável em alguns aspectos! Digamos que a hipótese de Schopenhauer não seja completamente implausível, mas também que não se constitui numa verdade universal e necessária, tal como ele parece pretender. Que ela seja plausível... (o que já é bastante!).

Bom, devido à falta de um material em mãos para consultar, qualquer coisa que eu diga aqui será apenas a partir do que você citou e comentou: de minha parte, então, faço aqui rasos e arriscados (talvez até suicidas) comentários ao pé da letra (sem levar muito em conta o espírito), repletos muito mais de perguntas do que de respostas.

Segundo você, Schopenhauer diz:  "o homem dificilmente alcança a maturidade da sua razão e das suas capacidades intelectuais antes dos vinte e oito anos de idade; a mulher, aos dezoito. Trata-se também de uma lógica: uma lógica bem medida. Por isso, as mulheres permanecem crianças ao longo de toda a sua vida, vendo apenas o que está próximo, prendendo-se ao presente, tomando a aparência das coisas pelas coisas em si e dando prioridade a ninharias em detrimento de assuntos mais importantes:"

Pergunto: Quer dizer que as mulheres amadurecem (quanto à razão e suas capacidades intelectuais) aos 18 anos e, ao mesmo tempo, permanecem crianças ao longo de toda a sua vida, e que por isso essas faculdades são nelas mais falhas e imperfeitas? Quer dizer que quanto à razão e suas capacidades intelectuais as mulheres “estacionam” aos 18 anos? Mulheres amadurecem (de que modo: emocionalmente apenas?) permanecendo imaturas intelectualmente? Como assim? Não posso deixar de pensar que alguma inconsistência permeia esse raciocínio, ainda que, talvez, eu não possa prontamente indicá-la.

 Você diz que o autor justifica que os homens têm intelectos superiores aos das mulheres no parágrafo "Maturidade - masculina e feminina" (p. 16) afirmando que "quanto mais nobre e perfeita é uma coisa, mais tarde e mais lentamente ela atinge a maturidade.” Ora, com base em que Schopenhauer afirma isso? O que nos garante que as coisas são de fato assim? Talvez Schopenhauer tenha uma bom fundamento para dar suporte a isso: mas qual seria exatamente? Não sei como (ao menos a partir do século 20) é possível alguém dizer que tem conseguido constatar isso de forma empírica, tal como você disse.

Você conclui: "portanto, segundo o autor, os homens apreendem a inteligência das mães (tem lógica porque na maioria das sociedades de todos os tempos os filhos passam mais tempo com as mães do que com os pais), mas esta inteligência não nasce e fica por aí, esta inteligência vai evoluindo ao longo dos anos como está evidenciado no parágrafo que citei, chegando a um ponto que supera a inteligência das mães".

Quer dizer que os filhos, ao passarem mais tempo com as mães (“estacionadas”, sempre crianças, infantis e incapazes de desenvolver seus intelectos) desenvolvem suas inteligências naturalmente (herdadas das mães, segundo Schopenhauer) num ritmo 10 anos mais lento do que os de suas mães, e que, por isso, as superam em inteligência? Ele fala em herança ou desenvolvimento de inteligência? É essa inteligência herança genética ou, digamos assim, adquirida e desenvolvida pela educação? Não sei, mas parece haver algum parafuso solto aí.

Tudo bem que temos nos homens, como você bem assinala, os maiores exemplos de grandes feitos em várias áreas por toda a história. Mas não poderíamos atribuir este fato também a várias outras causas e circunstâncias? Todo mundo sabe que as mulheres por milênios foram subjugadas à força masculina (inegavelmente maior). Não bastaria que as coisas fossem assim para impedi-las de desenvolverem seus talentos e/ou capacidades intelectuais? Em alguns períodos da história, por exemplo, as mulheres nem mesmo eram consideradas cidadãs, e estavam muito mais próximas do status dos escravos do que de qualquer acesso às importantes áreas do conhecimento, ou de qualquer caminho que pudesse levá-las a desenvolver seus “supostos” talentos (fosse como escritora, cientista, política, filósofa ou coisa que o valha). E será que era por que elas não tinham inteligência e talento para mudar isso, ou porque estavam constrangidas pela necessidade (de um lado pela própria natureza ─ mais sensível, frágil e delicada ─ e, de outro, pelo subjugo da força masculina)? A superioridade masculina nesse aspecto (da força física) é mesmo superior!



Todo mundo sabe também que às mulheres sempre foram delegados os cuidados com os filhos e atividades domésticas em geral. Não nego que a natureza, num certo sentido, moldou-as biologicamente para a gestação e cuidado com os filhos, mas penso que nem por isso deixou de conceder-lhes razão e inteligência (em muitos casos, maior do que em muitos homens) para mudar aquilo que é possível nessa história. E penso que isso sim pode, agora, ser constatado de forma empírica. Veja nos últimos tempos a quantidade de mulheres que ascenderam ao poder político; a quantidade de mulheres superando muitos homens nas atividades econômicas, administrativas, científicas, acadêmicas, etc, e ainda dando conta dos filhos e atividades domésticas. É claro que alguém pode argumentar que a proporção é muito pequena. Mas o que nos garante que as mulheres não possam vir a superar, numa proporção cada vez maior, os homens em suas aptidões intelectuais? Será mesmo que os homens permanecerão sempre realizando maiores feitos que as mulheres, em todos esses campos do conhecimento, nessa proporção tão desmedida? Tenho dúvidas de que isso esteja determinado genética e biologicamente ad infinitum por uma diferença em nossas constituições intelectuais.

Você diz: 'É de salientar que este autor estava ligado ao mundo das artes, aliás, ele próprio gostava de tocar flauta, e ele também faz muita referência às mulheres nas suas actividades': "Com toda a razão, poder-se-ia chamar o sexo feminino de não-estético. Nem para a música, nem para a poesia, tampouco para as artes plásticas as mulheres têm, real e verdadeiramente, talento e sensibilidade... (p. 63). Assim, como a lula, também a mulher gosta de se esconder na dissimulação e de nadar na mentira’, e de facto, o teatro vive da mentira, já que o que se representa não é o que está a acontecer na realidade”.

O que dizer, então, da quantidade de homens artistas (famosos e premiadíssimos) de teatro e televisão? Seriam eles lulas que gostam de se esconder na dissimulação e nadar na mentira? Ou eles seriam, por conta desses seus talentos, efeminados? Por acaso a poesia, a pintura e as artes plásticas tratam da realidade? Elas também não são representações? Ou os talentosos e sensíveis homens que produziram verdadeiras obras primas ao longo de todos esses séculos nessas áreas retrataram a realidade e reproduziram a própria coisa em si? Onde está a lógica bem medida em tudo isso?

Bom, embora eu também tenha Schopenhauer em alta conta, ao menos em relação à parte que melhor conheço (e que no fundo é pouca) de sua filosofia, acho que a argumentação dele nesse assunto, se não for completamente equivocada (e olha que não acho que seja completamente), se mostra bastante arriscada, parcial, preconceituosa e dogmática, ao menos na maneira pela qual ele as apresenta. Talvez fosse o caso de ele apenas cultivar um pouco de papas na língua. Não tenho a menor inclinação para achar que as mulheres são superiores ou exatamente iguais aos homens (tampouco inferiores, exceto em força física), mas também não posso deixar de observar toda essa falta de compostura verbal. Que ele é um grande filósofo, ah... isso ele é, mas que fala umas besteiras, carrega nas tintas e é rabugento, ah... isso ele também faz e é! Não dá pra ouvir tudo isso e ficar quieta, ainda que ele tenha bons argumentos para dar apoio às suas melhores teses (que certamente não são as sobre as mulheres).

[imagem 2 | Francisco de Zurbarán | Hércules destrói o leão de Nemeia |1634 ]

quinta-feira, março 25, 2010

A arte de lidar com as mulheres



Quem lê o título desse pequeno tratado (A arte de lidar com as mulheres), “um florilégio de sentenças”, imagina que vai encontrar ali, no mínimo, percepções agudas e excelentes dicas de como lidar com as mulheres (já que se propõe a revelar uma arte).

De fato, para alguém falar com propriedade sobre as mulheres é necessário ter não só perspicácia como também um conhecimento elevado e profundo de sua natureza: é preciso saber como elas pensam, sentem e agem, não só em geral, mas também em determinadas circunstâncias.

Obviamente o autor, ao expressar ali suas opiniões sobre as mulheres, julgou-se bastante conhecedor delas. Porém, embora não se possa dizer que ele desconhecia totalmente as mulheres, na verdade, nesse tratado, ele atirou em seu próprio pé, pois não encontramos, salvo em algumas passagens, muita coisa sensata. Ao contrário, damos de cara com um festival de bobagens ditas pelo (nada mais nada menos) grande e admirável filósofo Schopenhauer (e isso não é nenhuma ironia; ele é, de fato, grande e admirável, mas até mesmo os grandes filósofos podem dizer e disseram algumas asneiras).

Franco Volpi, autor da introdução e notas da edição da Martins Fontes, 2004, adverte-nos de que “ao ler-se o presente tratado, devem ser levados em conta os condicionamentos e as circunstâncias, ou seja, o pesado fardo da tradição machista e os atávicos preconceitos que calcam a pena de Schopenhauer” (XIV) ─ apenas um entre tantos filósofos falidos no amor.

Ora, o que se passou na cabeça de Schopenhauer ao escrever sobre as mulheres não expressa todo o seu pensamento ou toda a sua filosofia que, por mais que traga algumas ideias indefensáveis, é de inestimável valor e matéria para muitas teses e discussões interessantes. No fundo, eu o tenho em alta conta. Tanto que já lhe rendi aqui mesmo (neste blog) muitos elogios e escrevi também um TCC sobre o tema da liberdade da vontade em Schopenhauer. Mas isso não me impede de exclamar:

my god, há aqui tantas bobagens (e carregadas nas tintas) que ao lê-las dá vontade de sair berrando!!! (lembrei-me de alguém dizendo isso diante de um absurdo patente).

Ainda segundo Volpi, não se pode também desconsiderar “a difícil relação que Schopenhauer teve com a figura materna”, relação esta que provavelmente causou a “exacerbada misoginia e indefensável, quase caricatural, imagem da mulher que, em sua obra, Schopenhauer pretendeu fundar em bases metafísicas” (XVII-XVIII)

Desculpas e justificativas da inépcia schopenhaueriana à parte, e a despeito de alguém que possa argumentar que todo autor paga, de um certo modo, um certo tributo a seu tempo, vamos ao que interessa, ou seja, às proposições ricas de “aspectos hilariantes, aptas ─ como um clássico hors d’âge ─ a divertir qualquer um” (XXIX). Talvez alguém dissesse mais: aptas também a indignar as mulheres (e alguns homens sensíveis e inteligentes). Mas, no fundo, não dá para levar muita coisa a sério.

Eis, então, algumas “pérolas” schopenhauerianas:


“As mulheres são o sexus sequior, o sexo que sob qualquer ponto de vista é o inferior, o segundo sexo, e em relação a cuja fraqueza deve-se, por conseguinte, ter consideração. Contudo, demonstrar-lhes veneração é extremamente ridículo e nos diminui aos olhos delas” (p. 4).

Ora, talvez alguém possa defender que aqui nem tudo é bobagem. Como bem me lembrou o Aguinaldo, Schopenhauer teve algumas intuições básicas em relação às diferenças biológicas entre as mulheres e os homens dignas de consideração. Porém, dear Aguinaldo, nem por isso elas são sob qualquer ponto de vista inferiores. Talvez pudéssemos dizer que em relação à força física ou a determinadas aptidões elas sejam, respectivamente, mais fracas e menos habilidosas, do mesmo modo que os homens também o são em relação a outras qualidades e aspectos.

“A mulher no Ocidente, particularmente aquela que é chamada de “dama”, encontra-se em uma falsa posição, pois a mulher, que os antigos com razão chamavam de sexus sequior, não merece de forma alguma ser o objeto de nosso respeito e veneração, trazer a cabeça mais erguida que a do homem e ter os mesmos direitos que ele. Vemos perfeitamente as consequências dessa falsa posição. Seria, por conseguinte, muito desejável que também na Europa esse número dois do sexo humano fosse recolocado em seu lugar natural, e que se desse um fim a esse monstro chamado dama, do qual não apenas toda a Ásia se ri, mas também a Grécia e Roma teriam se rido; as consequências, no aspecto social, burguês e político, seriam incalculavelmente benéficas. [...] A verdadeira “dama” européia é uma criatura que simplesmente não deveria existir; o que deveria sim haver são donas de casa e moças que tivessem a esperança de vir a sê-lo, de forma que não seriam educadas para a arrogância, mas para a vida doméstica e a submissão” (p. 97-98).

Uau, essa é de doer! Simplesmente indefensável...

“Com toda razão, poder-se-ia chamar o sexo feminino de não-estético. Nem para a música, nem para a poesia, tampouco para as artes plásticas as mulheres têm, real e verdadeiramente, talento e sensibilidade; quando, porém, elas afetam ou simulam essas qualidades, de nada mais se trata senão de pura macaquice voltada a seu desejo de agradar” (p. 85).

“Quando as leis concederam às mulheres os mesmos direitos dos homens, elas deveriam ter lhes dado também um intelecto masculino” (p. 79).

Bom, se tivessem me oferecido um intelecto masculino eu o recusaria sem titubear.

Mas curioso é que o próprio Schopenhauer em algum lugar (não me lembro onde, sorry) afirma que os filhos herdam do pai o caráter e da mãe o intelecto (ou a inteligência). Ora, com base em que ele afirma que do pai herdamos o caráter e da mãe o intelecto?

Ademais, se os filhos herdam o intelecto ou a inteligência da mãe, como podem possuir intelectos superiores aos das mulheres? Bom, alguém poderia argumentar que o intelecto materno, ao se unir a características específicas da genética masculina, produz intelectos superiores. Bom, aí o caldo engrossa... 

“O domínio natural da mulher sobre o sexo masculino por meio da sensação de satisfação dura cerca de dezesseis anos. Aos quarenta anos, a mulher não está mais apta para a satisfação sexual” (p. 47).

Tá aí a mulherada (e a história) que o faz mentir.

Talvez ele devesse ter dito que ela não está mais apta à procriação, embora hoje em dia, apesar de não ser propriamente desejável que as mulheres resolvam procriar aos quarenta anos, não há mais nenhuma contra-indicação relevante ou impedimento natural para isso (com algumas exceções, é claro). E os fatos atestam que as mulheres ainda e depois dos quarenta estão sim aptas à satisfação sexual. Quanto a isso, Schopenhauer pisa feio na bola.

“Quando a natureza dividiu o sexo humano em duas partes, não fez o corte exatamente na metade. Em toda polaridade, a diferença entre o pólo positivo e o negativo não é puramente qualitativa, mas também quantitativa. É assim que também os antigos e os povos orientais viam as mulheres e, consequentemente, reconheciam a posição adequada a elas muito melhor do que nós, com nossa galanteria francesa fora de moda e nossa veneração despropositada às mulheres ─ a mais fina flor da estupidez germânico-cristã ─, que só serviu para torná-las arrogantes e sem consideração, fazendo às vezes lembrar os macacos sagrados de Benares, que, por terem consciência de sua santidade e inviolabilidade, se permitiam tudo e qualquer coisa” (p. 9-10).

Ai... sem comentários!

“As mulheres, como pessoas que, por causa da fraqueza de seu intelecto, são muito menos capazes do que os homens de entender, reter e tomar como norma princípios gerais, ficam em regra atrás deles em relação à virtude da justiça e, portanto, também da probidade e da retidão; por isso, a injustiça e a falsidade são seus fardos mais frequentes e a mentira seu elemento real. [...] A idéia de ver mulheres exercendo a magistratura desperta risos” (p. 93)

Ora ora Schopenhauer, eu diria, é você quem, aqui, nos desperta risos.

Ok, ok... não nos esqueçamos das intuições schopenhauerianas básicas sobre a vontade de vida e do instinto sexual no interesse da espécie. Não nos esqueçamos também de suas idéias até que sensatas sobre o casamento, a monogamia e a poligamia, mas que falta fez, na época, um exemplar do rei Juan Carlos para dizer ao menos em alguns momentos: “por qué no te callas” Schopenhauer?

Uma última observação: o título aqui não é o original de Schopenhauer, pois este ensaio, contido na obra Parerga e Paralipomena (1851), traz apenas o título Sobre as mulheres, e não A Arte de Lidar com as Mulheres.

terça-feira, abril 21, 2009

Apetite de viver e vontade de potência

Caro Aguinaldo, obrigada pelo comentário... sempre provocador!!! E já que rendeu interpretações diversas, resolvi publicar minha resposta nesse outro post.

Não acho que você interpretou mal. Mas sim de uma perspectiva unilateral. Acredito que o desespero pode ser entendido negativamente e associado à ausência de esperança, como algo que retira o amor de viver, como você falou. Mas também pode ser associado à esperança desesperada de vida, ou desespero de viver, de amar, de desejar e de ser feliz.

Posso dizer que fiz a associação que você fez em raríssimas situações em minha vida. O que me chamou a atenção na frase de Camus (e que me fez concordar com ele, por entendê-la a partir da minha vida, e não da dele) é a perspectiva, bem ao gosto nietzscheano (sorry rs), da Vontade de Potência, e, às vezes, mas só quando estou pessimista, ao gosto schopenhaueriano. No caso de Schopenhauer, refiro-me àquela vontade de vida insaciável, autofágica, sem direção e fim que nos leva a pendular do tédio à necessidade numa insatisfação desesperada. É um apetite desordenado, um desespero, mas não no sentido que geralmente eu entendo.

Meus desesperos não foram e não são raros, mas são desesperos que, em geral, aumentam o meu apetite de viver. Por isso simpatizo-me mais com a teoria nietzscheana (e aqui não quero entrar no mérito ou demérito de se Nietzsche é filósofo, poeta, bufão, louco ou dinamite) da Vontade de Potência, segundo a qual viveríamos (desesperadamente, a meu ver, se o quantum de vontade de potência for grande e forte) para ultrapassar limites, vencer desafios, culpas e ressentimentos – um auto superar-se, mas não naquele sentido piegas que a gente vive criticando rs.

Sendo mais radical, penso num desespero de poder vencer a morte. Não só a grande morte, no caso de a vida estar em risco, devido a uma doença fatal, um acidente grave, uma catástrofe, tragédia, ou apenas uma depressão profunda que, no extremo, te leve ao suicídio; como as pequenas mortes que vivemos em vida, ou seja, toda e qualquer perda que nos custe caro - como a de um amor, por exemplo.

Antes de associar desespero à falta de esperança, associo-o à esperança desesperada de superar (ou não ter que passar por) tudo isso aí que eu falei. É a idéia do náufrago que diante da consciência da morte iminente, agonizante, agarra-se a uma palha (ou tábua) na esperança de permanecer vivo: é desespero, mas é desespero de vida, de amor pela vida e por si próprio.

Você mesmo já me falou em algumas situações: nossa! como você ama a vida! não se desespere! Numa dessas vezes eu estava mesmo desesperada... e de medo! Voltávamos de Passo Fundo e na estrada despencou aquela chuva torrencial que tornou a viagem extremamente tensa e perigosa. Não enxergávamos um palmo adiante do nariz, não dava pra parar nos acostamentos, verdadeiras correntezas se formavam nas baixadas e curvas.

Enquanto isso, do outro lado do Estado do Paraná, minhas filhas mais novas também estavam na estrada, voltando de São Paulo com o pai, e eu, ali, com aquele espírito terrivelmente trágico, sofria desesperadamente com a idéia de que eles poderiam estar numa mesma (ou pior) situação, e que, portanto, alguma tragédia poderia ocorrer, fosse com eles ou conosco. O que me restava? Uma esperança desesperada de ultrapassar tudo aquilo e viver (apesar de tudo, pra mim, la vita è bella rsrs).

Quero (e acho que todo mundo quer) viver bem, feliz, com satisfação e prazer. Mas você sabe... não me agrada viver mornamente (não que eu goste de passar pela situação acima descrita). Como sou imperfeita, transbordo pelas tampas e peco, naturalmente, e na maioria das vezes, pelo excesso: excesso de intensidade rsrs. É isso que faz com que eu me identifique com o apetite desordenado, desespero e amor de viver de que Camus fala. Tá certo que com a experiência consegui ordenar melhor esse meu apetite, mas ainda faço muita desordem nessa vida hehehe.

Um beijo.


domingo, dezembro 14, 2008

Reflexões acerca de uma excursão pelas montanhas




























Dia desses um aluno me perguntou se eu era obrigada a participar das bancas de monografia ou TCCs que me aguardavam nos próximos dias. Expliquei-lhe que não, que os professores eram convidados (e não intimados) a compô-las, por isso, poderiam aceitar ou não. E conversei sobre a importância de participar de algumas bancas, já que isso faz parte do métier, e o quanto isso poderia ser interessante.

Esclareci, é claro, que não aceitaria, por exemplo, participar de uma banca sobre Hegel, Heidgger, Husserl (pra ficar só nos Hs), porque são autores que não estudo (apenas li por alto). Mas que aceitaria participar de bancas sobre Hobbes, Locke, Tomás de Aquino, Anselmo, Agostinho (sempre levando em conta o tema), enfim, que poderia participar da banca sobre autores que me são mais familiares.

Um autor que já estudei e volta e meia o retomo é Schopenhauer. Ao ler o TCC do Jorge Prado (um TCC nota 10), encontrei ali uma pequena citação que não conhecia, extraída de uma obra que eu também não conhecia. Sorvi aquele pequeno trecho com um prazer indescritível (não só aquele, mas aquele era especial, grávido de beleza e profundidade).

A despeito dos vários significados que a filosofia toma ao longo de sua história, bem como dos modos de se definir o que é filosofia, eis aí uma bela metáfora, uma definição, penso, mais poética do que filosófica (o que em hipótese alguma a desmerece, mas sim a enaltece), do que é filosofia:

"A filosofia é um elevado caminho montanhoso, o qual só se pode acessar seguindo uma vereda escarpada e pedregosa, cheia de pungentes pedregulhos. Essa via de acesso é uma senda solitária, que se torna mais intransitável quanto mais se ascende por ela. E quem a toma não deve abrigar temor algum, mas sim mostrar-se disposto a deixar tudo atrás de si, confiando em traçar seu próprio caminho sobre a fria neve. Ao bordejar o abismo e contemplar esse verde vale que ficou abaixo, experimentará uma poderosa sensação de vertigem. Mas terá de sobrepor-se a ela e sujeitar-se às rochas, ainda que seja com seu próprio sangue. Logo terá o mundo a seus pés, de sorte que seus pântanos e desertos se esfumacem, tornando, assim, qualquer irregularidade uniforme, até que suas dissonâncias deixem de importar. E em meio à semelhante atmosfera, tão pura quanto refrescante, nosso alpinista vê já o sol, ainda que abaixo reine, todavia, a negra noite."


(­­­­­­­­­­­­­­­­­SCHOPENHAUER, Arthur. Escritos inéditos de juventud: sentencias y aforismos II. Tradução de Roberto R. Aramayo. Valencia: Pre-Textos, 1999, p.27).

[Tela: O viajante sobre um mar de nuvens, 1818 Caspar David Friedrich (Alemanha, 1774-1840) óleo sobre tela, 98 x 74 cm Kunsthalle Hamburgo, Alemanha].

quinta-feira, maio 24, 2007

Schopenhauer e o pessimismo


Numa de minhas postagens abaixo “A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?”, usei a expressão punctum pruriens vista uma única vez no suplemento 17 (referência ao § 15) que Schopenhauer faz ao livro I do Mundo Como Vontade e Representação. Quando me servi dela prometi explicar depois o que significa. E aqui estou, depois de um longo e luminoso verão, para cumprir minha promessa.


Li essa expressão quando estudava a Teoria da Liberdade da Vontade de Schopenhauer – objeto do meu TCC. Ela me tocou sensivelmente porque, além da passagem em que a expressão se encontra ser extremamente bela, como eu não sou versada em latim, fiquei incomodada e curiosa para entendê-la. A expressão aparece na seguinte passagem:


"O espanto filosófico é, no fundo, uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e sua intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam aplacar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias." (Schopenhauer apud Rosset | Schopenhauer, philosophe de l'absurd | p.18)

Este trecho se apresenta de uma profundidade abissal. Ele atinge o ponto nevrálgico do pessimismo schopenhaueriano. Como se sabe, para Schopenhauer, “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida...” (PP, §148, 277) é o sofrimento. Trata-se do modo como ele concebe a existência, isto é, como uma dor infinita, um sofrimento inexorável. A felicidade, prazer ou bem-estar é avaliado pelo autor como ausência de sofrimento. Nesse sentido o fundamento destes é negativo, em oposição à positividade da dor. Para ele o sofrimento banha o mundo. A existência é falta, carência, desejo insaciável e necessidade. Quer dizer, prevalece a dor e o sofrimento. No § 65 do MVR, Schopenhauer diz: “Com efeito, o que é um sofrimento? Apenas uma vontade que não está satisfeita, e que está contrariada”.

Punctum pruriens significa ponto pruriente, de prurido mesmo. Aquele ponto que nos queima, seja pelo calor ou pelo frio. Vocês já ouviram falar de inferno gelado? Pois é, em geral quando pensamos em inferno, nos vemos logo ardendo em chamas. Mas o gelo também dói e queima, o que me faz lembrar a representação que os budistas fazem dos vários infernos, incluindo aí a idéia de um inferno gelado. Ou seja, punctum pruriens é aquele ponto que nos faz sentir comichão, que nos incomoda insuportavelmente, que nos faz desejar algo ardentemente, seja em alcançar ou possuir algo, seja em nos livrar de algo. Quando Schopenhauer diz que a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor (registre-se que na música o acorde menor é mais denso e dramático, o que indica uma certa tensão), penso que ele está a dizer que o despertar filosófico se dá quando nos deparamos com a dor infinita que é a existência. A afirmação de que o mal moral, o sofrimento e a morte são o punctum pruriens da metafísica (lembremos que o núcleo do sistema filosófico de Schopenhauer é a metafísica da vontade) corresponde, a meu ver, à tese de que a consciência trágica, oriunda da certeza ontológica que o homem tem da morte, mais a consideração da dor perpétua e da miséria da vida são o que dão o mais forte impulso ao pensamento filosófico e à explicação metafísica do mundo.

Agora, se estou ou não de acordo com esta concepção da existência seria matéria para um outro post