sábado, fevereiro 13, 2016

That's the point

Eis aí algo em que eu acredito.
Quem é do métier sabe...


Trabalho e tédio. ─ Buscar trabalho pelo salário ─ nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito: ─ é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer [...].


[Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, Livro I, Aforismo 42, p. 85].

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

A voz da divina Loucura


Com a palavra, a Loucura:


"Sou difamada diariamente pelos homens, estes seres que estão acostumados a ferir minha reputação e conheço muito bem quanto soa mal o meu nome aos ouvidos dos mais tolos, mas me orgulho em vos dizer que esta Loucura que estais assistindo é a única que pode alegrar a vida dos deuses e dos mortais. A comprovação disso está na incontrolável alegria que brilhou nos olhos de todos quando eu surgi sublime, diante deste abundante palco" (p.17).



Pow! Acho essa abertura do Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, um desbunde. O livro é bem louco rsr, interessante e polêmico. Nele, é a Loucura quem vos fala. Ela está ali, personificada na voz de uma deusa que, como ela mesma diz, basta a sua "nobre presença para conseguir aquilo que vigorosos oradores jamais alcançariam com um fastidioso e meditado discurso para expulsar de vossa alma... o tédio" (p.18). 

Extremamente irônica, a obra é uma sátira à sociedade dos séculos XV e XVI - um discurso pilhérico proferido pela própria Moria (e, note-se, esse detalhe é importante, a Loucura é feminina - é mulher). Esta, por usa vez, ridiculariza a sabedoria, os sistemas, os costumes, as crenças e os homens, incluído-se, aí, os acadêmicos, soberanos e papas. Ela deseja mostrar que tudo que diz é a cristalina verdade. Não há, na Loucura, nenhuma falsa modéstia. Ao contrário, numa roupagem excêntrica, trata-se de um auto-elogio, de uma auto-celebração, afinal, como ela mesma diz: "quem poderá fazer a minha pintura com mais veracidade do que eu mesma" (p.19)? Ela diz tudo que lhe vem à boca, sem papas na língua. E se regozija tremendamente com isso (p.20). 

"Adeus, pois, ilustres e caros amigos! Aplaudi, vivei, bebei, ó muito nobres iniciados nos segredos da Loucura" (p.191). 


Foi mesmo um prazer insano.

The grand finale
William Henry Barribal


(Rotterdam, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa. São Paulo: Sapienza, 2005).

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Silêncio eloquente

VI

Por mais que se fale ou pense ou
escreva, eis o veredicto:
sobre o que não há de ser dito
deve-se guardar silêncio.
Ser, não-ser, devir, dasein,
ser-pra-morte, ser-no-mundo:
Valei-me, são Wittgenstein,
neste brejo escuro e fundo
sede minha ponte pênsil,
escutai o meu não-grito:
pois quando não há o que ser dito
deve-se guardar silêncio.

[Paulo Henriques Britto | Sete peças acadêmicas | Tarde | 2007]


 kasimira miller by maggie west

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

O último suspiro

Lembrei-me que uma vez li, ouvi ou vi num filme (de fato não sei onde nem exatamente quando) um epitáfio escrito assim: 

Excuse my dust! 

Achei engraçado. Fiquei com aquela frase na cabeça, curiosa, imaginando quem a teria escrito. Não tinha a menor ideia de quem era. Achei que a tinha visto num filme do Woody Allen (mas não tinha certeza). Ao menos é bem a cara dele: esse estilo de tirar sarro das próprias desgraças e também das alheias. Ele é mesmo um mestre do bom humor  do humor sarcástico, intelectualizado, corrosivo, meio nefasto and... Enfim, eu gosto desse estilo. 

Pois bem, fustigada pela curiosidade, resolvi jogar a frase no Google (ai, como é fácil hoje em dia querer saber alguma coisa). Coloquei lá: Excuse my dust! E descobri que a frase é de ninguém mais ninguém menos que a espirituosa e extravagante Dorothy Parker. Na época, eu ainda não a conhecia (excuse my ignorance, please). 



Li algumas coisas bem interessantes sobre ela e segui um link que me levou a um Ensaio intitulado O que eles disseram antes do último suspiro. Um texto divertido, de puro entretenimento mesmo, gentilmente cedido pelo autor para o site Digestivo Cultural, mas que foi originalmente publicado no "Caderno2", de O Estado de São Paulo, em 15 de junho de 1996 (ou seja, long time ago). (e eu já escrevi esse post há uns três anos. Sim sim, ele estava engavetado).

Ali, o autor Sérgio Augusto apresenta o que algumas eminentes personalidades disseram antes do último suspiro. Ele conta, por exemplo, que o poeta inglês John Keats, embora tenha sucumbido à tuberculose na presença de uma testemunha (o pintor Joseph Severn) disse: "'Vou morrer naturalmente. Não se assuste. Graças a Deus chegou a minha hora’, tendo ao fundo uma sonata de Brahms". Segundo Augusto, "John Keats será sempre lembrado pela inscrição que sugeriu para a sua tumba: 'Sinto as flores crescendo em cima de mim'" (achei belo, meio engraçado e nefasto ao mesmo tempo). 

Já George Bernard Shaw, "ranzinza como ele só, irritou-se com a enfermeira que se esfalfava para mantê-lo vivo: ‘Irmã, você está tentando me manter vivo como uma peça de antiguidade, mas eu já acabei, cheguei ao fim, estou morrendo.’ E morreu mesmo. Com uma antiga idade, 94 anos.”

Por sua vez, “o teatrólogo e grande frasista da Broadway Wilson Mizner [nunca tinha ouvido falar, excuse my ignorance again], ao sair do coma, ainda teve cabeça para dar um fora no padre que tentava convencê-lo dos benefícios da confissão: ‘Por que me abrir com você se já falei com o seu patrão?’”

Há, no Ensaio, alusões aos últimos suspiros de Oscar Wilde, Goethe, Rousseau, Hegel, Stanislau Ponte Preta, Assis Chateaubriand, Voltaire, Diderot, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tolstoi, Platão, Sócrates e outros mais.

Mas estava eu lá lendo e me divertindo quando, no meio do caminho, tropecei numa pedra. Augusto diz que Sócrates “revelou-se um moribundo tão pragmático quanto P.T. Barnum" (até então, mais um ilustre desconhecido para mim). Segundo o autor, Sócrates, "antes de baixar sepultura, pediu a Cristo que saldasse uma dívida para ele”. 

Ah? Helooooo!!! Será que li bem? Como assim? Sócrates pediu a Cristo? (mas como poderia se morreu em 399 antes de Cristo?). Não conheço as fontes de Augusto, mas conheço a frase de Sócrates. Ela está aqui ao meu lado, no Fédon de Platão. As últimas palavras de Sócrates foram: “Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida” (p.132). Ops, quer dizer que Críton, de repente, tornou-se Cristo? Ora, certamente o autor não cometeria esse anacronismo tão crasso. Só pode ser um erro de digitação (perdoemo-lo, pois).

Well, o Ensaio termina ressuscitando “a mais divertida de todas as despedidas desta vida: Protagonista: o trêfego José do Patrocínio Filho, finado em 1929. Quando estava nas últimas, arruinado por drogas e biritas, sem apetite para nada, seu médico apelou para um alimento especial: leite humano. Ao ver a dificuldade com que a enfermeira tirava o leite dos belos e fartos seios de uma doadora profissional, para depositá-lo numa minúscula colher, Zequinha do Patrocínio arregalou os olhos e sugeriu: ‘Doutor, não é melhor eu mamar’? E em seguida foi mamar no além”... há há há.


Good bye...