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sábado, novembro 04, 2017

Entre a solidão e o convívio social


David Hume [1711-1776], na conclusão do Livro 1 do Tratado da Natureza Humana (T) encontra-se num estado que tenho (quase) certeza de que, se não todos, ao menos a maior parte daqueles que estudam filosofia já se encontraram num dado momento de seus estudos, numa certa hora de seus dias ou de suas noites.


Hume se vê assustado, confuso, e numa solidão desesperadora diante das reflexões que empreendeu ao escrever e concluir o livro I do Tratado intitulado Do Entendimento


Logo no § 1 ele confessa, um tanto melancólico e desesperado, além de assustado e confuso, como se sente diante da viagem que empreendera. Salta, ao menos aos meus olhos, que Hume é, aqui, não apenas um filósofo, mas também um literato muito poético...



“Sinto-me como um homem que, após encalhar em vários bancos de areia, e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro, ainda tem a temeridade de fazer-se ao mar na mesma embarcação avariada e maltratada pelas intempéries, levando sua ambição a tal ponto que pensa em cruzar o globo terrestre em circunstâncias tão desfavoráveis. A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro. A condição desoladora, a fraqueza e desordem das faculdades que sou obrigado a empregar em minhas investigações, aumentam minhas apreensões. E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero, fazendo-me preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventurar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão. Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia; e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras, não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras, que o presente tema me proporciona em tamanha abundância” (T 1.4.7 §1).


Caminhando do prazer à dor, Hume hesita entre a inclinação natural a buscar diversões e companhias e a inclinação natural a devanear solitariamente.

“A  visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha existência, e a quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço influência, e quem exerce influência sobre mim? Todas essas questões me confundem, e começo a me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela mais profunda escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades (T 1.4.7 §8). Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então fornecendo-me alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que apagam todas essas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão. Quando quero retomar essas especulações, elas me parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não me sinto mais disposto a levá-las adiante” (T 1.4.7.§9).

Nesse momento, Hume se encontra “absoluta e necessariamente determinado a viver, a falar e a agir como as outras pessoas, nos assuntos da vida corrente”, e se diz pronto a lançar ao fogo todos os seus livros e papéis, bem como disposto a nunca mais renunciar “aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia” (T 1.4.7.§10).

Em seguida, ele pergunta a si mesmo: “... seguir-se-á que devo lutar contra a corrente da natureza, que me conduz à indolência e ao prazer? Que devo me isolar, em alguma medida, do comércio e da sociedade dos outros homens? E que tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias, no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão penosa, nem tenho qualquer perspectiva tolerável de, por seu intermédio, chegar à verdade e à certeza (T 1.4.7.§10)?

E então? Deverá Hume continuar “a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora” (T 1.4.7.§10) ele encontrou? 


E eu? Deverei...?

[HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. — São Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001].