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sexta-feira, fevereiro 10, 2023

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

[Torquato Neto | Cogito | In: Melhores poemas]

domingo, agosto 09, 2020

Panta rei

Sonhei que o mar levava meu laptop. E, também, minha carteira de documentos. A angústia era a de que o mar levava com ele a minha vida, a minha história, o meu eu - o meu querido e amado eu. Mas, curiosamente, eu ainda permanecia ali, na beira do mar, com os pés na água, a contemplar aflita, e sem poder fazer nada, as ondas agitadas que tragavam a minha vida. 

Não havia sol. O céu estava nublado. E o vento um tanto frio. Sentia também um aperto a mais em meu coração. O de que minhas filhas estavam longe, cada qual numa cidade diferente, tal como de fato elas estavam. Fiz, então, uma espécie de experimento mental. Fechei os olhos, abri os braços e inspirei, profundamente, até estufar o peito de tanto ar. Transportei-me inteira, em corpo e alma, para o centro do meu coração. Foi como se só ele existisse. Mas, de repente, abriu-se uma fenda em meu peito e três veias pulsantes começaram a crescer, feito caules de plantas em busca de luz. Foi um momento de alento e esperança. Um dos caules enraizados em meu peito estendia-se sobre o mar aberto até alcançar o coração da Marina, lá em São Paulo. Um outro buscava o coração da Bibi em Londrina, e outro, bem mais comprido, em razão da longa distância, ia ao encontro do coração da Paulinha, lá em São Francisco, na Califórnia. Meu coração atravessava os mares. As veias entrelaçavam-se aos corações delas. E assim eu as trazia para perto. 

Nem o mar nem o céu eram propriamente sombrios, apenas melancólicos, de uma melancolia poética. Sombria era a angústia pela perda do meu eu que navegava à deriva sobre as ondas revoltas. Sombria era a angústia de ver minha vida arrastada e engolida pelo mar. 

De súbito, meu horizonte empalideceu. Acordei e fiquei ali mesmo, na cama, a rememorar as imagens e sensações vividas naquele sonho. Passados alguns minutos, levantei e fui até minha mesa de trabalho. Abri um de meus moleskines para escrever essas breves notas, antes que tudo se esvaísse de minha memória. Ao folheá-lo, encontrei o seguinte verso: 

"Há mar e mar / há ir e voltar", de Alexandre O'Neill. 

Panta rei... 

(marília côrtes | floripa | março | 2017)

(desconheço o autor dessa imagem)

segunda-feira, dezembro 30, 2019

À tua porta


Egoísmo

Fui sozinho à minha entrevista,
Quem é esse que me segue
na escuridão calada?

Afasto-me para ele passar,
mas não passa.

Seu andar soberbo
levanta poeira,
sua voz forte
duplica a minha palavra.

É o meu pobre eu!
Ele não se importa com nada.
Mas como sinto vergonha
por ter de vir com ele
à tua porta!

(TAGORE, Rabindranath | 1861-1941 | in: O Coração da Primavera | Lisboa | A. O. | 1990 | Tradução de Manoel Simões).


domingo, fevereiro 12, 2017

Êxtase musical II



"Nesses instantes em que ressoamos no espaço e o espaço ressoa em nós, nesses momentos de torrente sonora, de posse integral do mundo, só posso me perguntar por que não serei eu todo esse mundo. Ninguém experimentou com intensidade, com uma louca e incomparável intensidade, o sentimento musical da existência, a menos que tenha tido o desejo dessa absoluta exclusividade, a menos que tenha sido possuído de um irremediável imperialismo metafísico, quando desejara a ruptura de todas as fronteiras que separam o mundo do eu."




"O estado musical associa, no indivíduo, o egoísmo absoluto com a maior das generosidades. Queres ser só tu, mas não por um orgulho mesquinho, mas por uma suprema vontade de unidade, pela ruptura das barreiras da individuação, não no sentido de desaparição do indivíduo, mas de desaparição das condições limitativas impostas pela existência deste mundo. Quem não tenha tido a sensação da desaparição do mundo, como realidade limitativa, objetiva e separada, quem não tenha tido a sensação de absorver o mundo durante seus êxtases musicais, suas trepidações e vibrações, nunca entenderá o significado dessa vivência na qual tudo se reduz a uma universalidade sonora, contínua, ascensional, que evolui para o alto em um agradável caos. E o que é esse estado musical senão um agradável caos cuja vertigem é igual à beatitude e suas ondulações iguais a arrebatamentos?"


Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco 2014 | p.8