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domingo, dezembro 19, 2021

Os dias sem ninguém


 4. 

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


(Al Berto | in Medo | Lisboa | Assírio & Alvim | 1997 | p. 506
).

sexta-feira, maio 14, 2021

O peso do mundo

 CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –

sai para fora do coração
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

– deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

...............

Allen Ginsberg
In: “Uivo e outros poemas” (1956).

......................

Imagem: Brook Shaden Photography

.............................

Não está nada fácil comemorar mais um ano de vida em meio à trágica notícia, ontem, de 430.596 vidas perdidas em praticamente apenas um ano, e só nesse nosso país lascado chamado Brasil. Vivemos, atualmente, numa espécie de show de horrores. É meu segundo aniversário em plena pandemia. E esse é meu jeito weird de, sem palavras, bendizê-lo 🖤.

terça-feira, dezembro 31, 2019

Corsário




Meu coração tropical 
está coberto de neve
mas ferve em seu cofre gelado
a voz vibra e a mão escreve mar

bendita lâmina grave 
que fere a parede e traz
as febres loucas e breves 
que mancham o silêncio e o cais

Roserais
Nova Granada de Espanha
por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar
me arrastar até o mar
procurar o mar

Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufragos
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar.


***


[ compositores: João Bosco & Aldir Blanc ]


Ouça aqui uma das mais belas versões dessa música, com João Bosco e Marie So.




quarta-feira, maio 30, 2018

Da imensidão do mar


Pena Líquida

Saudade,
dor de talento solitário,

sinonímia de banzo. Dor
de arrasto recolhida

ao leito das lembranças,
que nos condena à penitência

das aves sem voos,
de passos sem presença

e na esperança de retorno
do outro nos alinha.

Saudade é a pena líquida
que polimos quando

o objeto amado
de nós se distancia

em ausências sem esperas
ou em esperas sofridas.

[Marina Alice da Luz Ferreira]





Marina Alice foi, outrora, minha professora no curso de Comunicação Social da UEL (1982-1984). Coincidentemente, no dia em que minha primeira filha, Marina, nascia (1985), Marina Alice apareceu nos corredores da maternidade e presenciou-me andando e chorando um pouco as dores e o medo do parto que se aproximava. Um parto que se tornou cesária. Nunca me esqueci daquele dia, daquela cena, tampouco do abraço carinhoso de "boa hora" da Marina Alice. E jamais se esquece também do nascimento de uma filha.

Há não muito tempo soube pelo facebook (sim, o facebook é uma entidade falante) que Marina Alice escrevia poesias. Saquei melhor o porquê de ter sentido uma admiração e simpatia imediatas por ela. 

Marina tem poesia dentro dela
e mar... mar... 
mar...



O poema apareceu em minha timeline dedicado aos amigos queridos com as seguintes palavras:

"uma pausa do caos externo para pautar o que me vai na alma." 


sábado, março 10, 2018

Deslumbramento


É amor? Não sei. Esta intranquilidade,
Este gozo na dor, esta alegria
Triste que vem de manso e que me invade
A alma, enchendo-a e tornando-a mais vazia;

Este cansaço extremo, esta saudade
De uma cousa que falta à vida... O dia
Sem sol, as noites ermas, a ansiedade
Que exalta e a solidão que anestesia,

É amor. Egoísmo de sofrer sozinho,
De as penas esconder do humano açoite,
De transformar as pedras do caminho

Em carícias sutis para colhê-las
E andar como um sonâmbulo, na noite,
Escancarando os olhos às estrelas...

[ © Olegário Mariano |  In: Canto da minha terra ]


sábado, novembro 04, 2017

Entre a solidão e o convívio social


David Hume [1711-1776], na conclusão do Livro 1 do Tratado da Natureza Humana (T) encontra-se num estado que tenho (quase) certeza de que, se não todos, ao menos a maior parte daqueles que estudam filosofia já se encontraram num dado momento de seus estudos, numa certa hora de seus dias ou de suas noites.


Hume se vê assustado, confuso, e numa solidão desesperadora diante das reflexões que empreendeu ao escrever e concluir o livro I do Tratado intitulado Do Entendimento


Logo no § 1 ele confessa, um tanto melancólico e desesperado, além de assustado e confuso, como se sente diante da viagem que empreendera. Salta, ao menos aos meus olhos, que Hume é, aqui, não apenas um filósofo, mas também um literato muito poético...



“Sinto-me como um homem que, após encalhar em vários bancos de areia, e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro, ainda tem a temeridade de fazer-se ao mar na mesma embarcação avariada e maltratada pelas intempéries, levando sua ambição a tal ponto que pensa em cruzar o globo terrestre em circunstâncias tão desfavoráveis. A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro. A condição desoladora, a fraqueza e desordem das faculdades que sou obrigado a empregar em minhas investigações, aumentam minhas apreensões. E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero, fazendo-me preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventurar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão. Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia; e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras, não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras, que o presente tema me proporciona em tamanha abundância” (T 1.4.7 §1).


Caminhando do prazer à dor, Hume hesita entre a inclinação natural a buscar diversões e companhias e a inclinação natural a devanear solitariamente.

“A  visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha existência, e a quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço influência, e quem exerce influência sobre mim? Todas essas questões me confundem, e começo a me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela mais profunda escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades (T 1.4.7 §8). Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então fornecendo-me alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que apagam todas essas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão. Quando quero retomar essas especulações, elas me parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não me sinto mais disposto a levá-las adiante” (T 1.4.7.§9).

Nesse momento, Hume se encontra “absoluta e necessariamente determinado a viver, a falar e a agir como as outras pessoas, nos assuntos da vida corrente”, e se diz pronto a lançar ao fogo todos os seus livros e papéis, bem como disposto a nunca mais renunciar “aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia” (T 1.4.7.§10).

Em seguida, ele pergunta a si mesmo: “... seguir-se-á que devo lutar contra a corrente da natureza, que me conduz à indolência e ao prazer? Que devo me isolar, em alguma medida, do comércio e da sociedade dos outros homens? E que tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias, no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão penosa, nem tenho qualquer perspectiva tolerável de, por seu intermédio, chegar à verdade e à certeza (T 1.4.7.§10)?

E então? Deverá Hume continuar “a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora” (T 1.4.7.§10) ele encontrou? 


E eu? Deverei...?

[HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. — São Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001].

segunda-feira, junho 12, 2017

A espera do silêncio


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio




[ Mia Couto | Amei-te Sem Saberes | In: Raiz de Orvalho e Outros Poemas | Editorial Caminho | Lisboa | 1999 ]


sexta-feira, janeiro 20, 2017

Poema da despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,
escrevo.


[ Mia Couto | Raiz de orvalho e outros poemas | Portugal | 2014 ]




domingo, abril 10, 2016

Beleza e melancolia


Eis abaixo um exemplo do que Hume chama de "delicadeza do gosto" [delicacy of taste]: uma sensibilidade apurada para a beleza e para a deformidade nas ações, livros, obras de arte, ciências, etc... Refiro-me aqui, especialmente, à fusão entre pintura, música e poesia que o vídeo apresenta.

"Nada é tão benéfico ao temperamento quanto o estudo das belezas, seja da poesia, da eloquência, da música ou da pintura. Estas proporcionam uma certa elegância de sentimento estranha ao resto da humanidade. As emoções que elas excitam são suaves e ternas. Elas libertam a mente das pressões dos negócios e interesses; estimulam a reflexão; predispõem o espírito à tranquilidade; e produzem uma agradável melancolia que, de todas as disposições da mente, é a mais adequada ao amor e à amizade" (Essays I. Of the delicacy of taste and passion, #6).

Then, dear reader, para tornar teu domingo, tua vida e teu gosto mais delicados e sensíveis, take a look ... and... 


Don't explain


Edward Hopper & Nina Simone



domingo, outubro 18, 2015

There is a solitude of space


There is a solitude of space 
A solitude of sea 
A solitude of death, but these 
Society shall be 
Compared with that profounder site 
That polar privacy 
A soul admitted to itself – 
Finite infinity. 

[Emily Dickhinson]


Há uma solidão do céu, 
uma solidão do mar 
e uma solidão da morte. 
Mas fazem todas companhia 
comparadas a este local profundo, 
esta polar intimidade, 
uma Alma que reconhece a Si mesma: 
finita infinidade. 

CAMPOS, Paulo. Mendes. de. Oito Poemas/Emily Dickinson (1969), Trinca de Copas. Rio de
Janeiro: Achiamé, 1984, p. 49

Painting: "The Yellow Sands"
John Reinhard Weguelin (1849-1927)



segunda-feira, dezembro 31, 2012

Um mundo para si mesmo



Enquanto os fogos de artifícios inundam os céus do novo ano, enquanto os champagnes, frisantes e espumantes transbordam as taças que farão tim-tim, encontro-me novamente na companhia de Rainer Maria Rilke. Neste momento, chamam-me à atenção o tom calmo e complacente de sua voz, bem como a profundidade, sabedoria e beleza poética das Cartas a um jovem poeta ─ obra sobre a qual já comentei e transcrevi alguns trechos aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2012/11/o-tic-tac-solitario-do-amor.html.

À corajosa pergunta dirigida a Rilke pelo jovem poeta, qual seja, “se os seus versos são bons”, Rilke revela ter sentido alguma insuficiência ao ler os versos do poeta, sem, no entanto, ser capaz de designá-la pelo nome (p.24). A partir dessa impressão, sucedem-se alguns conselhos de Rilke transcritos aqui em recortes que, a meu ver, são pertinentes a todos aqueles que aspiram à arte, seja por meio da poesia, da literatura, da música, da pintura, enfim, seja lá por qual meio for. Aliás, nem é propriamente preciso aspirar à arte. Como já mencionei no outro post, Rilke fala das profundezas da vida, e seus conselhos podem tocar qualquer ser racional sensível. Ao ler as Cartas de Rilke, cada um saberá apreciar aquilo que lhe diz respeito.


Paris, 17 de fevereiro de 1903
“O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso (p.24-25) [...] E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos" (p.26).
[...]
"Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta para a questão de saber se precisa criar. [...] Talvez ela revele que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou” (p.26-27).

“Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-lo). Seja como for, sua vida encontrará a partir dele caminhos próprios” (p.27). [...] Por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento. Não há meio pior de atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranquila" [p.27-28].


Viareggio perto de Pisa, 5 de abril de 1903
“Pois, no fundo, e justamente quanto aos assuntos mais profundos e mais importantes, estamos indizivelmente sozinhos, de modo que muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez (p.29-30). [...] Assim, se o senhor seguir seu caminho à beira do que é grandioso, pergunte-se também se esse modo de compreender o mundo corresponde a uma necessidade do seu ser” (p.30).

Viareggio perto de Pisa, 23 de abril de 1903
[...] “Obras de arte são de uma solidão infinita...” (p.35). “Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isto diariamente, aprendo em meio a dores às quais sou grato: a paciência é tudo” (p.36)!

Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2010.

[escultura de Camile Claudel:  The Danaid, 1885]

segunda-feira, novembro 12, 2012

O tic-tac solitário do amor



Este é um daqueles momentos em que escrevo para evitar que uma granada exploda em meu peito. Yesterday, passei horas e horas a ler e escrever sobre as Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria-Rilke [1875-1926]. Elas são de uma beleza e profundidade abissais. Tais Cartas (publicadas em 1929, três anos após a morte de Rilke) foram escritas originalmente como respostas às inquietações de um jovem, Franz Xaver Kappus, que ambicionava ser poeta. Rilke, após algumas observações prévias, responde à primeira carta começando do seguinte modo: “O senhor me pergunta se os seus versos são bons. [...] Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) ...”

Sucedem-se daí dez cartas repletas de considerações sobre vários temas, dentre os quais, a arte a crítica o artista e o ato de criar; a quietude a solidão o silêncio e a grandeza; o amor o sexo e o instinto; a felicidade a beleza e a tristeza; a infância a inquietude do jovem e a maturidade; a coragem a covardia e a dúvida; a existência, Deus e a morte. What else?

Rilke fala das profundezas da vida com toda a densidade poética que o caracteriza.  Ao tocar nesses temas, Rilke oferece diversos conselhos a seu jovem interlocutor. Estes vão muito além da dimensão pessoal e interpessoal de suas Cartas ─ tocam qualquer ser racional sensível. E tocam ainda mais, creio eu, aqueles seres racionais sensíveis cujos corações ardem e explodem de amor.

E por falar em amor, transcrevo abaixo trechos da sétima carta, escrita em Roma (no dia 14 de maio de 1904). A propósito, precisamente 58 anos antes do exato dia de meu nascimento. Ao escrever esta carta Rilke tinha apenas 29 anos. Nela, ele estabelece uma indissociável relação entre amor e solidão. Pois bem...

“Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.”


“Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?). O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmo (‘escutar e bater dia e noite’), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado" (Rilke 2010: 64-66). Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac...


Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2010.


[Saatchi Online Artist Patrick Palmer; Painting, "Crying Lightly"].