domingo, janeiro 20, 2013

Um universo de sonhos e pesadelos

“Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração. [...] Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia o coração. Só que não estou à espera da morte do meu amor" (p.2-3).

"A  casa abria o portão-boca verde e engolia-nos. A cama flutuava. A rua saiu-me da boca como uma fita de veludo, e deixou-se ficar qual serpentina. As casas abriram os olhos. O buraco da fechadura mostrou uma curva irónica como um ponto de interrogação" (p.11)

"A realidade afogara-se e a fantasia sufocava cada uma das horas do dia" (p.24).


Eis aí um livro (A Casa do Incesto, de Anaïs Nin) que se pode chamar de louco: o universo onírico dos sonhos e pesadelos. Ele é intrigante, denso, profundo e sombrio. Ele dói! E te deixa, num primeiro momento, meio sem saber o que pensar. Sendo o livro composto de sonhos e pesadelos, não há, obviamente, um comprometimento com aquilo que poderíamos chamar de nexo, embora não se possa dizer que ele não contém qualquer nexo. É um nexo louco rsr que certamente causará ao leitor um profundo estranhamento. 

Creio que se possa dizer que é um livro que bem representaria aquilo que Franz Kafka diz numa carta a Oscar Pollak (1904). Leia-se aquihttp://mariliacortes.blogspot.com.br/2012/06/acho-que-so-devemos-ler-especie-de.html

O livro é tão estranho que já mexi e remexi nesse post algumas vezes, na tentativa de expressar mais claramente o estranhamento que me causou (well, tornar claro aquilo que é estranho é tarefa difícil). Titubeei mil vezes na escolha de alguns excertos para publicar.O livro perturba! Desperta sensações de prazer e dor ao estampar, por meio de sonhos e pesadelos, imagens belas e grotescas na mente do leitor. Como próprio do universo onírico, há nele uma mistura de fantasia, realidade, lucidez e loucura. Ademais, tem um Q de trágico e, como não poderia faltar (em se tratando de Anaïs Nin), algumas doses (sem gelo) de conteúdo erótico. Eu teria muitas coisas a dizer, mas chega de papo! Vamos ao que interessa: um pouco de Anaïs. Ao escrever, ela flutua... (e o que não lhe falta é fertilidade imaginativa e talento literário)!


“Lembro o meu primeiro nascimento na água. À minha volta a transparência sulfurosa e os meus ossos moviam-se como se fossem de borracha. Oscilo e flutuo nas pontas sem ossos dos meus pés atenta aos sons distantes, sons para além do alcance de ouvidos humanos, vejo coisas que são para além do alcance dos olhos. Nasço cheia das memórias dos sinos da Atlântida. Sempre à espera de sons perdidos e à procura de perdidas cores, permanecendo para sempre no limiar como alguém perturbado por recordações, corto o ar a passo largo com largos golpes de barbatana e nado através de quartos sem paredes"  (p.3).

Salto algumas páginas!

"Parte-se o desejo que tinha esticado os nervos e cada nervo parece partir-se um por um, em cadeia, provocando incisões, onde ácido corria em vez de sangue. Torço-me dentro da minha própria vida, à procura de um caminho livre para as lágrimas fundidas, para dissolver o sofrimento num caldeirão de palavras onde todos os que procuram nomes para o seu próprio sofrimento pudessem cair. Que enorme caldeirão estou nesta altura a mexer; grandes bocarras estou agora a alimentar de ácido, palavras suficientemente amargas para queimarem toda a amargura" (p.22). Caramba!!! Imaginem só ácido em vez de sangue a circular pelas incisões decorrentes de um desejo que estica seus nervos ao ponto de arrebentá-los. Tudo se parte, o desejo, os nervos... 

Salto de novo!

"Passo as esponjas brancas do conhecimento sobre as cordas dos meus nervos. À medida que passo para dentro do meu livro sou cortada por estilhaços, dentes de vidro e garrafas partidas, onde ainda há vestígios de cheiros de espuma e de perfume. Mais páginas foram acrescentadas ao livro, páginas que lembram o vaivém de um prisioneiro num espaço fechado. O que é que me é restrito dizer? Apenas a verdade disfarçada de conto de fadas e este é o conto onde todas as verdades têm olhar fixo como se estivessem por detrás de janelas de grades de um mosteiro. Com véus" (p.44).

Compreende-se bem por que a autora, ao contar seus sonhos e pesadelos, diz : "Há no meu olhar uma ruptura por onde a loucura sempre escoa. Debruça-te sobre mim na cabeceira da minha demência e depois deixa-me de pé sem muletas. Sou uma mulher louca a quem as casas piscam o olho e oferecem a hospitalidade dos seus ventres" (p.27).

(NIN, Anaïs. A Casa do Incesto. Tradução de Isabel Hub Faria. Porto: Assírio & Alvim, 1997)