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quinta-feira, setembro 10, 2020

Sonambulando

De repente, ela se viu diante da porta de uma casa noturna. Parecia uma porta de saída de emergência. Porta corta-fogo, dessas que a gente vê em filmes americanos. Seus passos eram firmes, sua velocidade estonteante. Estava decidida a sabe-se lá o quê! No fundo, não sabia de nada. Era levada por um impulso ─ um impulso irresistível. Rolava um zum zum zum na entrada do night club, mas, diante dela, as portas se abriram de imediato. E logo atrás se fecharam. Num piscar de olhos, a cena tornou-se completamente outra. O que ela via não tinha nada a ver com qualquer tipo de casa noturna. Era um quarto enorme, muito escuro, frio, úmido, silencioso, repleto de camas enfileiradas - uma espécie de abrigo, no qual pessoas dormiam indistintas. No momento que entrou na cena, não mais pisou no chão. Seus passos tornaram-se flutuantes, largos, quase etéreos, apesar da atmosfera sombria. A mudança fora brusca. Impactante. A expectativa era uma, a realidade era outra. Não se deteve. Seguiu flutuando num ballet em linha reta. De repente, a cena mudou novamente. Havia entrado, sem saber como, num romance secreto. Romance de olhares que sussurram, e que na vida ordinária os mortais costumam chamar de amor ─ amor platônico.


(marília côrtes | setembro | 2020)

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[Painting by Giuseppe Cali | Woman in the moon | 1912]

quarta-feira, junho 29, 2016

Do abismo do desconsolo

Torturado, Amadeus se perguntava: - Como ela podia ter brincado com ele daquele jeito? Ter-lhe escrito que o coração dela era dele? Ter-lhe colocado no céu ao despertar-lhe as mais doces esperanças para, depois, lançá-lo ao abismo sem fundo do desconsolo? Não! Amadeus não podia compreender por que ela havia virado as costas para a paz, a serenidade, a sabedoria e o contentamento espiritual que ele lhe proporcionara por tantos anos. Não podia compreender por que ela jogava ao mar a vela que a levava longe, colocando-se, assim, à mercê das tempestades hedonistas que paralisariam sua alma aprisionada às demandas brutas de seu belo corpo. Era como se ela tivesse virado o rosto para seu próprio rosto. Sem o saber, iludida, afastando-se dele, afastava-se de si mesma, enterrando, assim, a possibilidade de sua alma receber o alimento que a mantinha governante de sua própria vida ─ a mais bela das vidas, o mais refrescante dos sopros. 

Dilacerado, Amadeus desejou que ela estivesse morta. Mas ela estava viva. Então, ele a matou em seu peito.



sexta-feira, março 25, 2016

Flutuações anímicas


O encontro havia sido marcado e o assunto anunciado. No exato momento em que ia tocar a campainha, a porta se abriu de repente. Olharam-se, de modo oblíquo, antes que um sorriso contido cintilasse involuntariamente em seus rostos. Ela entrou como um vulto. Sua alma adiantou-se ao corpo, tamanha a ansiedade. 

Com a respiração oprimida e o coração descompassado, passou em rápida revista a disposição daquela sala, cujos objetos lhe eram tão familiares. O pequeno sofá eternamente desconfortável. A enorme quantidade de livros, caixas e papéis espalhados pelo chão, mesa e prateleiras.  O móvel de bebidas destiladas. O abat-jour que não funcionava há tempos, assim como o velho aparelho de som igualmente inutilizado a ocupar o espaço, testemunhando, entre outras coisas, a longa história daquela união que constantemente desafiava o improvável. Notou a falta do belo tapete no qual, há mais de 15 anos, rolaram pela primeira vez. O lustre sobre a mesa que, sozinho, de vez em quando, bruxuleava rapidamente, e tantos outros objetos tão bem conhecidos, dentre os quais aqueles que evidenciavam a paixão dele pelo seu glorioso time de futebol.

Após sua alma retornar ao corpo, atravessou a sala como uma flecha. Não deu um beijo nele, um abraço, nada. Disse apenas oi. E sentou-se no sofá. Ele, por sua vez, puxou uma cadeira posicionando-se na diagonal. Sentindo-se incomodada, ela se virou de frente para ele e tirou os sapatos, colocando seus pequenos pés no pequeno e desconfortável sofá. 

Um silêncio opressor pesou sobre eles. Naquele instante, face to face, teve a mesma sensação de Humbert Humbert descrita por Nabokov em sua obra-prima Lolita: o pulso a marcar, num minuto, quarenta pulsações, no outro, cem.

Alguns meses antes, ela esteve madrugadas inteiras a escrever torrencialmente. Ao expressar suas flutuações anímicas diante dos sinais confusos que ele passara a transmitir após o primeiro reencontro, depois da última separação, os dedos crepitavam nos papéis. 

Replicadas à exaustão, propusera a si própria mil questões seguidas de mil respostas diferentes para cada uma. Ordenava-as, desordenava-as, reordenava-as, ruminando toda aquela parafernália de sentimentos, impressões e ideias que se sucediam em sua mente, na tentativa de concebê-las tão claras e distintas quanto as verdades matemáticas ─ uma tarefa inglória, por certo. De qualquer modo, era preciso começar a falar tudo que naquele momento estrangulava-lhe a garganta. Estava resoluta em não mais voltar. E era mister que fosse direta e reta. Porém, na imperiosa presença e argumentação dele, e diante de olhares tão íntimos, suas convicções se afrouxavam, suas dúvidas voltavam a lhe atormentar, e o espelho de sua mente, tantas vezes polido pela reflexão, embaçava novamente devolvendo-lhe a angústia da incompreensão.

Queria entender por que, afinal, ele resolvera quebrar o silêncio terminal que havia decretado três meses antes, depois de alguns reencontros e trocas de cartas que mais trouxeram dor do que propriamente alegria e prazer a ambos, dado o tempo dilatado de separação, no qual um havia aprendido a viver sem o outro, e em virtude do acúmulo de mágoas, rancores, remorsos e arrependimentos que passaram a habitar seus corações indelevelmente feridos? 

Após seis horas de conversas entremeadas por acusações recíprocas e alguns instantes sublimes, nos quais a intimidade e cumplicidade voltaram a reinar, chegaram à conclusão de que a questão não era mais se um havia aprendido a viver sem o outro, mas se a vida de ambos seria melhor, mais rica, prazerosa, promissora e feliz, com ou sem o outro.




quinta-feira, março 10, 2016

Momento Porteño


Eles chegam ao hotel en la calle Esmeralda. Pegam a chave do quarto e entram no pequeno e antigo elevador. Entra com eles também um senhor de uns 58 anos, tradicionalmente trajado, um pouco baixo e gordo, com um pacote de supermercado nas mãos. Esse senhor desconhecido não consegue tirar os olhos dela. E parece perder o fôlego ao medi-la, indisfarçadamente, de cima a baixo. 

Ela fica ligeiramente constrangida (bem ligeiramente, pois não costumava ficar assim ao ser admirada, ao contrário, sentia-se, em geral, muito confortável com isso) e se aproxima um pouco mais do namorado, como quem diz para o cara: - olha, eu estou acompanhada! 

Nessa altura, o namorado, em silêncio, só observa. O camarada não resiste e diz a ele: muito bonita sua namorada! 

O rapaz, senhor de si e da situação, agradece esboçando um sorriso discreto e educado. Ela apenas sorri. O desconhecido não se contém. Num movimento espontâneo (e certamente temerário) tira uma garrafa de vinho do pacote e oferece-o, gentilmente, a ela. 

Well, não escapa ao casal a percepção de que seria menos arriscado se o cara tivesse oferecido a garrafa ao namorado, e não a ela. Mas, enfim, meio sem chance de recusar, dado o clima cortês no qual o episódio se dava, ela toma o vinho em suas mãos e agradece com um olhar e sorriso acanhados. O namorado, com a reserva de um gato, também sorri. Não fala nada. Mas pensa: - quê atrevimento! 

Eles descem do elevador no mesmo andar e se despedem daquele senhor. Entram no quarto um pouco desconsertados com aquela cena inusitada. Olham-se e riem. Ela aguarda, sem saber muito bem o que dizer, o que o namorado dirá. Ele respira fundo, olha bem nos olhos dela, dá um sorriso descontraído e, beijando-lhe as mãos, diz: 


- "Ele te admirou. E eu admirar-me-ia se ele não te admirasse, se ele fosse capaz de permanecer indiferente à tua beleza, charm e presença. Pois se ele é realmente um homem sensível, não poderia deixar-te passar despercebida..."



[Photo by Jonathan Carroll]

domingo, setembro 20, 2015

Tácita aliança


Ele é o chefe. A divisão está lotada. Fila em todos os setores. Ella passa. O chefe? Arregala os olhos. Se atrapalha na entrevista sobre a greve. Ella percebe o impacto que sua passagem causa nele. E resolve se servir disso. Tudo é urgente. A burocracia é de ranger os dentes. E as soluções? Todas morosas. A divisão trabalha com poucos funcionários. Ella tem pressa.  Respira fundo, cresce o corpo, engrandece o espírito, e se exibe um pouco passando pra cá e pra lá como quem procura a pessoa certa para resolver seu problema. Ele, perturbado, dá a maior bandeira. Não consegue tirar os olhos dela. Ella passa, então, para o outro lado. Exibe-se um pouco mais. O chefe, todo atordoado, termina a entrevista, entra em sua sala, e manda um funcionário chamá-la. Tudo está implícito. Ambos sabem que não vai rolar nada. É suficiente que ele a olhe e que ela entenda o olhar dele. E, para ele, é suficiente que ela permita ser olhada com aquele olhar de quem diz que a quer, ainda que saiba que nunca vai tê-la. Ella é educada. Ele? Prestativo. Acompanha-a por todos os setores necessários, facilitando as coisas. Tudo se resolve rapidamente com a maior discrição e boa vontade. Ella estende a mão, agradece-o de modo cortês e, com um reservado sorrisinho no rosto, sai toda satisfeita e desenvolta. C'est tout.

segunda-feira, maio 11, 2015

No touch


Ella escrevia para tentar sobrepujar toda aquela dor, ao ter que admitir, a contragosto, que ambos não poderiam mais chutar a bolinha do gato, classificar livros nas estantes, fazer panquecas e amor, ou sexo nas escadarias; tampouco poderiam ouvir o confortável silêncio que se seguia ao toque de seus olhares e sorrisos refrigerantes. Com a boca amarga, e um nó na garganta, Ella vaticinava que, diante das coisas que ouvira e de tudo que acontecera, ambos já não poderiam mais se tocar de forma alguma. Num brusco movimento de saída, engolindo seco, Ella disse:  ok, não vou mais perturbá-lo com a minha presença. E sem dizer mais nada, pensou: perturbarei sim, mas com a minha falta, muita falta...


[by Daniel Murtagh - Mourning]

sexta-feira, outubro 24, 2014

Question mark


Otto havia saído e batido a porta. Ella pegou um cigarro, sentou-se ao chão da sala e ali, paralisada, permaneceu. Não sentia as lágrimas molharem seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Não sentia as pernas adormecerem. Sabia apenas que não conseguia se mover. Ella estava ali e não estava. O telefone tocava como um ruído ao longe. Ella só sentia a ardência do cigarro em sua garganta. O choro, feito convulsão, não veio naquele momento, era somente uma água salgada e silenciosa que, por ausência de força, não conseguia enxugar. O pensamento ficou completamente borrado. De repente, sentiu uma dor tão violenta como se nunca mais pudesse sair daquela posição. Faltara-lhe o grito, o desespero, a fúria. A dor provocara-lhe a contenção de qualquer movimento voluntário. As lágrimas continuavam a escorrer e a grudar por todo seu corpo. Quando, finalmente, conseguiu se perceber no tempo e no espaço, Ella resolveu sair. No carro, enxergava o trânsito como por detrás de um fundo de garrafa. Tudo tinha ficado inaudível. À noite, depois de um esforço imenso, o pensamento de Ella começou, lentamente, a se organizar. Repassou cada movimento de Otto. Ouviu mil vezes cada palavra que havia sido dita. Reviu todos os olhares que ele lhe havia lançado. Tentou, friamente, reconstruir aqueles dias ─ o que lhe custou cavar e revirar ainda mais o buraco aberto em seu peito. Cada gesto do qual Ella se lembrava, agitava-lhe o entendimento que, por sua vez, lutava desesperado contra toda tentativa de compreensão. Nela, só havia incompreensão. E um enorme ponto de interrogação.

segunda-feira, agosto 25, 2014

Num trago


Ella entra no bar e fica ali a refestelar-se pelo balcão. Otto chega e, inadvertidamente, se aproxima. Ella não se mexe. Acende um cigarro, traga-o com força e, resoluta, permanece em silêncio, sem ao menos olhar para Otto. Otto também não fala nada. Apenas fica ali, parado, a fitá-la fixamente. A atmosfera se adensa. O silêncio pesa. E se estende... 
Passados alguns minutos, como se fossem horas, Ella irrompe:
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
E tchau!

domingo, agosto 10, 2014

Os restos de Ella


Há tempos Ella se sentia partida ao meio. De um lado, estava esvaziada, como se dentro dela houvesse apenas um silêncio devastador. De outro, sentia-se um bicho enjaulado a querer vomitar tudo que pensava e sentia – uma massa gordurosa que estava a lhe corroer. Não era um silêncio escolhido. Era simplesmente o que lhe restava. Estava anestesiada. Nada podia fazer, a não ser recolher-se em seu próprio sofrimento.



quarta-feira, julho 23, 2014

Nas garras de um grito


Ella adorava tomar um longo e demorado banho quente. Muito quente. Podia ser de manhã, de noite, ou a qualquer hora. Ficava ali, debaixo do chuveiro, a deleitar-se naquela água corrente, ardente, a aquecer-lhe o corpo, a alma, o sangue e a imaginação, enquanto observava seus pensamentos escorrerem pelo ralo.  Friorenta como Ella era, tinha necessidade vital desses banhos.

Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.

Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.

Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.

Dentro de mim mora um grito. 
De noite, ele sai com suas garras, à caça 
de algo para amar!

Resolveu, então, tomar um banho gelado. 
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.

terça-feira, junho 03, 2014

Observações triviais


Ella saiu pra almoçar às 12:45. Pelo brilho do sol, supôs que a temperatura estivesse mais alta. Se enganou tremendamente: o sol até que estava quente, porém, o vento... ai... o vento estava gélido e cortante! Ella se arrependeu de não ter se agasalhado até os dentes. Pensou que talvez fosse o caso de voltar ao hotel pra se agasalhar melhor. Mas, enquanto pensava, hesitou, pois achava que havia demorado tanto pra sair que, se voltasse, iria, comme d'habitude, se enrolar mais um pouco pra sair de novo. Acabaria perdendo o horário do almoço, a fome iria passar e isso certamente faria com que Ella passasse o resto do dia a enganar a fome quando esta retornasse ao seu estômago de passarinho.

Pensando assim (e já encantada pelo cenário das ruas curitibanas), seguiu em frente. Ao mesmo tempo em que blasfemava contra o vento frio, aprazia-se por ter tido a prudência de sair de luvas, cachecol, e  uma echarpe de lãzinha  na mochila. Tais acessórios ajudaram-na a suportar o frio, mas de modo algum a deixaram confortável. Ella procurou desviar sua atenção daquele frio impositivo em direção às pessoas que circulavam pelas ruas e avenidas, às belas praças, monumentos, construções, lojas e cafés (cenários que traziam a ela as mais diversas lembranças de um passado distante, mas memorável).

Ella andava sem direção definida, porém, a fim de encontrar um lugar agradável pra almoçar. Passeou pra cá e pra lá, nostalgicamente, até que encontrou um restaurantezinho com aparência simpática e sedutora. Entrou, apreciou o ambiente, sentou-se, e lá permaneceu ─ no Arrumadinho da Marechal Deodoro  a esperar seu virado à paulista, enquanto rascunhava suas observações triviais em seu moleskine de capa preta. 

segunda-feira, junho 02, 2014

Vida ordinária


Ella observa, enquanto toma seu café, a encruzilhada da Cruz Machado com suas velhas esquinas e seus transeuntes. Táxis, carros de passeio, utilitários e os mais diversos tipos de veículos automotores se entrecruzam. Pessoas comuns transitam pra cá e pra lá: passos compassados, mecânicos e regulares: uns mais apressados, outros menos ─ uma perna seguindo-se à outra, como numa engrenagem.

Os olhos de Ella percorrem vagarosamente todos os movimentos da rua, enquanto desgosta de seu café morno. Ella pensa: que vida mais ordinária, povoada de pessoas ordinárias, com seus rostos, roupas e sapatos ordinários!

Apesar da baixa temperatura de junho (e por que não dizer temperatura ordinária?), o céu curitibano está aberto e o sol reina majestaticamente. Porém, está frio demais para Ella e seu gosto quente. Suas mãos estão geladas. O coração apertado. E em meio à observação e burburinho ordinários, Ella aprecia o borbulhar de seu interno mundo extraordinário.





[foto: Jonathan Carroll]

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Ella na passarela

Ella chegou ao clube desfilando aquele seu charme habitual ─ uma delicada mistura de graça, beleza e vivacidade. E ainda que Ella fosse uma mulher madura, do alto de seus 38 anos, conservava seus trejeitos de garota marota, dada uma discreta malícia em seu sorrisinho de lado, e uma evidente irreverência em seu corpinho de moça. Onde Ella entrava, e por onde Ella passava, atraía olhares de admiração. Ella movimentava-se com a graciosidade e leveza de quem está a bailar.

Ao caminhar toda formosa pela passarela que circunda a piscina, à procura de um lugar ao sol, Ella avistou de longe um tipo asqueroso (que ela mesma certa vez já havia observado com involuntária repulsa). Era um tipo chulo, excessivamente chulo. 

Ella pensou em dar meia-volta, mudar o caminho, só pra não ter de passar por aquele sujeitinho bronco, visto que o cara, comme d’habitude, já havia lançado a distância seu olhar ordinário de macho predador. Ella percebeu aquele tipinho "eu sou o lobo mau" lamber os beiços e teve uma espécie de náusea. Controlou-se. E achou que, uma vez dados os primeiros passos, era melhor não hesitar e voltar. Ia dar muito na cara que desviava daquele caminho apenas para evitá-lo. Respirou fundo, franziu o cenho e foi em frente.

Ella sempre via aquele sujeitinho vulgar por ali, geralmente cercado de mais uns três tipos semelhantes a ele. Já o havia visto também algumas vezes conversando sobre negócios com seu ex-marido (que raramente aparecia). E pelo fato de vê-los às vezes conversando, Ella se sentia constrangida a cumprimentar aquele ser tosco e estulto sempre que não havia como evitá-lo. Cumprimentava-o sempre com apenas um gélido movimento de cabeça, justamente pra não lhe dar espaço pra dizer nada. 

Ora, o que Ella poderia esperar ouvir de um sujeitinho daquele?

Ao vê-la passar, o malandro de quinta, com ar de quem quer puxar um papinho, adiantou-se e lhe perguntou: ─ o namorado não quis vir hoje? Ella bufou diante de tal atrevimento. Ficou puta da vida, ao ponto de não conseguir disfarçar o constrangimento que sentiu. Com um olhar sério e furtivo, não respondeu. Deu apenas um sorrisinho amarelo e sem graça. E continuou em frente, indignada, pensando: “não é que esse beiçudo barrigudo teve a pachola de me fazer uma pergunta dessa?”

A sorte dele foi que Ella era educada. O sorrisinho glacial, seguido de um ar de desprezo, disse tudo, mas certamente Ella desejou ser suficientemente grosseira para, soltando fogo pelas ventas, lhe perguntar:

─ Por que o senhor acha que seria minimamente razoável me fazer uma pergunta tão invasiva? Que relevância tem para você e/ou para a humanidade se meu namorado quis ou não quis vir hoje? Quando é que lhe dei espaço para o senhor se dirigir a mim, assim? Ah... faça-me o favor! A você, lobo mau com cara de bobo mau, caberia apenas me observar passar, ou, no máximo, respeitosamente me cumprimentar com um brevíssimo aceno de cabeça. E mais nada! Vá lamber esses beições pra lá e comer sua vovozinha ─ seu babaca ordinário! ou melhor: vá lamber sabão! como dizia a minha avó!