quinta-feira, outubro 26, 2017

Minha divina e amada filosofia


Quem se debruçar sobre a filosofia encontrará, em meio às suas diversas áreas e concepções, aquilo que chamamos de filosofia moral. E quem buscar esclarecimentos sobre o estoicismo deverá certamente um dia encontrar no meio de seu caminho uma pedra muito preciosa: Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.): advogado, questor, cônsul, filósofo político, senador, orador e escritor de primeira grandeza.

Porém, não se pode dizer que Cícero foi propriamente um estoico, pois buscou conciliar diferentes escolas filosóficas, tais como, entre outras, a platônica e a aristotélica, na tentativa de haurir uma moral prática que correspondesse às exigências da cidade (cf. A Virtude e a Felicidade, nota biográfica feita pelo tradutor, p.VII). Cícero era um homem ilustre não só pela sua posição social e política, eloquência e estilo, como também pela sua habilidade dialética e qualidades literárias.

Segundo Carlos Ancêde Nougué, tradutor de ao menos duas das obras ciceronianas abertas aqui ao meu lado, poder-se-ia chamá-lo de “um eclético neo-acadêmico, ou um platônico com elementos céticos e estoicos...”. [...] “Cícero teria pertencido, do ângulo gnosiológico, à Nova Academia (a Academia Cética de Arcilau), mas, ‘ao mesmo tempo’, ter-se-ia fortemente influído pelo Pórtico médio, pelo mero fato de ter frequentado mestres estoicos" (Do Sumo Bem e do Sumo Mal, apresentação do tradutor, p.XIII).

Mas qual era, pergunta Nougué, “a escola que norteava o ‘sincretismo’ [filosófico] de Cícero? A ‘escola’ Sócrates. O nosso filósofo era um perfeito discípulo de Sócrates, um perfeito seguidor do seu método sui generis, e, se o afirma claramente nas Tusculanas, pratica-o extensa e minuciosamente nas disputas de Do Sumo Bem e do Sumo Mal. ‘Conheça-te a ti mesmo’ ─ também filosoficamente: é esta a melhor suma desta obra maior” (idem, p.XIII).

Well... não estou aqui para falar propriamente de Cícero, mas simplesmente para apresentar uma tocante passagem do livro V das Tusculanas, intitulado A Virtude e a Felicidade: uma passagem que quando li pela primeira vez não resisti a transcrevê-la nos meus (já aqui comentados) caderninhos de anotações. Chamou-me à atenção não só a beleza literária (à qual sempre me rendo) dessa exortação à filosofia, como também a divinização que Cícero faz dela ─ o que, talvez, para muitos, seria uma impiedade.

A discussão, como o próprio título revela, versa sobre a relação entre virtude e felicidade, e Cícero abrirá a obra sustentando que “a virtude é suficiente para fazer o homem feliz..." e também que "é o que a filosofia nos ensina de maior e mais essencial” (p.4). Embora eu não concorde que para sermos felizes basta que sejamos virtuosos (tese que renderia uma longa discussão), não posso deixar de apreciar a passagem que se segue abaixo.


“Ó filosofia, és a única capaz de nos guiar! És tu que ensinas a virtude e que subjugas o vício! Que faríamos nós e em que se tornaria o gênero humano sem o teu socorro? És tu que deste à luz as cidades, para que vivessem em sociedade os homens, antes dispersos. És tu que uniste, primeiramente pela proximidade do domicílio, e em seguida pelos laços do matrimônio, e por fim pela comunhão da linguagem e da escrita. Tu inventaste as leis, constituíste os costumes, instituíste a ordem. Tu serás o nosso asilo; é à tua ajuda que recorremos; e, se em outros tempos nos contentamos com seguir em parte as tuas lições, nós hoje a elas nos submetemos inteiramente, sem reservas. Um só dia passado segundo os teus preceitos é preferível à imortalidade de quem quer deles se aparte. Que outro poder imploraríamos antes que o teu, que outro poder nos teria trazido a tranquilidade da vida, que outro poder nos teria aplacado o temor da morte? Está-se muito distante, no entanto, de render à filosofia a homenagem que lhe é devida. Quase todos os homens a negligenciam; muitos até a vituperam. Vituperar a ela, a quem se deve a própria vida – como alguém pode ser capaz de manchar-se com esse parricídio? Como alguém pode levar a ingratidão ao ponto de ultrajar um mestre que se deveria ao menos respeitar, ainda que não seja capaz de compreender-lhe bem as lições? Atribuo esse horror a que os ignorantes não podem, através das trevas que os cegam, penetrar a antiguidade mais remota, para ver aí que os primeiros fundadores das sociedades humanas foram os filósofos. Quanto ao nome, ela é moderna; quanto porém à coisa mesma, vemos que é muito antiga”

Cícero | A Virtude e a Felicidade | Tradução de Carlos Ancêde Nougué | São Paulo | Martins Fontes | 2005

terça-feira, outubro 24, 2017

Instruções para o arquiteto


Há tempos transcrevi esse pequeno excerto da fala do personagem Dom Rigoberto de Mario Vargas Llosa. Deixei-o ali nos rascunhos para publicá-lo com alguns comentários. Hoje resolvi desengavetá-lo. Mas notei que estou completamente sem tempo (ou será preguiça? ou desculpa esfarrapada?) de tecer quaisquer considerações a respeito. Então, apenas observo que a passagem trata de Dom Rigoberto dizendo a seu arquiteto (que havia feito um pequeno projeto do qual ele não havia gostado) a concepção que tem acerca de um futuro lar para ele, sua esposa Lucrécia (a seus olhos uma verdadeira deusa-humana) e seu filho Fonchito (uma criança deveras singular que se pode chamar, digamos assim, de um "anjo-endemoniado"). Digo também que essa é uma das obras que já li, grifei, reli e transcrevi várias partes (por pura fruição estética meeesmo). A riqueza da trama, dos personagens, da linguagem e dos temas ali tratados e discutidos é es-tu-pe-fa-ci-en-te. Perspicácia, ironia, humor, sensualidade, inteligência e imaginação saltam aos olhos de qualquer leitor de gosto delicado (num sentido bem humeano).  No mundo de Dom Rigoberto ─ mundo no qual "seus caprichos governarão" (amei essa frase rs) ─ reinam os livros, as obras de arte, o conhecimento, a cultura, o erotismo, muitíssimo prazer e, sobretudo, Dona Lucrécia - a soberana de seus desejos. 

« La liseuse » par Jean-Jacques Henner


“Nosso mal entendido é de caráter conceitual. O senhor fez este bonito desenho de minha casa e de minha biblioteca partindo da suposição — muito difundida, lamentavelmente — de que em um lar o importante são as pessoas, em vez dos objetos. Não o critico por fazer seu esse critério, indispensável para um homem de sua profissão que não se resigne a prescindir dos clientes. Mas minha concepção de meu futuro lar é a oposta. A saber: nesse pequeno espaço construído que chamarei de meu mundo e que meus caprichos governarão, a prioridade básica caberá aos meus livros, quadros e gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses quatro milhares de volumes e a centena de telas e estampas que devem constituir a razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor subordinará a comodidade, a segurança e a conveniência dos humanos às daqueles objetos. [...] Confio em que o senhor não tome o que acaba de ler — a preponderância que concedo a quadros e livros sobre bípedes de carne e osso — por uma tirada de humor ou pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada, consequência de experiências difíceis, mas, também, muito prazerosas. Não me foi fácil chegar a uma postura que contradizia velhas tradições — vamos chamá-las de humanísticas, com um sorriso nos lábios — de filosofias e religiões antropocêntricas, para as quais é inconcebível que o ser humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja considerado menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que aparece (se lhe for mais cômodo, digamos refletido) nas imagens da arte e na literatura. Poupo-o dos detalhes desta história e o transfiro à conclusão a que cheguei e que agora proclamo sem rubor. O mundo de velhacos semoventes do qual o senhor e eu fazemos parte não é o que me interessa, o que me dá prazer e sofrimento, mas sim essa miríade de seres animados pela imaginação, pelos desejos e pela destreza artística, presente nesses quadros, livros e nessas gravuras que consegui reunir com paciência e amor de muitos anos."



Llosa, Mario Vargas | Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Ana Angélica d'Avila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva | 2009 | p.14



Allegory of Sculpture | Gustav Klimt | 1889


(ah... vale lembrar que embora a obra Os Cadernos possa ser lida independentemente da obra que a antecede, ou seja, O Elogio da Madrasta, convém ler essa primeiro, pois o desenrolar da primeira trama condiciona, num certo sentido, a futura relação entre os personagens da segunda).

sábado, outubro 21, 2017

Um álibi


Ele diz..: "É preciso ter um amor - um grande amor na vida, pois esse é um álibi para as angústias sem motivo pelas quais somos acometidos."



Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.24

domingo, outubro 15, 2017

Reflexivo



by Christophe Charbonnel


O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.


Affonso Romano de Sant'Anna | Intervalo amoroso e outros poemas escolhidos | L&PM | 1999 | RS

sábado, outubro 07, 2017

Memorabilis


Dia lânguido, acinzentado, chuvoso e friozinho. Acabo de conferir a temper: 21 graus. A chuva é bem-vinda. Tempos secos. Tempos de seca. 

Há um mês trabalho num memorial. Um memorial descritivo de minha trajetória acadêmico-intelectual-profissional... rs... vixi. Sim, é um palavrão! E minha memória é longa e diversificada. Tem mais de meio século de existência. São quase 19 anos de memória acadêmica (formação, produção, temas e problemas filosóficos), mais 37 anos de memória extra-acadêmica ─ pessoal e existencial (educação, paixões, inclinações, motivos e circunstâncias). As memórias se confundem, se misturam, se entrelaçam.

Questões familiares, políticas, econômicas e existenciais ─ há um contexto de vida antecedente à minha entrada na academia que, por sua vez, revela que há uma relação intrínseca entre essas questões, minha escolha profissional, interesses e inclinações teóricas no estudo da filosofia. 

Confesso que tenho apreciado a experiência (que sempre adiei adiei adiei e agora não pude mais) de refletir e ordenar por escrito minha própria experiência, embora seja altamente desgastante e, num certo sentido, um pouco angustiante. Tenho de fazer uma síntese de minha história, escolher o que dizer, o que não dizer, como me colocar sem parecer vaidosa demais, caso eu não consiga deixar de ser vaidosa demais (porque pra modéstia nunca levei muito jeito mesmo rs). Afinal, devo, de algum modo, apresentar e falar sobre minhas qualidades, minha formação e produção acadêmicas, dizer o que fiz de bom, importante e significativo. E isso é, num certo sentido, autoelogiar-se. 

Hume abre sua autobiografia dizendo "It is difficult for a man to speak long of himself without vanity; therefore, I shall be short" (Hume, My Own Life). Eu gostaria de fazer o mesmo em meu memorial ─ to be short  ─ para não ser (ou ao menos não parecer) vaidosa demais. Mas não garanto.


deep inside
by Loui Jover

terça-feira, outubro 03, 2017

Without you


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

Eugénio de Andrade | Sem ti | Coração do Dia |1958