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sexta-feira, dezembro 30, 2022

Tecido de horrores

"É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...] Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidade universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal".

Charles Baudelaire apud Susan Sontag

In: Diante da Dor dos Outros


Art by Walter Crane | Pandora (1885)


sexta-feira, abril 09, 2021

La musique

LXIX


A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!

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BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293. 

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Franz Sedlacek | Abendlied | 1938 | #surrealism




domingo, maio 17, 2020

Baudelaire-ando



XCIII

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!




photo by Brett Walker

XCIII

A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


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BAUDELAIRE, Charles | As flores do mal | Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira | Edição biligue | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1985.

terça-feira, maio 14, 2019

Happy bday


Em alusão a Baudelaire, de minha parte, num Happy Bday, é mais fácil que eu me embriague de poesia do que de vinho ou de virtudes. Sendo assim, tomo aqui meu primeiro gole...



    "Perdão se sou existente - perdão!
    Quis dizer 'insistente'."

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P.H. Britto | Sete peças acadêmicas

sexta-feira, agosto 17, 2018

Imóvel e perene



"Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra" (...), diz a Beleza, essa divindade impassível cujo "(...) olhar, largo olhar" é feito de "clarões eternais".


Baudelaire | A Beleza | In: As Flores do Mal | Tradução de Jamil Haddad | São Paulo | Max Limonad | 1981



Resting | 1876 | by Victor Gabriel Gilbert | 1847-1933 | oil on canvas

domingo, abril 30, 2017

Dispersa na imensidão


O confiteor do artista


Como são prementes os dias de outono! Ah! Prementes a ponto de machucar! Pois há certas sensações deliciosas cuja indefinição não exclui a intensidade; e não há nada mais pungente que a ponta do infinito.

Que delícia indizível ter o olhar disperso na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, inocência incomparável do azul! A vela de uma pequena embarcação que vibra no horizonte, e que pelo tamanho diminuto e isolamento imita minha existência irremediável, melodia monótona do marulho; todas essas coisas pensam através de mim, ou eu penso através delas (pois, na desmesura do devaneio, o eu se perde depressa!); essas coisas pensam, eu digo, mas musicalmente e de forma pitoresca, sem argúcias, sem silogismo, sem deduções.

Em todo o caso, esses pensamentos, saiam eles de mim ou se lancem das coisas, cedo se tornam intensos. A energia que há na volúpia cria um mal-estar e um suspense positivos. Meus nervos retesados não proporcionam senão sensações gritantes e dolorosas.

E eis que a vastidão do céu me oprime, sua translucidez me exaspera. A falta de sensibilidade do mar e o caráter imutável do espetáculo me revoltam... Ah! Deve-se sofrer eternamente, ou eternamente fugir do belo? Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, larga-me! Chega de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo no qual o artista grita de susto antes de ser vencido. 

Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  pp.17-18

[ by Hanna of Hanna & Hedvig ]


Well, ao pesquisar o significado da palavra "confiteor", encontrei também o poema na língua original. Antes tivesse ficado quieta, pois isso foi suficiente para eu querer modificar, em ao menos alguns pontos, a tradução do Zer. Acho que eu não traduziria, por exemplo, "pénétrantes" por "prementes". Tampouco "pénétrantes jusqu’à la douleur" por "Prementes a ponto de machucar", mas, talvez, "Penetrantes até a dor" ... literalmente, enfin, traduzir exige que façamos escolhas. E nem sempre fazemos as melhores. As dúvidas nos atormentam, as decisões aussi. Ganha-se aqui, perde-se ali.

- Ah, mas por que me ocupar disso agora? 


Le Confiteor de l'Artiste


"Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes ! Ah ! pénétrantes jusqu’à la douleur ! car il est de certaines sensations délicieuses dont le vague n’exclut pas l’intensité ; et il n’est pas de pointe plus acérée que celle de l’Infini.

Grand délice que celui de noyer son regard dans l’immensité du ciel et de la mer ! Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur ! une petite voile frissonnante à l’horizon, et qui par sa petitesse et son isolement imite mon irrémédiable existence, mélodie monotone de la houle, toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite !) ; elles pensent, dis-je, mais musicalement et pittoresquement, sans arguties, sans syllogismes, sans déductions.

Toutefois, ces pensées, qu’elles sortent de moi ou s’élancent des choses, deviennent bientôt trop intenses. L’énergie dans la volupté crée un malaise et une souffrance positive. Mes nerfs trop tendus ne donnent plus que des vibrations criardes et douloureuses.

Et maintenant la profondeur du ciel me consterne ; sa limpidité m’exaspère. L’insensibilité de la mer, l’immuabilité du spectacle me révoltent… Ah ! faut-il éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau ? Nature, enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse, laisse-moi ! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil ! L’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu."



sábado, abril 08, 2017

Aspiração


"Aspiro a um repouso absoluto e a uma noite contínua. Poeta das loucas voluptuosidades do vinho e do ópio, não tenho outra sede a não ser a de um licor desconhecido na Terra e que nem mesmo a farmacopeia celeste poderia proporcionar-me; um licor que não é feito nem de vitalidade, nem de morte, nem de excitação, nem de nada. Nada saber, nada ensinar, nada querer, nada sentir, dormir e sempre dormir, tal é atualmente a minha única aspiração. Aspiração infame e desanimadora, porém sincera."

[Baudelaire 1867 | Proyectos de prólogos para "Flores do Mal" | Buenos Aires| 1944 | p.74 ]

[ Egon Schiele | 1890-1918 ]


quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Um hemisfério numa cabeleira




Deixa-me respirar por um bom tempo, por um bom tempo, o odor dos seus cabelos, neles mergulhar meu rosto, como um homem sedento mergulha o seu numa fonte. Deixe-me agitá-los com a mão como lenço perfumado, a fim de evocar lembranças na atmosfera.

Se você soubesse quantas coisas eu vejo, quantas coisas eu sinto, quantas coisas seus cabelos me dão a entender! Minha alma viaja levada por esse perfume como a de outros homens viaja pela música.

Em sua cabeleira cabe todo um sonho, em que abundam velas e mastros, imensos oceanos cujas correntes me levam a regiões de um clima deleitante, onde o espaço é mais azul e profundo, e a atmosfera é perfumada de frutos, folhas e pele humana.

No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto que fervilha de canções melancólicas, de homens vigorosos de todas as nacionalidades, de embarcações de todas as formas, cuja arquitetura sutil e complicada se recorta sob um céu imenso em que se instala o calor eterno.

Acariciando sua cabeleira, recupero os langores de longas horas passadas sobre um divã, na cabine de um belo navio, embalado pelo balanço imperceptível do mar no porto, entre vasos de flores e botijas refrescantes.

Na fogueira de sua cabeleira, respiro o cheiro do tabaco, misturado a ópio e açúcar, na noite de sua cabeleira, vejo resplandecer o infinito azul tropical; nas praias aveludadas de sua cabeleira, me inebrio de odores mesclados de alcatrão, almíscar e óleo de coco.

Deixe-me morder por um bom tempo essas tranças morenas e pesadas. Ao mordiscar esses cabelos elásticos e rebeldes, sinto como se experimentasse lembranças.




Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  p.57-58

segunda-feira, agosto 15, 2011

Morte dos Amantes



"Uma tarde feita de rosa e de azul místico, trocaremos um lampejo único, como um longo soluço, carregado de adeus."

Baudelaire | Morte dos Amantes | apud Roland Barthes.