Mostrando postagens com marcador vida. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vida. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, março 30, 2020

Pandemia




Assistindo ao Jornal Hoje, vejo o mundo mobilizado. O arsenal é de guerra, tanto em relação ao tratamento dos feridos quanto no combate aos inimigos.

Ouço os planos dos governos, dos chefes de estado e suas equipes. Os fatos, as news, as estatísticas, as previsões e possíveis estratégias. A ciência a todo vapor produzindo novas descobertas e instrumentos. Drones sobrevoando os espaços. Alertas.

Médicos, enfermeiros, auxiliares e toda uma cadeia de serviços essenciais. Medidas de isolamento, problemas de abastecimento. Toques de recolher. Consequências econômicas. Pacotes e mais pacotes de assistências emergenciais. Políticas de distanciamento, medidas restritivas. Mortes.

Itália, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, França: mortes e mais mortes. A China, dizem, aos poucos, vai voltando ao normal. População educada, higienizada, a maioria de máscaras e obedecendo às medidas de proteção. Rígido controle social. A Nigéria? Uma lástima. Muitas favelas. Não há saneamento básico. Água suja, lixo, miséria, doenças, tristeza e desorganização. Um caos. 

A calamidade é pública, quase universal. Há que se conter a crise. Impõe-se uma nova ordem. Tudo é urgente. A imprensa internacional critica Bolsonaro. Ouço falar na liberação de 306 bilhões de reais para assistir parte da população brasileira. O processo é moroso, depende da burocracia e da aprovação no congresso.

E lá vem o presidente, passeando pela cidade do Distrito Federal, fazendo politicagem. Viola as medidas de distanciamento. Posa para uma foto ao lado de uma criança no colo do pai ou outro irresponsável qualquer hipnotizado pelo mito. 

Bolsonaro faz um discurso tosco. É contra a política de isolamento social recomendada pelos mais bem preparados profissionais e instituições de saúde. Diz que devemos enfrentar o vírus como homem. Wow, cabra-macho! Em tom fatalista, culpa os pobres pela pobreza. E pergunta: É crime trabalhar?

Pergunta errada, Sr. Presidente!

Maju não consegue disfarçar sua indignação ao falar no dito-cujo. Nem eu.


................................................................


Imagem: Eyes without a face - Sophie Calle

domingo, abril 07, 2019

Cântico Negro


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

[...]

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

[...]

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

[...]

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

...............................

[ José Régio | Cântico Negro | Poemas de Deus e do Diabo ] 



Noir | by Hengki Koentjoro | Fine Art Photographer

terça-feira, janeiro 29, 2019

Void





A tristeza irreparável
Daquele que sabe que nada serve nem vale,
Que o esforço é um absurdo desgaste,
Que a vida é um espaço vazio,
Porque a desilusão vem sempre através da ilusão
E parece que a Morte é o sentido da Vida...
É isto, mas não é só isto, que tu vês no meus rosto
E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente...

Fernando Pessoa | in: Poemas de Álvaro de Campos | Editora Saraiva de Bolso | 2012.


terça-feira, junho 12, 2018

A morte feliz




"... Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós".

[Albert Camus | A Morte Feliz]


sábado, março 03, 2018

Notas sobre um acidente



Derrapou! E eis que salta a gigantesca abóbada do império. O automóvel toma vida própria, tal como se dissesse.

─ My lady, agora quem manda aqui sou eu. Adeus e passe bem, talvez mesmo desta para melhor. No freedom, no liberty, no power. Não há nada que possas fazer. Não há braço, cálculo, controle. Não há destreza, freio, câmbio, pneu ou direção. Testemos as engrenagens de tua vida. Vejamos se os gonzos estão bem ajustados. Testemos a tua sorte.

A estrada é perigosa. Não é à toa que a chamam de estrada da morte. Naquele minuto, a mente relê a história ─ a 120 quilômetros por hora. Dentro, tudo gira sobre si ao som de estilhaços. Fora, há o frio, a garoa, a neblina, a curva, o óleo na pista, o barranco, a vala, a lama.

Vê-se a viola em cacos. Os óculos, os sapatos, o notebook,  a tese. Livros, artigos, documentos, celulares ─ a vida  ─ tudo pelos ares.  Capotadas, piruetas, solavancos, hematomas e dores pelo corpo. But no cuts, no bloodno serious injuries, no broken bones. Lá se vai um brinco. Também um carro, um presente, um passado.


photo by © Tami Bone

domingo, janeiro 28, 2018

Lifetime




A outra face da vida

Nada revela o trabalho,
tão sorrateiro, do tempo,
nas profundezas do ser.

Como um 'iceberg' enorme,
tudo gira, de improviso.
Muda-se o plano da vida
pra face desconhecida.

Um ângulo de luz tão diferente
incide nos mais claros pensamentos...
Quantas lacunas inobservadas,
com seus abismos desconcertantes!
O que era terra firme e segura,
é gelo móvel e flutuante.


[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Curitiba | Inventa 2014 | p.91]


quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)

quinta-feira, junho 01, 2017

Frágil e incerta


Há pouco, ao me levantar da cadeira na qual estudava, levei um tombo ridículo (como em geral são os tombos). Virei-me rapidamente para ir até a sala buscar meu celular e tropecei feio no adorável cão da casa que, por sua vez, descansava silenciosamente logo atrás da cadeira. Chegou ali sem que eu, absorta, o tivesse percebido. Ele é meio cor de creme, o piso da casa é cor de creme e até eu sou meio cor de creme. Diante desse cenário de cores e tons praticamente indistintos, não vi nada na minha frente, afora, após o tombo, o chão na cara, uma escuridão momentânea, seguida de algumas estrelas piscando. Caí dura, de corpo inteiro no chão, feito bloco de pedra, pois o silente e vigilante companheiro ─ que é grande e alto ─ me passou uma rasteira. Levantou-se rapidíssimo deslocando meus dois pés do chão ao mesmo tempo. Sem qualquer apoio, a queda foi praticamente livre. Digo praticamente porque consegui amortizá-la um pouco com as duas mãos. As veias de meus pulsos saltaram grossas e roxas. Meus ossos gritaram. 

Doeu pacas!!! Cheguei a tocar o nariz e a testa no chão. Junto a essa cena tragicômica, senti uma pontada nas escápulas, no pescoço, e uma forte dor no peito. Ninguém assistiu ao espetáculo, a não ser o próprio Bóris ─ doce cão, amigo, querido, e cheio de expressão nos olhos. Sem ninguém para me acudir no momento, fiquei ali por um tempo, estatelada, gemendo muitos ais. Aos poucos, fui me levantando. Toda trêmula e doída.

Pensei: tive muita sorte. Se eu tivesse caído de modo um pouco mais desajeitado, as consequências poderiam ter sido desastrosas. Eu poderia ter quebrado o nariz, ou o osso da fronte, um ou outro ou ambos os braços, ou uma clavícula, os pulsos, ou mesmo o pescoço ─ um pensamento trágico nunca pode faltar em se tratando de moi...

Ah... como a vida é frágil e incerta! Eu poderia ter me quebrado toda. Um tombinho de nada (na verdade, um tombão ridículo!) e tudo que eu programei para a semana que vem, ou mesmo para o resto de minha vida, seria revirado, alterado ou afundado.

[Boris: cheio de expressão nos olhos]


E por falar em vida frágil e incerta, a gente ouve falar daquelas pessoas que morrem num tombo besta porque caíram de mau jeito. Pensei: ainda que eu esteja agora toda dolorida, com hematomas nos dois pulsos, caí de bom jeito, assim como capotei de bom jeito na famosa estrada da morte, em outubro de 2016, a mais ou menos 100 km de Curitiba. Nessa capotada, que de cômica não teve nada (uma clássica rodada no óleo de uma pista sob garoa), também tive muita sorte. Saí praticamente indene. Não fiz nenhum corte, não verti nenhuma gota de sangue, não quebrei um osso sequer. Ganhei apenas alguns hematomas abaixo dos joelhos, nas costelas e na clavícula esquerda, além de diversos incômodos práticos e dores pelo corpo todo (como se tivesse levado uma surra). Mal acreditei que na hora do acidente não fiquei nem tonta e saí andando, embora estupefata, imediatamente após o carro parar embicado numa vala do canteiro que divide as pistas. Mas, para a sorte do meu destino, "esse fantasma sincronizador" (como diz Humbert Humbert em Lolita), com as rodas no chão. Para não dizer que não perdi nada, perdi alguns materiais impressos de estudos (que foram parar na lama), um brinco da orelha esquerda, meu Celtinha "bala" ─ tão leve, rodado e cheio de spirit ─ e mais algumas ilusões.

.............................................
[marília côrtes / 2017]

sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]

quarta-feira, junho 29, 2016

Do abismo do desconsolo

Torturado, Amadeus se perguntava: - Como ela podia ter brincado com ele daquele jeito? Ter-lhe escrito que o coração dela era dele? Ter-lhe colocado no céu ao despertar-lhe as mais doces esperanças para, depois, lançá-lo ao abismo sem fundo do desconsolo? Não! Amadeus não podia compreender por que ela havia virado as costas para a paz, a serenidade, a sabedoria e o contentamento espiritual que ele lhe proporcionara por tantos anos. Não podia compreender por que ela jogava ao mar a vela que a levava longe, colocando-se, assim, à mercê das tempestades hedonistas que paralisariam sua alma aprisionada às demandas brutas de seu belo corpo. Era como se ela tivesse virado o rosto para seu próprio rosto. Sem o saber, iludida, afastando-se dele, afastava-se de si mesma, enterrando, assim, a possibilidade de sua alma receber o alimento que a mantinha governante de sua própria vida ─ a mais bela das vidas, o mais refrescante dos sopros. 

Dilacerado, Amadeus desejou que ela estivesse morta. Mas ela estava viva. Então, ele a matou em seu peito.



domingo, maio 22, 2016

Vida, amor, valor e morte


Dia calmo, chuvoso, cinza, frio, manso e melancólico. Havia escrito algo que emergiu, de repente, em minha mente, enquanto tomava meu longo e lento banho quente (poderia ter se tornado um poema, mas não). Assim que saí e me enrolei na toalha, ainda com as mãos úmidas, peguei o celular e, para que meus pensamentos não se perdessem, derramei-os rapidamente no aplicativo Day One. Mais tarde, na hora em que eu ia enviar o esboço para meu email, num minuto de bobeira, sem querer, apaguei-o inteirinho (e não há nesse aplicativo nenhuma alternativa do tipo CTRL Z do Word que possa recuperá-lo). Lá se foram meus pensamentos que não voltam mais, ao menos do modo natural e espontâneo com o qual eu os havia escrito.

No banho, eu pensava sobre a morte ─ um dos temas filosoficamente mais interessantes. Quanto mais vivo e estudo, quanto mais o tempo passa (ou eu passo por ele), mais penso sobre a morte, embora eu a tenha pensado desde que me entendo por gente (como se diz por aí). Porém, antes d'eu começar a estudar filosofia, era um pensar diferente: mais leve, mais solto, digamos, mais descompromissado e menos constante. Com o natural e implacável avanço da idade, o estudo da filosofia, o acúmulo de experiências na vida e a literatura, a morte passou a ocupar mais insistentemente (e de maneira mais profunda e sistematizada) minhas reflexões. Quero dizer, quanto mais o inexorável ciclo da existência me aproxima da morte, mais penso sobre a vida ─ sua natural acompanhante ─ e no valor dos valores que elegi para a minha vida.

[Amore et Mortem. Roberto Ferri]

Mutatis mutandis, esse tema é o fio condutor da novela A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, que entra no assunto aqui porque me lembrei de um comentário dessa obra feito por Alain de Botton em seu livro Desejo de Status (com essa inflexão, perdi o fio da meada e vou acabar escrevendo tudo de modo muito diferente do que havia escrito. Anyway...)

Quem já leu a novela de Tolstói sabe que ela versa sobre a agonia e sofrimento de um respeitável e bem sucedido juiz que, ao saber-se acometido de uma grave doença, aos 45 anos, vê-se diante do abismo da morte. Ao dar de cara com a morte, Ivan passa a reavaliar todo o seu passado, "sua criação, sua educação e carreira" e, aos poucos, chega à desgraçada e infeliz conclusão de que viveu toda a sua vida “motivado pelo desejo de parecer importante aos olhos dos outros”, e que “seus próprios interesses e sua sensibilidade foram sacrificados para impressionar as pessoas que, só agora ele vê, não deram a mínima para ele" (Botton, p.211). "Os prazeres que Ivan Ilitch obteve com o trabalho eram os do orgulho; os prazeres que obteve com a sociedade eram os da vaidade..." (Botton, p.210).

"[...] A sensação de ter desperdiçado sua curta vida é composta pelo reconhecimento de que era somente de seu status que as pessoas gostavam, não de seu eu verdadeiro e vulnerável. Ele foi respeitado por ser juiz, por ser um pai e chefe de família rico, mas com esses ativos prestes a desaparecer, em agonia e medo, ele não poderia contar com o amor de ninguém” (Botton, p.211-212) ─ tudo o que ele mais precisava.

O comentário de Botton ilustra sua tese de que a causa mais primária e profunda do desejo de status (enquanto valor e importância que temos aos olhos do mundo), intrínseco à natureza humana, é o desejo de ser amado ─ um desejo maior do que o de possuir dinheiro, fama e influência. Quer dizer, todo desejo de status que, segundo Botton, naturalmente possuímos, tem sua fonte primária no simples desejo de ser amado. De uma perspectiva filosófica e histórica (eu diria também psicológica), Botton apresenta algumas teses acerca das causas da obsessão contemporânea por status, e sugere, posteriormente, algumas soluções (que vou chamar aqui de pílulas filosóficas) que poderiam nos propiciar uma existência mais plena e significativa do que aquela que busca prestígio, fama e renome.

Ao rememorar os comentários de Botton sobre a obra de Tolstói, eu pensava no valor de todas essas coisas e, especialmente, no valor de certas pessoas em minha vida ─ aquelas que contribuíram para que ela se tornasse melhor, mais rica, exuberante e plena de significado. Pensava também no quanto o caminhar implacável para a morte (apesar de toda jovialidade de espírito, forma e movimentos que ainda habita o meu ser) faz com que eu reavalie o valor de todos os valores que nutri e nutro hoje em minha vida.

Mas o texto que eu havia escrito era completamente diferente. Mais inspirado, solto e saltitante. Também não fazia referências às obras supracitadas. A leitura delas foi apenas o ponto de partida. Na verdade, eu começava assim: ei, você aí, meu querido leitor, tão longe e tão perto, antes que seja tarde, deixe-me perguntar: o que torna tua vida mais inspirada e plena de significado? O que a faz valer a pena? O que é que contribui verdadeiramente para que ela viceje? O que a torna mais garrida? Quem, verdadeiramente, se importaria com a tua morte? E por aí eu ia... e eu mesma respondia: tens quase tudo que queres. Falta-te pouco, muito pouco. Mas esse pouco significa muito.

Tais pensamentos nada mais eram, pois, do que um diálogo sobre a vida, o amor e a morte  ─  bem como o valor de todos esses valores ─ travado entre o meu eu lírico e o meu leitor igualmente lírico (ou, se se quiser, meu interlocutor imaginário), enquanto tomava um longo e lento banho quente.

terça-feira, novembro 10, 2015

Sem depois


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

.....................................................................

Mia Couto: Poema: Sem depois. Idades Cidades Divindades: Lisboa: Caminho, 2007




sábado, novembro 30, 2013

A eternidade da morte


Conversando sobre a morte com a Bibi (minha filha de 19 anos), assim, ao acaso, ela me disse:

"não sei mãe
morrer... ah... morrer...
morrer é tão eterno né...?"

e eu: é!
no fundo...
morrer é que é eterno
e não viver
porque morrer é para sempre.

[Sculpture: Monumental Cemetery of Certosa di Bologna, Italy - by Renaud Martelli,1947]

quarta-feira, outubro 30, 2013

Eros e Thanatos

Num daqueles dias em que perambulo ao léu... procurando qualquer coisa que arrebente ou arrebate meu coração, ou mesmo que o estraçalhe de uma vez por todas, encontrei esse belo hino de Lou Andreas-Salomé. Não resisti à tentação. Não resisti a esse impulso de vida... e de morte! Voici!

Hino à Morte

No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua.

(NOVAES, Adauto (org.) Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987)


[Jardin du Luxembourg. La fontaine Médicis. Polyphemus surprising Acis and Galatea (1866). Auguste-Louis-Marie Jenks Ottin (1811-1890)]

segunda-feira, novembro 12, 2012

O tic-tac solitário do amor



Este é um daqueles momentos em que escrevo para evitar que uma granada exploda em meu peito. Yesterday, passei horas e horas a ler e escrever sobre as Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria-Rilke [1875-1926]. Elas são de uma beleza e profundidade abissais. Tais Cartas (publicadas em 1929, três anos após a morte de Rilke) foram escritas originalmente como respostas às inquietações de um jovem, Franz Xaver Kappus, que ambicionava ser poeta. Rilke, após algumas observações prévias, responde à primeira carta começando do seguinte modo: “O senhor me pergunta se os seus versos são bons. [...] Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) ...”

Sucedem-se daí dez cartas repletas de considerações sobre vários temas, dentre os quais, a arte a crítica o artista e o ato de criar; a quietude a solidão o silêncio e a grandeza; o amor o sexo e o instinto; a felicidade a beleza e a tristeza; a infância a inquietude do jovem e a maturidade; a coragem a covardia e a dúvida; a existência, Deus e a morte. What else?

Rilke fala das profundezas da vida com toda a densidade poética que o caracteriza.  Ao tocar nesses temas, Rilke oferece diversos conselhos a seu jovem interlocutor. Estes vão muito além da dimensão pessoal e interpessoal de suas Cartas ─ tocam qualquer ser racional sensível. E tocam ainda mais, creio eu, aqueles seres racionais sensíveis cujos corações ardem e explodem de amor.

E por falar em amor, transcrevo abaixo trechos da sétima carta, escrita em Roma (no dia 14 de maio de 1904). A propósito, precisamente 58 anos antes do exato dia de meu nascimento. Ao escrever esta carta Rilke tinha apenas 29 anos. Nela, ele estabelece uma indissociável relação entre amor e solidão. Pois bem...

“Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.”


“Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?). O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmo (‘escutar e bater dia e noite’), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado" (Rilke 2010: 64-66). Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac...


Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2010.


[Saatchi Online Artist Patrick Palmer; Painting, "Crying Lightly"].

sábado, abril 14, 2012

Amortevidavidamorte


Há tempos que não escrevo aqui. 
Ensaiei muitas vezes, travei, desisti, 
and now 
"aqui estou eu tentando viver, ou melhor, tentando ensinar a morte dentro de mim a viver" 
Jean Cocteau 
[1889-1963]
Bust of Jean Cocteau in Villefranch-sur-Mer
Sculptor Jacques Lipchitz
[1891-1973]