Mostrando postagens com marcador felicidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador felicidade. Mostrar todas as postagens

terça-feira, junho 12, 2018

A morte feliz




"... Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós".

[Albert Camus | A Morte Feliz]


segunda-feira, maio 14, 2018

Abismo-me


"Por mágoa ou por felicidade, sinto às vezes vontade de me abismar."

[ Barthes, Roland | Fragmentos de um Discurso Amoroso | p.9 ].

Abisme-se!


[photo by Taida Celi ]


quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)

quinta-feira, outubro 26, 2017

Minha divina e amada filosofia


Quem se debruçar sobre a filosofia encontrará, em meio às suas diversas áreas e concepções, aquilo que chamamos de filosofia moral. E quem buscar esclarecimentos sobre o estoicismo deverá certamente um dia encontrar no meio de seu caminho uma pedra muito preciosa: Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.): advogado, questor, cônsul, filósofo político, senador, orador e escritor de primeira grandeza.

Porém, não se pode dizer que Cícero foi propriamente um estoico, pois buscou conciliar diferentes escolas filosóficas, tais como, entre outras, a platônica e a aristotélica, na tentativa de haurir uma moral prática que correspondesse às exigências da cidade (cf. A Virtude e a Felicidade, nota biográfica feita pelo tradutor, p.VII). Cícero era um homem ilustre não só pela sua posição social e política, eloquência e estilo, como também pela sua habilidade dialética e qualidades literárias.

Segundo Carlos Ancêde Nougué, tradutor de ao menos duas das obras ciceronianas abertas aqui ao meu lado, poder-se-ia chamá-lo de “um eclético neo-acadêmico, ou um platônico com elementos céticos e estoicos...”. [...] “Cícero teria pertencido, do ângulo gnosiológico, à Nova Academia (a Academia Cética de Arcilau), mas, ‘ao mesmo tempo’, ter-se-ia fortemente influído pelo Pórtico médio, pelo mero fato de ter frequentado mestres estoicos" (Do Sumo Bem e do Sumo Mal, apresentação do tradutor, p.XIII).

Mas qual era, pergunta Nougué, “a escola que norteava o ‘sincretismo’ [filosófico] de Cícero? A ‘escola’ Sócrates. O nosso filósofo era um perfeito discípulo de Sócrates, um perfeito seguidor do seu método sui generis, e, se o afirma claramente nas Tusculanas, pratica-o extensa e minuciosamente nas disputas de Do Sumo Bem e do Sumo Mal. ‘Conheça-te a ti mesmo’ ─ também filosoficamente: é esta a melhor suma desta obra maior” (idem, p.XIII).

Well... não estou aqui para falar propriamente de Cícero, mas simplesmente para apresentar uma tocante passagem do livro V das Tusculanas, intitulado A Virtude e a Felicidade: uma passagem que quando li pela primeira vez não resisti a transcrevê-la nos meus (já aqui comentados) caderninhos de anotações. Chamou-me à atenção não só a beleza literária (à qual sempre me rendo) dessa exortação à filosofia, como também a divinização que Cícero faz dela ─ o que, talvez, para muitos, seria uma impiedade.

A discussão, como o próprio título revela, versa sobre a relação entre virtude e felicidade, e Cícero abrirá a obra sustentando que “a virtude é suficiente para fazer o homem feliz..." e também que "é o que a filosofia nos ensina de maior e mais essencial” (p.4). Embora eu não concorde que para sermos felizes basta que sejamos virtuosos (tese que renderia uma longa discussão), não posso deixar de apreciar a passagem que se segue abaixo.


“Ó filosofia, és a única capaz de nos guiar! És tu que ensinas a virtude e que subjugas o vício! Que faríamos nós e em que se tornaria o gênero humano sem o teu socorro? És tu que deste à luz as cidades, para que vivessem em sociedade os homens, antes dispersos. És tu que uniste, primeiramente pela proximidade do domicílio, e em seguida pelos laços do matrimônio, e por fim pela comunhão da linguagem e da escrita. Tu inventaste as leis, constituíste os costumes, instituíste a ordem. Tu serás o nosso asilo; é à tua ajuda que recorremos; e, se em outros tempos nos contentamos com seguir em parte as tuas lições, nós hoje a elas nos submetemos inteiramente, sem reservas. Um só dia passado segundo os teus preceitos é preferível à imortalidade de quem quer deles se aparte. Que outro poder imploraríamos antes que o teu, que outro poder nos teria trazido a tranquilidade da vida, que outro poder nos teria aplacado o temor da morte? Está-se muito distante, no entanto, de render à filosofia a homenagem que lhe é devida. Quase todos os homens a negligenciam; muitos até a vituperam. Vituperar a ela, a quem se deve a própria vida – como alguém pode ser capaz de manchar-se com esse parricídio? Como alguém pode levar a ingratidão ao ponto de ultrajar um mestre que se deveria ao menos respeitar, ainda que não seja capaz de compreender-lhe bem as lições? Atribuo esse horror a que os ignorantes não podem, através das trevas que os cegam, penetrar a antiguidade mais remota, para ver aí que os primeiros fundadores das sociedades humanas foram os filósofos. Quanto ao nome, ela é moderna; quanto porém à coisa mesma, vemos que é muito antiga”

Cícero | A Virtude e a Felicidade | Tradução de Carlos Ancêde Nougué | São Paulo | Martins Fontes | 2005

sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Um pico certeiro na veia



Dalton Trevisan disse uma vez que "um bom conto é pico certeiro na veia". A meu ver, ao dizer isso, Trevisan já nos dá um pico na veia. No entanto, não estou aqui para falar de contos, mas sim de filosofia.

Mutadis mutandis, penso que existem mais coisas boas, além de um bom conto, que podem ser consideradas um "pico certeiro na veia": uma frase forte, densa, profunda, curta e precisa (tal como essa picada dada pelo próprio Trevisan); três, cinco, ou, talvez, sete linhas contidas numa ideia breve, mas brilhante, que nos atinja como um olhar dardejante, ou mesmo uma paulada na cabeça, um corte na jugular ou um tiro na fonte. Sim, um pico certeiro na veia, tal como uma facada no peito, pode nos levar desta para o nada absoluto (pois não creio que a gente vá desta para melhor). 

Além dos literatos, alguns filósofos são especialistas em picar nossas veias. Schopenhauer é um deles. Ao tratar do tema "felicidade", um tópico caro à filosofia, bem como a qualquer mortal comum, ele tem coisas interessantes a dizer, ainda que possa soar no mínimo curioso um filósofo pessimista (que concebe o sofrimento como a essência da vida e a felicidade como simples ausência de dor) ter algo interessante a dizer sobre a arte de ser feliz. Acerca desse tema já teci alguns comentários aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/02/felicidade-amor-pelo-estudo-e-ilusoes.html e aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/03/ilusao-crenca-esperanca-paixao-e-auto.html a partir de outros autores da filosofia.

Em A Arte de Ser Feliz (um pequeno tratado que contém anotações, máximas e regras de vida), Schopenhauer afirma, entre muitas outras coisas, que a principal verdade da arte de ser feliz é a de que tudo depende muito menos daquilo que se tem ou representa do que daquilo que se é... e que "a personalidade é a felicidade suprema" (p. 126). Quer dizer, o que se tem (bens e posses) ou representa (a reputação, a categoria, a fama) são bens necessários para a felicidade, mas o que se é (a personalidade), é, de longe, mais fundamental para atingir tal fim (p.123). “Aquilo que alguém tem para si mesmo, aquilo que o acompanha na solidão e que ninguém pode lhe dar ou tirar é muito mais essencial do que tudo o que possui ou do que ele representa aos olhos alheios” (p.126).

Convém notar que o termo personalidade é aqui concebido em sentido muito mais amplo, “compreendendo a saúde, a força, a beleza, o caráter moral, a inteligência e a educação da inteligência" (A Arte de Ser Feliz, p.123). De acordo com Schopenhauer, a maior parte desses bens  ─ que não só contribuem para a felicidade, mas também estabelecem “a diferença na sorte dos mortais” (p.123) ─ depende do quanto a natureza foi ou não generosa conosco - o que não significa, obviamente, que não podemos fazer nada com o que a natureza fez de nós. Como e qual é a (suposta) margem de manobra (ou liberdade) que temos para alterar as determinações que a mãe ou, dependendo do caso, a madrasta natureza fez de nós seria matéria para outro post (que não sei se um dia vou escrever).

Ele diz também (e aqui me aproximo de onde quero chegar) que "em todas as ocasiões possíveis usufrui-se na verdade apenas de si mesmo: se o próprio eu não vale muito, então, todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel” (Máxima 44, p.108).

Ora, quando Schopenhauer faz menção ao "próprio eu" (esse é o ponto), ele está a se referir especificamente ao caráter moral do sujeito, ou seja, àquilo que ele é em sua essência. Vale dizer, em sua consciência moral.

Em Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer se serve da máxima expressa pelos escolásticos  “Operari sequitur esse” segundo a qual as “ações se seguem do ser” ou “o fazer se segue do ser”, para enfatizar a dependência da ação de alguém em relação ao seu caráter. “Como alguém é, assim tem de agir” (SFM § 10: 96). Nesse sentido, as ações dos homens são signos de seu caráter. Então, se queres conhecer alguém, observes regularmente como ele age, como ele se comporta, que tipo de coisas ele é capaz ou não de fazer. A observação constante do temperamento, do comportamento e das ações de uma pessoa, sob determinadas circunstâncias, é fator indispensável para o conhecimento de seu caráter. Essa é uma regrinha básica de sabedoria de vida que poderia ser considerada um truísmo caso não fosse pronunciada pela boca de um filósofo da envergadura de Schopenhauer (e de outros tantos do mesmo calibre). Pois não se exige propriamente filosofia para o seu conhecimento ─ a experiência confirma a regra.

Mas voltemos à picada na veia (deixando de lado os problemas que emergem da distinção schopenhaueriana acerca do caráter inteligível, caráter empírico e caráter adquirido, bem como as consequências disso tudo para a teoria sobre a liberdade e responsabilidade moral). 

A sentença segundo a qual se o caráter do indivíduo "não vale muito... todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel" é, a meu ver, um pico certeiro na veiaFeliz de quem sacar essa “sabedoria de vida” e souber usar a margem de manobra que se tem para conseguir corrigir, com a experiência e a instrução (a educação da inteligência) os péssimos traços ou desvios de caráter com os quais a madrasta natureza por ventura o dotou. Ser belo, saudável, inteligente, sedutor, abastado (e possuir muitos outros bens) contribui em muito para a felicidade, mas se o caráter não for bom, dificilmente tal indivíduo será feliz ─ o que significa que a qualidade do caráter de um indivíduo é o que mais importa para a sua felicidade. 

Quem não teve a sorte de ser agraciado por uma natureza-mãe em sua constituição natural (especialmente quanto ao caráter e temperamento), e não compreender os princípios básicos da arte de ser feliz, jamais poderá saborear os néctares dos deuses, ainda que eles desçam dos céus e lhe ofereçam diretamente em seus lindos lábios.

quarta-feira, novembro 21, 2012

Agir bem para bem viver




“... a prudência é o princípio e o supremo bem, 
razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; 
é dela que originaram todas as demais virtudes; 
é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, 
e que não existe prudência beleza e justiça sem felicidade” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 45).

Platão, ao buscar definir a essência da justiça, considerou-a o mais belo de todos os bens. Ele afirma que a justiça deve ser amada tanto por si mesma quanto por suas consequências. E como virtude, par excellence, deve ser amada também por “aquele que quer ser plenamente feliz” (República II).

Aristóteles, por sua vez, ao procurar “o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação” diz, na Ética a Nicômaco, que “quase todas as pessoas estão de acordo quanto ao fato de que esse bem mais alto é a felicidade", pois “identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz”; mas adverte que eles diferem “quanto ao que seja a felicidade” (EN I 4: 1095a 20).

Se quisermos saltar séculos à frente, para o período humanista da filosofia moderna, podemos encontrar, nos Ensaios de Montaigne, afirmações semelhantes: "A meu ver, a felicidade do homem consiste em bem viver" (Essays II) e “não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente” (Essays III).

E se remontarmos mais uma vez à antiguidade, encontraremos na Carta sobre a felicidade de Epicuro, além da epígrafe acima, a afirmação segundo a qual “as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 47).

Sêneca, dois séculos após Epicuro, por seu turno, declara que “a vida feliz apoia-se, estável e imutavelmente, sobre a retidão e certeza do juízo”, e que é “feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida” (Sêneca. A Vida Feliz, p. 30-31).

Em sua apresentação à obra de Sêneca, Diderot observa que, de acordo com o estoico, “para alcançar a felicidade é necessária a liberdade: a felicidade não é para quem possui outros senhores além do próprio dever. Mas [pergunta Diderot], não será o dever um patrão arrogante? E na condição de serviência que importa a qual senhor se sirva? Importa demasiado: o dever é um senhor do qual não se pode libertar sob pena de tornar-se infeliz” (Sêneca. A Vida Feliz, introdução, p. 12).


domingo, março 08, 2009

Ilusão, crença, esperança, paixão e auto-engano

Querido Aguinaldo

Obrigada pelo comentário em Felicidade e Ilusão . Você, como sempre, toca em pontos interessantes e fomentadores de discussões (isso dá um trabalho... rs). Não sei bem, mas me parece que nossas divergências em relação à ilusão se resumem a pontos de vista e associações de idéias ao termo.

Diferentemente do seu ponto de vista, tentei relacionar a felicidade e a ilusão de um ponto de vista objetivo, detendo-me mais na letra do que no espírito do que a Marquesa diz. Daí que eu não teria propriamente objeções a fazer, embora eu não possa deixar de me questionar sobre alguns pontos.

Fiquei a pensar nas associações que você fez. Primeiro associou o termo ilusão à ilusão de ótica, depois à crença, depois, quando falou do amor, à esperança e à paixão, e depois ainda, ao auto-engano (que nesse caso podemos apenas chamar de um “mecanismo inconsciente constitutivo de nossa natureza”). Curioso.

Você pergunta: “Se afirmo que a noite faz um silencio absoluto, estou sendo conduzido pelos meus imperfeitos poderes auditivos, haja vista não poder captar muitos sons que escapam à limitada capacidade que tenho de escutar. Mas será um erro afirmar, do meu ponto de vista, que a noite está absolutamente silenciosa? Acho que não”.


Bom, pensei também no sol, por exemplo, que é visto por nós bem pequeno em relação a seu tamanho real. Objetivamente ele é enorme, por razões já bastante conhecidas. Será que a questão então se resumiria em como eu vejo o mundo e como ele é de fato? Vou dar um exemplo que provavelmente não diríamos que é um caso de ilusão de ótica, mas penso que pode ser chamado de ilusão, no sentido em que você empregou o termo, ou visão equivocada, no sentido em que eu o tomei.

Por muitos anos mantivemos a visão, ilusão ou crença de que a terra era o centro do universo e que o sol girava em torno dela, até que Copérnico nos fez saber que o centro era o sol e que é a terra que gira em torno dele. Intuitivamente percebemos a terra parada, mas (contra - intuitivamente) agora sabemos que a terra gira também em seu próprio eixo. Você não diria que ao acreditarmos naquilo incorríamos em erro, ou que tínhamos uma visão equivocada desses movimentos? E que depois de Copérnico corrigimos nossa visão? Ao menos a meu ver, não vejo aqui como dissociar ilusão e erro.



Depois você diz: “veja o caso de Deus. Afirmar que Deus existe é um erro ou uma ilusão? Parece-me apenas uma ilusão muito mais do que um erro. [...] Como é insolúvel a questão sobre se Deus existe ou não (admito isso sem discutir), afirmar que ele existe não poderá ser dito um erro (pode ser que ele exista). Parece-me muito mais uma ilusão.” Ok, isso me fez perguntar: qual a diferença, então, entre crença e ilusão? A pergunta vale também para o ponto que você coloca sobre a liberdade.

Em relação ao amor você afirma “Ora, nenhum ser destituído de ilusão poderá pensar que um outro ser possa lhe trazer felicidade”. Mas por que não? Porque ele perceberá que uma felicidade duradoura, em sentido pleno, não deve, por questão de segurança, depender de um outro ser. Mas talvez um ser destituído de ilusão possa perceber que embora a sua felicidade não deva depender de um outro ser, esse outro ser pode contribuir em muito para sua felicidade, caso contrário teríamos de dizer ou que somos capazes de ser feliz independentemente de qualquer coisa, ou que só podemos ser felizes com alguém se nos mantivermos sempre iludidos, digamos, fora da realidade - e aí eu não me simpatizo mesmo com a idéia. Aliás, a associação do termo ilusão que me é mais simpática é a que relaciona ilusão à arte, ao encantamento proporcionado pela criação e contemplação estéticas. Agora, interessante que esse encantamento não deixa de ser algo que poderia ser também chamado paixão.

Você pede para eu perceber que você fala em "momentos", “pois há algo na ilusão que diz respeito ao desligamento dos botões do tempo. Não somos nós que apertamos o botão para que o tempo deixe de existir. Simplesmente o tempo deixa de existir e então ocorre o mergulho. E cremos, talvez com nossas mais poderosas forças, naquilo que a ‘suspensão do tempo’ nos oferece. E não será completamente ilusório pensar que nossa existência goze de algo fora do tempo? Naturalmente não teria sentido eu pensar: ‘sou feliz e sou iludido’. O que ocorre parece ser algo como: ‘sou feliz’. E depois: ‘eu era feliz (e iludido)’.” Diante disso, fiquei a pensar: será que sempre que estou feliz é porque estou iludida? Não pode haver felicidade sem ilusão? O que é felicidade real e o que é felicidade ilusória? Podemos, com propriedade, admitir como felicidade (em sentido pleno) uma felicidade ilusória? Podemos mesmo ser felizes ou podemos apenas ter a ilusão de que somos felizes?

Bom, acho que quando li pela primeira vez o Discours da Marquesa estava sob a influência da eudaimonia. Percebi que o tratamento que dei para a idéia de felicidade envolvia algo de mais pleno e duradouro, uma concepção, digamos, mais próxima da aristotélica, aquela que se diz amealhada “numa vida completa”, uma vez que, “um dia, ou um breve espaço de tempo [um momento ou alguns momentos], não faz um homem feliz e venturoso”. Agora, como você bem sabe: penso, logo, mudo de idéia... haha.


Quanto à sua última observação, não entendi qual a nossa divergência: não disse em momento algum que existe um número maior de mulheres que superam os homens, mas que podemos constatar numa proporção sem precedentes apenas, que muitas mulheres superam em muito muitos homens. E não pensei só na academia, mas em atividades variadas (como a política, por exemplo, ou qualquer outra atividade antes delegada e permitida apenas aos homens). O que me parece notável é a progressão aritmética deste quadro que, acredito, se deu com a liberdade que elas conquistaram, dentre outros fatores sócio-histórico-culturais.

Você pensa que eu sou muito otimista sobre as diferenças entre homens e mulheres. É verdade, sou mesmo, e penso que você tem uma idéia um tanto preconceituosa em relação às múltiplas capacidades das mulheres, se esquece que hoje, a exceção de atividades que exigem uma força máscula (ou que são mais apropriadas mesmo aos homens - não me peça para dar exemplos rs), elas revelam poder exercer qualquer outra atividade tão bem ou melhor do que muitos homens. Concordo que há muitas diferenças biológicas (ou de natureza) entre mulheres e homens, diferenças que contribuíram para que o quadro fosse restritíssimo para elas exercerem muitas atividades em tempos mais remotos, mas que muitas dessas restrições foram conseqüências do que fizeram (e fizemos) com a natureza das mulheres (nada a ver com aquele blá-blá-blá de vítimas).

Filosofar, por exemplo, depende não só de capacidade e inclinação naturais, mas de tempo, ócio, reflexão, liberdade e acesso. Ora, se às mulheres cabia, em parte por natureza, e em parte por imposição do contexto em que viviam, unicamente os cuidados consigo própria, a casa, filhos e marido, que tempo, acesso e liberdade restavam a elas para se dedicarem à filosofia, ou mesmo à política, à engenharia ou à medicina? Nada disso era acessível a elas. Muito poucas tinham acesso aos estudos. E isso mudou, alterando completamente o quadro estatístico. Acredito que há algo que podemos fazer além de nos dobrarmos a nossas determinações e características genéticas. E as mulheres estão saindo do armário, como diz o Milk em relação aos gays. Talvez, num futuro longínquo, tais mudanças possam ser ditas frutos de uma evolução da espécie (ou do gênero mulher), uma seleção natural dos mais fortes e aptos. E acho que não precisamos aqui falar em números.

Preciso dar um fim nisso. Hora de trabalhar!
Obrigada por vascolejar minhas idéias. Beijo e me liga ...

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Felicidade, amor pelos estudos e ilusões



Num desses felizes encontros casuais me deparei, ao entrar na USP, com uma mesa cheia de livros de filosofia expostos ali para vender. Uma tentação para quem gosta. Não resisti. Parei, toquei alguns, passei os olhos por aqui, por ali, respirei fundo (para sentir o cheiro daqueles livros novinhos), abri um, li partes, abri outros, devorei trechos, pensei: compro-ou-não-compro? Calculei os custos e benefícios e, controlada, comprei dois: um, dentre tantos que necessito: A Política de Aristóteles; e outro, que não conhecia, mas que me despertou uma curiosidade gostosa: o Discours sur le bonheur, de Madame Du Châtelet.


Quem seria essa mulher que escrevia, em meio a toda profusão grafomórfica sobre o assunto (muitos tratados, ensaios, cartas, poesias, teorias e teses sobre a felicidade já foram escritos) esse pequeno Discurso sobre a Felicidade - um tema que interessa a qualquer ser humano digno de assim ser chamado?

Penso que todos haverão de concordar com a máxima de que “todos os homens desejam ser feliz” e que, por isso, todos, de uma maneira ou de outra, buscam a felicidade. Porém, nem todos concordariam, como disse Aristóteles, quanto ao que seja a felicidade (EN I 1095a 20) e quais os meios para alcançá-la. Mas é notável que a idéia de felicidade reúne elementos comuns (e universais) facilmente aceitáveis para qualquer cabeça pensante (que pense minimamente bem, é claro!).

Por exemplo: a maioria das pessoas concordaria que a felicidade é um bem desejável, aliás, lembremos novamente Aristóteles, o bem mais desejável de todos (EN I 1097b 15), e que ela tem relação com ações, paixões, prazeres e dores, virtudes e vícios. Não são poucos os exemplos disso encontrados nas diversas obras sobre o tema.

Um exemplo dessa relação nos oferece Epicuro em sua Carta sobre a felicidade (a Meneceu): “De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas”(p. 45-46).

Bom, o Discours sur le bonheur de Émilie du Châtelet [1706-1749] despertou minha curiosidade não só pelo tema (já que eu também persigo a felicidade, como todo e qualquer mortal comum), mas também porque foi escrito por uma mulher. E, pasmem, uma mulher do século XVIII, tempo em que a atividade filosófica era, raríssimas exceções, reservada aos homens.

Abri e avidamente devorei aquele livrinho: uma nova personagem da literatura filosófica francesa do século XVIII apresentava-se a mim, conhecida não só por sua personalidade e comportamentos inusitados para a época, mas também por sua erudição filosófica, literária e mesmo científica. Muito se tem a dizer sobre a vida e escritos dessa mulher que não caberia aqui nesse pequeno espaço. Por isso, limito-me a tecer apenas alguns comentários.

Segundo Elisabeth Badinter, que escreve um pequeno prefácio à tradução da obra, a pergunta que se coloca nesse pequeno discurso é: “como ser feliz neste mundo e, sobretudo, quando se trata de uma mulher que, apesar de excepcional, vê proibidas para si quase todas as ambições e glórias permitidas aos homens?”

E mais, ao passar das reflexões gerais sobre a felicidade a reflexões e confidências mais íntimas sobre seu caso particular, a pergunta de Madame Du Châtelet desdobra-se também em “como ser feliz, enfim, quando se é uma amante apaixonada exclusivista e tirânica?”

Como se essas questões já não fossem suficientemente interessantes, é digno de nota que Du Châtelet estudou obstinadamente matemática, física e metafísica e foi considerada “a mais consistente e completa das ‘eruditas’ de sua época”, reconhecida (a contragosto de muitos) pelo mundo científico. Ademais, era uma amante (e notem, por favor, não uma esposa) apaixonada por ninguém mais ninguém menos do que Voltaire. Nesse sentido, deu o que falar, pois não só separou-se do marido e viveu por alguns anos um romance com Voltaire, como também, ao separar-se deste, alguns anos depois, “perdeu a cabeça” novamente por um jovem oficial da corte de Lorena chamado Saint-Lambert, dez anos mais novo do que ela, provocando assim um escândalo na sociedade ao engravidar dele aos 41 anos de idade.

Bom, façamos um recorte do que aqui interessa agora ser comentado, ou seja, ao menos algumas fontes e detalhes que podem, segundo Émilie, contribuir para a nossa felicidade.

Madame Du Châtelet diz que “devemos começar por nos dizer – e nos convencermos disso – que nada temos a fazer nesse mundo a não ser nos proporcionar sensações e sentimentos agradáveis. Os moralistas que dizem aos homens: reprimam suas paixões e controlem seus desejos se quiserem ser felizes, não conhecem o caminho da felicidade. Só se é feliz com os gostos e paixões satisfeitos; digo gostos, porque nem sempre se é suficientemente feliz com as paixões, e, na ausência de paixões, é preciso contentar-se com os gostos. Deveríamos, portanto, pedir paixões a Deus, caso ousássemos pedir-lhe algo” (pp. 4-5).

Curioso isso, pois vocês leitores não perguntarão a ela se as paixões não nos fazem mais infelizes do que felizes? Ça dépend, eu diria: é preciso qualificar as paixões. Émilie considera as paixões que contribuem para a nossa felicidade (as chamadas paixões virtuosas) e as que nos arrastam à infelicidade (paixões viciosas). Além disso, afirma : “... quanto menos nossa felicidade depende dos outros, mais nos é fácil ser feliz” (p.20). Nesse sentido, uma das paixões que Émilie considera virtuosa e menos dependente dos outros é a paixão pelo estudo:



“... por essa razão de independência, o amor pelo estudo é, de todas as paixões, a que mais contribui para nossa felicidade. No amor pelo estudo encontra-se encerrada uma paixão da qual uma alma elevada jamais é inteiramente isenta, a da glória; para a metade das pessoas, existe apenas essa maneira de conquistá-la, e a essa metade justamente a educação arrebata os meios de alcançá-la, tornando-lhe a fruição impossível” (p. 21).

É claro que essa paixão específica não captura a todos. É preciso ter inclinação para ela. Mas Du Châtelet observa que “o amor pelo estudo é menos necessário à felicidade dos homens que à das mulheres”. Ora, por quê? Primeiro é preciso lembrar que estamos no contexto do século XVIII, época em que as mulheres tinham poucos, digamos assim, instrumentos para alcançar a felicidade. Às “mal-nascidas” ou desprovidas de nobreza e riquezas, restavam-lhes o casamento, filhos e afazeres domésticos. E se a sorte não colocasse em sua vida um bom (pra não dizer excelente) casamento (e aqui não é fácil determinar o que significa um excelente casamento) e bons filhos, aí é que a felicidade tornar-se-ia mesmo impraticável. Já “os homens têm uma infinidade de recursos, que faltam inteiramente às mulheres, para serem felizes” (p. 21).

Certamente podemos empregar os verbos dessa última frase no passado, pois hoje, em pleno século XXI, as coisas não são mais assim. Atualmente a mulher conquistou muito do espaço que antes era reservado apenas aos homens. Aliás, permitam-me que eu me divirta um pouco rsrs, podemos constatar que, numa proporção sem precedentes, muitas mulheres superam em muito muitos homens (hehe, está aí Andrea Faggion que não me deixa mentir).

Mas voltemos ao século XVIII. Nessa época, os homens tinham muitos outros meios de se chegar à glória (uma paixão reconhecidamente das mais desejáveis). Eles podiam “tornar seus talentos úteis a seu país e servir seus concidadãos, por sua habilidade na arte da guerra, ou por talentos para o governo, ou ainda pelas negociações” - ambições, segundo Du Châtelet, “bem acima da glória que é possível se propor pelo estudo”. Já as mulheres eram “excluídas por sua condição, de qualquer espécie de glória”, mas quando, por acaso, se encontrava alguma que havia nascido com a alma elevada, só lhe restava o estudo para consolá-la de todas as exclusões e de todas as dependências às quais ela se encontrava condenada por condição (cf: p. 22). Era o caso dela.

É engraçado que esse quadro mudou muito, no sentido que indiquei acima, ou seja, de que as circunstâncias em que as mulheres vivem hoje já não limitam tanto os meios que elas têm de alcançar a felicidade. Mas nem por isso o amor ao estudo (válido evidentemente para aquelas que têm uma inclinação natural a ele) deixou de ser “um recurso seguro contra as desventuras” [...] “uma fonte inesgotável de prazeres” (p. 23-24). E nisso eu concordo com ela, embora eu pense também que o estudo (ou o conhecimento) contribui para que nos dispamos de muitas ilusões, um outro elemento que curiosamente Madame Du Châtelet afirma ser necessário para a felicidade.

Diz ela: “Para ser feliz é preciso desfazer-se dos preconceitos, ser virtuoso, gozar de boa saúde, ter gostos e paixões, ser suscetível de ilusões, pois devemos a maioria de nossos prazeres à ilusão, e infeliz de quem a perde. Em vez, portanto, de tentar fazê-la desaparecer com a chama da razão, tratemos de adensar o verniz com que ela reveste a maioria dos objetos; este é-lhe ainda mais necessário do que os cuidados e os adereços o são para nossos corpos” (p. 4).

É como se ela dissesse que certos objetos necessitassem de um verniz que escondesse suas imperfeições e misérias, um verniz que desse brilho e adornasse o que em si seria demasiadamente fosco e cru. Não sei se essa idéia cai bem à minha natureza, mas muitos dizem que, na medida do possível, quanto menos sabemos sobre a realidade das coisas, quanto mais ignorantes, mais facilmente somos felizes. Mas até onde sei, o estudo é um antídoto à ignorância e ilusão. Nesse caso, para não acusarmos Émilie de flagrante contradição, é preciso esclarecer o que ela entende por ilusão, pois, em geral, entende-se que a ilusão, se não se identifica com o erro, ao menos flerta com ele. Os filósofos vivem dizendo: ah... isso não passa de ilusão, associando-a ao erro. E Du Châtelet considera que “o erro jamais pode ser um bem, e certamente é um grande mal nas coisas de que depende a conduta da vida”(p. 11).

Émilie questiona se a ilusão é um erro e responde com um NÃO em alto e bom tom. Para ela, “a ilusão não nos faz ver os objetos inteiramente tal como devem ser para dar-nos sentimentos agradáveis”. O que a ilusão faz é acomodar os objetos à nossa natureza, tal como a ilusão de ótica que, embora não permita que vejamos os objetos tais como são, na verdade, não nos engana. A ótica nos faz ver os objetos “da maneira que é preciso que os vejamos para eles nos serem úteis” (pp. 15-16). Ops, como assim? Úteis? Acho que preciso de exemplos para entender isso.

Ela pergunta: “Por que razão eu rio mais do que ninguém no teatro de marionetes, senão porque me entrego mais do que qualquer outro à ilusão e, ao final de quinze minutos, acredito que é Polichinelo quem está falando? [...] que prazer teríamos com um outro espetáculo em que tudo é ilusão, caso não nos entregássemos a ele” (p.16)?

Bom, é verdade que se formos assistir a um espetáculo que se pretende ilusório (pois há aqueles que prezam o realismo), vestidos com uma armadura anti-ilusão, dizendo o tempo todo: bah, isso é pura ilusão! ele não atingirá seu fim, não cumprirá a sua função, não nos será útil, tampouco a nossa ida até lá. Nesse caso, parece-me que o que Émilie quer dizer é que a ilusão cumpre uma função na vida feliz. Qual seria essa função? Enganar-nos? Ora, mas o engano não é um erro? Não necessariamente. (Sinto que estou me enrolando rsrsr). Seria a de manter-nos acreditando que aquilo em que cremos é, sem dúvida, verdade mesmo? Ou, quem sabe, a de revestir, adornar ou adoçar a realidade amarga, nua e crua? Ich, percebam que dei voltas e acabei esbarrando no mesmo ponto.

Última tentativa de acomodar essa idéia. Recorro aqui à outra parte do Discours na qual Émilie fala de amor e ilusão.

“uma alma terna e sensível é feliz pelo simples prazer que experimenta amando; não quero dizer com isso que se possa ser perfeitamente feliz amando, conquanto não seja amado; mas digo que, embora nossas idéias de felicidade não se encontrem completamente ocupadas pelo amor do objeto que amamos, o prazer que sentimos em entregar-nos a toda a nossa ternura pode bastar para nos tornar felizes; e, caso essa alma tenha ainda a ventura de ser suscetível à ilusão, é impossível que não se acredite mais amada do que talvez o seja efetivamente; ela deve amar tanto, que ama por dois, e o calor de seu coração complementa o que realmente falta à sua felicidade” (p. 30).

Eis aí algo que não me desce bem novamente. De qualquer modo, vamos lá. Num certo momento do texto, Châtelet revela que foi feliz durante dez anos com o amor daquele que subjugara sua alma, mas que “quando a idade, as enfermidades e talvez também um pouco a facilidade do prazer reduziram-lhe o sabor” (p. 32), por um bom tempo não se apercebeu; amava por dois, e seu coração, isento de suspeita, usufruía o prazer de amar e a ilusão de se acreditar amada. Mas depois, perdeu essa condição “bem-aventurada”, claro, à custa de muitas lágrimas.

Percebo por que a idéia não me cai bem. Para que a ilusão possa valer como ingrediente de felicidade, é preciso que nunca a percamos, pois, uma vez perdida, adeus felicidade: quanto maior a felicidade ou o prazer que a ilusão nos proporciona, maior a dor e infelicidade ocasionada pela desilusão, pela perda daquilo que acreditávamos ser verdadeiro. Seria preciso, para conservar a felicidade, conservar a ilusão. Será que Émilie concordaria com isso? Talvez, ao menos é o que se depreende da seguinte passagem.

“Não sei, contudo, se alguma vez o amor já uniu duas pessoas feitas a tal ponto uma para a outra que jamais conheceram a saciedade do gozo, o arrefecimento motivado pela segurança, a índole e a insipidez geradas pela facilidade e pela continuidade de uma relação cuja ilusão jamais é destruída (pois onde ela entra mais do que no amor?) e cujo ardor, enfim, foi igual no deleite e na privação e pôde tolerar igualmente as desventuras e os prazeres” (grifo meu, p. 29).


terça-feira, junho 20, 2006

O Príncipe de Maquiavel


Caros ex-alunos

Soube que teve gente desesperada por não saber nada de Maquiavel. Para tentar aliviar esse desespero, administro aqui uma gotinha do que significa virtude para o príncipe, segundo Maquiavel. O príncipe virtuoso, para Maquiavel, é aquele que tem êxito em chegar e manter-se no poder. Sua virtude está em mediar as situações que a necessidade impõe e a fortuna oferece. “Assim, é preciso que, para se conservar, um príncipe aprenda a ser mau, e que se sirva ou não disso de acordo com a necessidade” (Maquiavel. O Príncipe | cap XV). “... quando um príncipe se apóia apenas na fortuna, arruína-se de acordo com as variações daquela". " Julgo feliz, também o que harmoniza sua maneira de agir com as características de cada época, e infeliz aquele cujo modo de proceder discorda dos tempos” (cap. XXV). Pode-se dizer, pois, que para o príncipe de Maquiavel, a virtude não pode ser confundida com a moral (uma relação comumente feita), embora ele possa até possuir princípios morais. Porém, no exercício de sua função, tais princípios devem (de acordo com a necessidade) ser abstraídos, devendo o príncipe agir com o máximo de esperteza e atenção à sorte.