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sábado, junho 15, 2024

Devagar

afaga devagar as minhas 

pernas

entreabre devagar os

meus joelhos

morde devagar o que é

negado

bebe devagar o meu

desejo.

....................................

(Maria Teresa Horta | poeta e jornalista portuguesa)


 [Egon Schiele |Liegende | 1918 | Giz preto sobre papel]


sábado, maio 25, 2024

...


Não entres como turista no coração de uma mulher
a bater fotos
a deixar latas de cerveja
buscando só imensas catedrais
e estátuas transparentes

com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições ligeiras

há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração duma mulher

não bebas aí só um copo de mar

não entres no avião
toma o comboio da meia-lua
não reveles ali tuas fotos na hora

se não fizer muito frio
entra nu

não leves chapéu-de-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração duma mulher
não costumam voltar a crescer.

..................
[ José María Zonta | Revista NERVO/1 |Colectivo de Poesia | Tradução de Élia Calvo | Janeiro-Abril | 2018 ]



terça-feira, maio 14, 2024

Palavras e beijos


Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

[Alexandre O'Neill | Poesias Completas | Assírio & Alvim]



terça-feira, abril 30, 2024

Andanças


podem arrancar o meu chão
mas ainda tenho as retinas
retidas no céu [...]

...........
[Evilásio Júnior | poeta maranhense]

René Magritte | Evening Gown


domingo, abril 14, 2024

Ah!


Ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
Ah se pelo menos o coração não tivesse memória!
Como seria menos linda e mais suave
minha história!

(CACASO | In: "Beijo na Boca & Outros Poemas" | 1985)

Arte 
Guiseppe de Nittis [1846-1884]  
Nudo con le Calze Rosse [1879]

domingo, março 31, 2024

Welcome


Diz-me se incomodo,
disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.


Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem-vindo.


.................................................

Eava Kilpi | Laulu rakkaudesta, 1972 | O mundo adormecido espera impaciente | Antologia de poesia finlandesa | Tradução de Amadeu Baptista | Rio de Janeiro | Contracapa, 2021.




sábado, fevereiro 10, 2024

O teu silêncio


O teu silêncio tem grandes pedras,
tem grandes navios.
O teu silêncio de pedra,
o teu escuro silêncio.
Silêncio do tempo,
pesado tempo,
voz dos que já morreram.
Silêncio onde se ausenta minha voz.
Eco do meio da mata,
Eco do fundo de um poço.
Palavra de Deus teu silêncio,
luz na neblina,
Teu grande silêncio de mulher.


(José de Arimatéia Silva)



terça-feira, janeiro 30, 2024

Dois corpos

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas ondas
e a noite um oceano

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas pedras
e a noite um deserto

Dois corpos frente a frente
são às vezes raízes
na noite enlaçadas

Dois corpos frente a frente
são às vezes navalhas
e a noite um relâmpago

Dois corpos frente a frente
são dois astros que caem
num céu vazio.

................................

[PAZ, Octavio | Grandes vozes líricas hispano-americanas | Seleção e Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1990].

artwork by
Miriam Dema

domingo, dezembro 31, 2023

to disappear


vou logo ali
tomar um chá
de sumiço

sair de cena
sumir do mapa
dar um tempo

sem rima
sem poesia
sem métrica

sem nada
.
.
.

[marília côrtes]

Lissy Elle's Photography

domingo, maio 14, 2023

Poema antigo


Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair

..................................................

[Caio Fernando Abreu | Revista Bravo | Fev 2006]




domingo, abril 23, 2023

Vazio



A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

.
.
.

[In: SCHMIDT, Augusto Frederico | Poesias completas | 1928/1955 | Rio de Janeiro | J. Olympio | 1956]

domingo, março 26, 2023

no need


não precisamos
tagarelar sobre
o óbvio.
exaurir sentidos.
exclamar pequenos
momentos.
gastar sentimentos.
podemos ser elegantes.
apenas instantes.
nem precisamos falar
desses dissabores.
desses segredos.
dos nossos amores.
só o silêncio e o vento
falam alguma coisa
noite adentro.

..............................................

[Iara Rossini Lessa (1965 - 2021)]

amiga que partiu,
assim,
de repente,
sem se despedir.

talvez por saber que,
na verdade, 
sua vida se esvaía,
mas ela permaneceria.

Robert Van Vorst Sewell, Nymph [1887]


sexta-feira, fevereiro 10, 2023

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

[Torquato Neto | Cogito | In: Melhores poemas]

sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

domingo, dezembro 04, 2022

In love

O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.


(Nelson Alexandre)


By Lucien Waléry [Nude - detail 1920]

sábado, outubro 29, 2022

Grito rubro que pulsa sob minha pele


Mesmo com a garganta
Perfurada pela lâmina do silêncio
O sangue pulsa vermelho

Mesmo que o carrasco
Arranque a língua insubmissa
O sangue grita vermelho

Mesmo sob a face do torturador
O corpo feito em pedaços
O sangue resiste vermelho

Mesmo com os olhos
Vagando na noite sem fim
O sangue brilha vermelho

Mesmo com rumores de ataques
Coturnos, bombas e tanques
O sangue da luta é vermelho

Mesmo com a corda no pescoço
Uma multidão pedindo nossas cabeças
O sangue permanece de pé, vermelho

Mesmo que os lábios toquem a lona
E sintam o gosto áspero da queda
O sangue levantará do chão, vermelho.


(Evilásio Júnior)


The Tomb of the Wrestlers, 1960 by Rene Magritte


sábado, setembro 10, 2022

Tríptico II

I

[...]



II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

III

[...]


[Herberto Hélder, Tríptico II | in: A Colher na Boca | 1961]



sexta-feira, agosto 26, 2022

Hope


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

.......................................
Eugénio de Andrade




quinta-feira, agosto 18, 2022

Chuvosa




chore
chuva
chore seu pranto cinzento
estenda seu manto frio e úmido
sobre a cidade 

chore
chuva
lave bem suas ruas 
seus corpos
corações e calçadas

chore
chuva
derrame suas mágoas geladas
caia torrencialmente
e leve toda miséria 
dessa pobre humanidade.



...........................
marilia côrtes
agosto/2022

segunda-feira, março 21, 2022

O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
.


..........................................
[ А́нна Ахма́това | 1889-1966 | in: “Anna Akhmátova: antologia poética” | seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho | Porto Alegre | L&PM Pocket | 2009 ]

Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne

http://www.nicoletta.info/