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sexta-feira, maio 14, 2021

O peso do mundo

 CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –

sai para fora do coração
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

– deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

...............

Allen Ginsberg
In: “Uivo e outros poemas” (1956).

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Imagem: Brook Shaden Photography

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Não está nada fácil comemorar mais um ano de vida em meio à trágica notícia, ontem, de 430.596 vidas perdidas em praticamente apenas um ano, e só nesse nosso país lascado chamado Brasil. Vivemos, atualmente, numa espécie de show de horrores. É meu segundo aniversário em plena pandemia. E esse é meu jeito weird de, sem palavras, bendizê-lo 🖤.

sábado, abril 13, 2019

Tremor de estrelas


Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma de névoa.

A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da ideia.

Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.

Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.

A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.

A neve cai das rosas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.

Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?

[...]

Se o azul é um sonho,
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas ?

Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?

Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Coração dos meninos!
Almas rudes das pedras!

Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.


[Federico García Lorca | Canción Otoñal ]



[collageArt by Sara Shakeel]


quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Canção de já-não-mais




Se digo “estou”, mesmo em hora morta,
o silêncio contesta: “esteve”. Se ouso “sou”,
o mesmo hiato repara: “eras, foste, estiveste,
viste, feriste, vagaste.” E eu mesmo, 
já em doce genuflexão, concedo: 

“Daqui, pouco falta que me sustém sem partir,
espaçar, romper o que une flanco e flanco 
rumo ao sem susto, sem lastro, sem solidez.”

O silêncio aquiesce sem um gesto.

E se vieste, cabe “logo vais”;
e se estamos cabe “já não mais”.
Pois basta um zás – não mais estar:
o possível escasso que vos alinhaste sobre o chão 
agora vos é fosso, ataúde, desvão. 

Repara que nada vos sustenta, 
alinha, indica, oferece linha-guia 
ou pouso onde, abrigado do incerto,
possas reclamar-te existente fora do
limite esguio que vos cabe.

O vento que se nega transpassar-te.
A noite que te oculta o dele ventre,
olhos, pélvis, voz: tudo o que dele,
ausente, se demora e te suspende.

A dor que é tua mais perene mandatária.
A morte que te aguarda indiferente.
A noite se retrai e se afasta desdenhosa,
alada, para espaços mais egrégios.

Resta a ti, como leito perpétuo, a escuridão.
Escuridão e silêncio.




[ poema & pintura | ygor raduy ]

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* o último verso faz referência direta ao verso final do poema "The moon and the yew tree", de Sylvia Plath: "And the message of the yew tree is darkness. / Darkness and silence." In: "Ariel and other poems".

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hoje o facebook resgatou a lembrança desse meu amigo tão denso, querido e talentoso. Pena que de vez em quando ele mergulha nessa escuridão e silêncio. E dá uma sumida. Mas de vez em quando também ele volta, e ilumina tudo. Digo que lamento apenas retoricamente (ainda que sinta saudades dele), porque no fundo sei que ele se nutre dessa escuridão e silêncio para, em algum momento, ascender à luz.