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domingo, novembro 12, 2023

Sarau Marginal



People, no dia 29/11/2023 vai rolar o II Sarau Marginal da UENP, a partir das 21:00 h, na Petiscaria Universitária, ao lado do CCHE e da Ágora. 
Quem foi no primeiro sabe que a vibe foi eletrizante. Então, bora lá beber poesia e arte.

O II Sarau Marginal faz parte da programação da XVI Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Filosofia e Literatura: uma transa? & XIII Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP. Acesse https://jornadadedebates2023.blogspot.com/   e saiba mais sobre as conferências, minicursos, intervenções culturais, inscrições e tudo mais...

terça-feira, agosto 15, 2023

Poesia e Filosofia


"Toda verdade pronunciada, conforme martelou Nietzsche, deixa atrás de si 'uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em suma, uma soma de relações humanas poética e retoricamente realçadas, transpostas, ornadas…'" 

(NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2010).



The passion of creation | Leonid Pasternak | 1892


domingo, fevereiro 26, 2023

conversa de whats

outro dia um amigo poeta, daqueles que a gente mal conhece (porque encontra pouco), mas sente uma atração antiga, escondida nos silêncios e trocas de olhares, me mandou um whats, assim, do nada (como só deus poderia fazê-lo):

olá...
como você está?
como tem passado?

(e eu, pega de surpresa, respondi):

enlouquecida,
frisante,
cheia de vida,
cheia de morte,
enrolada em muitas vírgulas,
e trabalhando pra caramba.
(pergunta complexa essa... rs).
e tu?

vinda de você, não poderia supor outra resposta que não fosse essa: 
profunda
cheia de graça
e de poesia.

eu me sinto como você: 
esse elemento da vida, 
que é bela 
e repleta de desconfortos...


moi-même, toute décoiffée

sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

segunda-feira, março 21, 2022

O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
.


..........................................
[ А́нна Ахма́това | 1889-1966 | in: “Anna Akhmátova: antologia poética” | seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho | Porto Alegre | L&PM Pocket | 2009 ]

Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne

http://www.nicoletta.info/

domingo, janeiro 09, 2022

Domingo poético

Montanhas são frias quando a noite cai

Numa noite sem nome
a severa senhora de olhos escuros
toca-nos a face
com seus dedos de pelica
e vai arrancando, uma a uma,
todas as máscaras
que vestimos

e nessa hora sem hora
até o mais valente dos valentes
sente um tremor,
ainda que leve,
na mão que empunha o revólver

................................................

[ Ademir Assunção | (Pinduca para os amigos e amigas) | RISCA FACA | Poesia | São Paulo | Selo Demônio Negro | 2021 | p. 31 ].




Trato

fiz um trato com o vento,
vamos dar um tempo, um
do outro, escapar deste
cenário viciado, e vagar
sem rumo pelas montanhas,
pradarias e pastagens,
sem deixar rastros nem
postagens, antes que eu
esteja morto, condenado
que sou, desde o nascimento

você não, você sempre estará
por aqui, mudando de cara,
em movimento, ora rugindo
feroz, destelhando casas,
arrastando vacas, ora brisa
suave, acariciando os cabelos
da menina, que caminha pela
praia, quase pronta pra parir,
outra vida, neste redumunho
do mundo em desalinho

fiz um trato com o vento,
você vai por lá, eu por ali,
por deus, por buda, por allah,
pelo nome que tanto faz,
quem sabe a gente volte
a se encontrar, naquela
esquina inesperada, onde
os fantasmas procuram a
paz, e os corvos crocitam
como loucos, antes que eu

esteja morto e você bem
posto, no alto, com sua
farda puída, guardando
as muralhas precárias dessa vida

fiz um trato com o vento
e tudo o que vi foi um aceno,
em silêncio, breve tremular
nas folhas finas do feno


[pp. 15-16]

domingo, dezembro 12, 2021

Yourself


Amor depois de amor

Virá o tempo
em que você, exaltado,
vai saudar a si mesmo chegando
à sua própria porta, em seu próprio espelho,
e vão trocar sorrisos de boas-vindas,

você vai dizer, sente-se. Coma.
Vai amar o estranho que um dia você foi.
Dê vinho. Dê pão. Devolva seu coração
pra ele mesmo, o estranho que o amou

por toda a sua vida, e a quem você ignorou
por outro alguém, que o conhece de cor.
Pegue da estante as cartas de amor,

as fotografias, as anotações desesperadas,
descasque seu reflexo do espelho.
Sente-se. Sirva-se da vida.

..................................

Derek Walcott (poeta e dramaturgo). 
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes.




Love after love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.

sábado, outubro 30, 2021

Frutífera

'Da solidão do fruto'

De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.

Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.


'Da partilha do fruto'

De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.

...................................

[Conceição Evaristo | in: Poemas da recordação e outros movimentos | Belo Horizonte | Nandyala | 2008]


strawberry
close-up the fruit
[desconheço o/a autor/a]

sábado, junho 05, 2021

Se ...


fosse eu poeta
poetisa escritora
ou algo assim
ai de mim!

sacava aqui
agora e enfim
uma poesia
a toda prosa.

.................

[marília côrtes / 2021]


Asiza Fine Art

terça-feira, abril 20, 2021

Canto





No túmulo,
quando eu morrer
esparrame pétalas
de rosas amarelas
perfumadas de teu suor.

Despregue uma lágrima cinza
de teus olhos oblíquos
e deixe-a quente na lápide
feito pedra judaica,
sem verbos.

Recite silêncio
verso de ninguém
a espremer o caldo
de rimas
jogadas a esmo.

Em ensaio de vida,
descubra o piscar
de estrela entre nuvens, e
no baile cósmico,
colha palavras molhadas.

Sinta meu cheiro
entre páginas
apagadas e
tente resto de sorriso,
quase nada.

..............

(Nilson Monteiro | abril | 2021)

.............................
Nosso amigo jornalista, poeta e escritor da geração pé-vermelho, membro da Academia Paranaense de Letras, com esse canto-poema tingiu de beleza a minha manhã. Estava lá no facebook. Encantei-me. Pedi permissão para ecoá-lo. Perguntei se estava publicado em algum de seus livros. Ele disse:  não, acabo de publicá-lo. 

sexta-feira, abril 09, 2021

La musique

LXIX


A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!

...............................................

BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293. 

...........................................

Franz Sedlacek | Abendlied | 1938 | #surrealism




quarta-feira, março 10, 2021

Pandora


Pânico, pandemia, pandemônio: 
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.

Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.

Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.

É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.

***
Rodrigo Garcia Lopes
O Enigma das Ondas [Iluminuras | 2020]

***
[Imagem | Pandora | 1885 | Walter Crane | 1845-1915]



quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Namorados do Mirante


Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...


[ Vinicius de Moraes | 1913-1980 | Nova antologia poética | Cia de Bolso]


by Shira Barzilay

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

sexta-feira, janeiro 01, 2021

Ano Novo


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

.......................................................................................

Ferreira Gullar | 1930-2016 | Toda Poesia | Rio de Janeiro | José Olímpio | 1997



terça-feira, novembro 03, 2020

Debaixo das Unhas

 


PUTAS

Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros. 
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas, 
braços marcados por unhas e barbas, 
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos entre berros, 
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo dentes.

Caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as ruas as observam 
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros de distância 
e maquiagens de alta definição – uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.

As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem 
ensanguentadas 
em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!

____________________

Samantha Abreu
poema do livro Debaixo das Unhas (Olaria Cartonera, 2020)

____________________

Conheci a Samantha Abreu há mais ou menos um ano. Já conhecia seu nome como escritora londrinense e havia lido um ou outro de seus poemas. Frequentávamos os mesmos espaços, mas nunca havíamos nos esbarrado pessoalmente. Por ocasião da organização de um evento de filosofia na UENP, minha amiga Bah (Bárbara Marques) indicou a Samantha pra falar sobre a escrita de mulheres - tema de seus estudos. Era a primeira vez que em 20 anos de filosofia eu me dirigia, ao menos na academia, ao tema das Mulheres na Filosofia, dado o cânone filosófico ser, até hoje, predominantemente masculino, sobretudo branco, europeu etcétera e tal. 

Se considerarmos os 2.500 anos de história da filosofia, as mulheres começaram a figurar com uma certa sobressalência  no cenário filosófico (científico, político e literário também) há pouquíssimo tempo, ainda que a história estivesse repleta de mulheres escritoras, tradutoras, filósofas, cientistas, artistas, bruxas e o escambau. Há quem não queira que elas figurem em todos os espaços e áreas, principalmente, com absoluta independência. Não é o caso da Samantha Abreu. Nem o meu. 

Fiz, então, o contato com ela. Expus a proposta do evento. E ela, embora trabalhasse o tema de uma perspectiva mais literária, topou dar um minicurso sobre as mulheres na filosofia. Estudou, pesquisou, refletiu, organizou, ligou os pontos entre a escrita filosófica e a escrita literária (uma das misturas mais finas que existe), foi lá e, simplesmente, arrasou. 

Samantha Abreu é daquelas powerful girls que despertam paixões à primeira vista e a todas as outras vistas. Sua escrita também. Não sou crítica de arte e não entendo nada de poesia. Minha apreciação estética, literária e poética é totalmente passional e primária. Passa na ponta dos pés pelo entendimento. Não me cabe, portanto, teorizar sobre seus  belos, sensíveis e fodásticos poemas. Quero apenas dizer que recebi há mais ou menos um mês o livro Debaixo das Unhas e, claro, simplesmente amei 💘.

sábado, julho 18, 2020

A morte do amor


"Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus."

................................................

Ana Brilha | A Morte do Amor | in A Apologia do Silêncio | Edição de Autor | Cascais | Portugal | 2012


photo by Virginia Rota

domingo, maio 17, 2020

Baudelaire-ando



XCIII

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!




photo by Brett Walker

XCIII

A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


........................................................................................

BAUDELAIRE, Charles | As flores do mal | Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira | Edição biligue | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1985.

domingo, maio 03, 2020

Fear


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos.

Sim
a ratos.

( Alexandre O'Neill | Poema Pouco Original do Medo | In: Abandono Viciado | 1924-1986) 


quinta-feira, abril 02, 2020

O amor




La tumba del poeta | Pedro Sáenz | 1863-1927 | Museo de Málaga



Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.



Vladimir Maiakovski (1893-1930)