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sábado, julho 20, 2024

Eu uso óculos

Acabei de viver uma situação dramática, quando estava sossegada, atirada em meu sofá, assistindo a “Os cinco diabos”, filme de Léa Mysius. Ouvi um barulho na lâmpada de minha luminária e algum bicho rapidamente passou pela minha cabeça. Saltei igual a um canguru (vocês nem imaginam como sou rápida nesse gatilho). Imediatamente acendi a luz do teto. Já imaginei o pior bicho, o mais horripilante. Quero nem dizer o nome...

Corri e peguei o veneno (morro de pena, mas não dou conta de conviver com uma). Eu mato! mas mato com dó. Mato sofrendo.  Não suporto vê-la agonizando, sufocada pelo veneno. Agonizo junto. Mas não tem negociação possível. Ou eu ou ela, e, claro, sou mais eu. Sorry.

Espalhei o veneno na região do barulho: embaixo, atrás e nas laterais do sofá. Praticamente envenenei a sala e a mim mesma. Fiquei um pouco longe, de pé, esperando pra ver que bicho era aquele.  De repente, vejo uma formiga, daquelas que têm asas, em completa agonia. Era essa a bichinha. No caso, nem precisaria matá-la, já que era apenas uma formiga voadora. Pensei se deveria dar a ela o golpe de misericórdia, dada a agonia da coitada. Passou pela minha cabeça jogar mais veneno. Morri de pena! Achei cruel demais. É uma morte muito lenta. Fui, então, buscar um chinelo. O método tradicional seria menos agonizante e mais fatal.

Quando voltei, tomada de comiseração, resolvi tentar salvá-la. Tava desesperada a coitadinha. Peguei um papelzinho pra ela subir. Ia jogá-la na sacada, proporcionar-lhe ar puro, mas a coitada subiu muito rápido e caiu. O papel era pequeno demais. De repente, saiu voando toda tonta e desorientada. Abri a sacada e agora não sei por onde ela anda. Não sei se conseguiu fugir. Espero que sim. Silêncio total. Não ouço nenhum bater de asas, nenhum bicho dando rasante sobre minha cabeça.

Eu poderia terminar aqui. Ficou claro que me precipitei. Porém, justifico:

Meses antes, depois de ter ouvido um barulho semelhante ao do caso acima, e ter pensado que deveria ser uma mariposa, um grilo ou uma mosquinha qualquer, um daqueles seres que me recuso a pronunciar o nome simplesmente pulou em minhas costas nuas, enquanto eu estava sossegada, esparramada em meu sofá, assistindo a um filme que não me lembro qual. Voei dali na velocidade de um raio.

Fiz o mesmo movimento. Corri pegar o veneno. Fui e voltei em segundos, temendo perdê-la de vista. Perdi! Achei que se escondeu debaixo do sofá. Lasquei veneno e fiz a mesma coisa. Observei de longe. Não a vi mais. Dei um tempo dali e depois voltei, certa de que seria impossível que ela tivesse sobrevivido. E de fato não ouvi mais nenhum barulho. O silêncio voltou a reinar. Consegui relaxar.

Quando fui dormir, vi a desgraçada ali no ralo do box do banheiro completamente imóvel, mortinha da silva. Como ela chegou ali não entendi, dado o meu olhar atento, neurótico e paranoico, dada a distância entre a sala e aquele banheiro.

E agora? Deixei pra pensar no dia seguinte. Precisava criar coragem para tirá-la de lá. Fechei o box, fechei a porta do banheiro e não entrei mais ali. No dia seguinte, fui lá com uma pazinha e uma vassoura para retirá-la. Quando cheguei perto, não era a tal asquerosa. Era um pedacinho de sabonete Phebo tradicional (daquele preto), bem no finzinho, que tinha caído da saboneteira do box. 

Concluam vocês mesmos.



quarta-feira, janeiro 17, 2024

Carro-fantasma

Quando estive em San Francisco, em Janeiro do ano passado, vi carros que andam sozinhos pelas ruas, sem motorista e sem passageiros. É curioso e assustador ao mesmo tempo. 

Numa das noites em que estive por lá, minha filha parou rapidamente em fila dupla para que eu descesse em frente ao seu apartamento, no coração da cidade, numa rua bem íngreme, feito várias que têm por lá (é um sobe e desce que não tem tamanho). 

Dali minha filha ia procurar um lugar para estacionar — artigo raro; de luxo mesmo, a ponto de me fazer pensar que o metro quadrado daquela cidadezinha de terras e mares recortados deve custar uma fortuna. Há muitos predinhos de três ou quatro andares que, dadas as especificidades da cidade, têm apenas uma garagem. Muita gente tem que estacionar nas ruas.

Logo atrás de nós vinha um desses carros sem motorista e passageiro. Já havia visto, durante o dia, un passant, um ou outro mapeando a cidade, tal como minha filha me explicou. Mas esse, daquela noite, parou bem atrás de nós. Tipo freou de repente para não bater atrás, e o carro ficou enviesado. Desci e, quando o vi, tão de perto, parado com as luzes piscando, fiquei perplexa. Era tarde da noite. Umas 11 pm. Estava bem escuro. E sempre tive medo de ficar sozinha numa rua escura.

Paulinha já havia se mandado rapidinho para procurar uma vaga, plugada no 220, comme d’habitude.  Corri até a porta do prédio e, ali, do lado de fora, me embananei com as chaves. Estava nervosa, com o coração na boca. 

Aquele carro vazio ficou ali emperrado, piscando suas luzes como quem não está entendendo nada. Não saía do lugar. Parecia mesmo ter parado no susto, como se o script tivesse mudado. Não havia ninguém dentro dele. Nenhum motorista, nenhum passageiro. 

Gentemm, parecia um carro-fantasma a me observar pelas costas. 

A porta do prédio era de vidro liso e transparente. Depois de me acertar com as chaves, entrei e me tranquei. Ali fiquei a observar os próximos acontecimentos, ansiosa para que minha filha (toda destemida) chegasse logo. Ela conhece os passos da cidade. Anda tranquilamente por lá. Eu? me senti completamente estrangeira. E era mesmo. A começar pela enrolação na língua 😛 na hora de travar uma conversa, solicitar uma informação, pagar uma conta, enfim, quando precisava me comunicar com desenvoltura. 

Voltando ao relato do episódio sinistro, de repente, um carro “normal”, com motorista, parou atrás, uma vez que, parado ali de soslaio, o carro-fantasma estava a obstruir a passagem. O cara de trás deu umas duas ou três buzinadas. O carro-fantasma entendeu a mensagem, deu uma rezinha, endireitou-se na rua e desceu calmamente como se nada tivesse acontecido.

Paulinha chegou. Subimos para o apto. Vida que segue.



Print de tela de um vídeo que fiz ao encontrar com um desses carros descendo, num dia lindo, a mais famosa rua de San Francisco: a Lombard Street, com 40 graus de inclinação em zigue-zague.






quinta-feira, fevereiro 10, 2022

A sós sob o sol

Ontem encontrei em meio à praia quase deserta alguns abutres que voavam numa aerodinâmica belíssima em busca de alimento. Abutres são necrófagos, se alimentam de carniça. Por isso, são muito malvistos. Mas ontem fiquei a observar a beleza do voo dos abutres. Havia alguns poucos peixes mortos na areia. Desses que as ondas trazem naturalmente. Céu azul, sol radiante, água morna, vento fresco. Tudo muito calmo, sincronizado e tranquilo. 

Os abutres voavam lá no alto, organizados num grande círculo. Pareciam inspecionar a área. Faziam uma espécie de ronda. A praia, cuja extensão de 10 km é também muito larga, estava simplesmente paradisíaca. Eles começaram a descer de mansinho, voando num movimento espiral, lento, observando o entorno. E foram se aproximando da areia, pousando de leve, fechando as asas, ao lado dos peixes mortos. 

Nunca havia visto tantos abutres juntos. E de tão perto. Como são grandes e pretos! De asas abertas ficam enormes. Eram cinco. Senti um pouco de medo de que viessem pra cima de mim. Mas eles estavam calmos. Não se sentiram ameaçados pela minha presença, pelo meu olhar. Perdi o fôlego. Meu coração descompassou. Quase saltou do peito. Estupefata, respirei fundo, controlei o medo, e deixei que a natureza seguisse seu curso habitual e uniforme, sem interferir na cena daquele belíssimo fenômeno natural da cadeia alimentar. Fiquei na posição de observadora passiva, paralisada. 

Não pude deixar de me perguntar: o que seria da carniça sem os abutres ou quaisquer outros animais necrófagos para comê-la? Toda matéria composta está sujeita à corrupção, à decomposição e à morte. Inclusive esse meu olhar fotográfico, que armazena a cena, e guarda um poema, em minha estética e melancólica memória.

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[marília côrtes | ilha do mel | janeiro de 2020].



sábado, janeiro 29, 2022

Triiimmm

Toca o interfone:

Marília? Chegou uma encomenda pra você... 

Desci achando se tratar daquele tênis que ganhei de presente das minhas filhas. Pelo tamanho da caixinha não poderia ser. O peso? leve, muito leve. Olhei o remetente: era do meu amigo Miguel. O sorriso mordeu minhas orelhas. 

Ah... que surpresa! O que seria? Não esperava. Não era meu níver, nem natal, nem nenhuma data comemorativa. Eita! Deve ser uma das peripécias delicadas e criativas do Miguelito. Um mimo para quem tinha acabado de mudar de apartamento. 

Subi apressada, louca de curiosidade, com a caixinha nas mãos. Abri o pacote e encontrei algo envolto em plástico bolha. Inferi que era um objeto sensível, provavelmente de vidro, quebrável. Desembrulhei com cuidado e, eis senão quando, encontrei um copinho pink estampado com a Penélope Charmosa a viajar loucamente pelo mundo afora, numa de suas corridas malucas. 

Quando liguei pra agradecer o presente, Miguelito me contou que ao vê-lo na lojinha pensou: é a cara da Marília. Confesso que também achei rs.

De imediato me lembrei que minha mãe havia dado o nome de Penélope Charmosa à nossa Caravan 76. Miguelito não sabia disso. Era uma Caravan cor de café com leite, 3 marchas, banco inteiro na frente, bem espaçoso, bom pra namorar. 

Meu pai comprou a Penélope zero km, em 1976, e ela ficou em nossa família por 26 anos. Destes, por 6 mais ou menos ela foi só minha. Ganhei de presente no início de 1997. Era bem conhecida. Ao que tudo indicava, na época, só circulavam três daquela cor na cidade. E a nossa nunca passava despercebida. No final de 2002 troquei-a por um Passat prata, mais novo, mas bem usadinho.

Além de Penélope Charmosa, eu a chamava também de Sedenta, já que era difícil satisfazer a sede dela por gasolina (que já custava os olhos da cara). A Sedenta rodava de 5 a 6 km por litro. Era mesmo insaciável. De vez em quando a marcha encavalava e, daí, eu tinha que parar onde estivesse, descer, atrapalhar o trânsito, abrir aquele capô imenso e pesado, e desencavalá-la. Mas essa já é outra história.

Quanto ao copinho, é meu xodó. Um charme!


terça-feira, março 17, 2020

Stop the world


Quem diria que um microscópico vírus, uma coisinha mutante, supostamente cega, que se prolifera numa progressão geométrica, supostamente aleatória - e que as pessoas, em geral, mal sabem diferenciar de uma ameba (também não sei) - um "monstrinho" a pulular loucamente, numa velocidade voraz, sem inteligência nenhuma, sem sistema nervoso central, sem ciência e sensibilidade - quem diria, dizia eu, que uma bolinha esquisita viesse a impor uma nova ordem mundial? Uma nova ordem nas relações humanas, sociais, políticas, econômicas e culturais?

'Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...'

Seria a natureza cega a procurar, espontaneamente, uma nova ordem em meio ao caos mundial? A grande obra a se reorganizar, soberanamente, sem se importar com suas vítimas? Aquela que seleciona, sem enxergar um palmo adiante do nariz, quem fica, quem sobrevive, quem sucumbe e quem vai? Um corpúsculo diminuto, fluídico venenoso, descerebrado, e que, muitas vezes aumentado, mais parece um brinquedinho para divertir bichinhos de estimação?

Quem diria que essas bolinhas minúsculas e invisíveis viessem a ditar como nós, seres "humanos inteligentes", devemos nos comportar de agora em diante? Quem diria que esses parasitas intracelulares exigiriam que, de um "ninguém solta a mão de ninguém", passássemos a um "ninguém toca as mãos de ninguém?"

- Mantenham distância, manda o figurino. Lavem as mãos, sejam mais cuidadosos, solidários, reclusos, compassivos, empáticos e humanos. Protejam-se. No kisses, no hugs. Ensimesmem-se, aculturem-se, cuidem de seus filhos, seus pais, seus avós, seus irmãos e amigos, seus meramente conhecidos e, também, cuidem daqueles completamente desconhecidos.

Don't touch in... on... all or anymore?

To touch or not to touch?

Don't touch!
Stop the world!

'Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...'




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terça-feira, janeiro 15, 2019

Déjà vu


Tortura e Glória

"Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. Veio a ter um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de algum livrinho, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima com paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade.

[e agora começa a melhor parte]

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.

Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho.



Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me
mandou entrar.

Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Bom, mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer está precisando que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você não veio, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se formando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não entender. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha. Com certo horror nos espiava: a potência de perversidade de sua filha desconhecida, e a menina em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar agora mesmo As reinações de Narizinho. E para mim disse tudo o que eu jamais poderia aspirar ouvir: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais comendo pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."

Clarice Lispector
2 de setembro de 1967
in: A descoberta do mundo
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Há pouco, quando li essa crônica, me vi criança, mas também em diferentes idades e contextos análogos. Tive a vívida sensação de um dejà vu, ao chegar nesse desfecho incrível, cuja última frase nos remete a uma mulher (ainda que menina), in love, numa espécie de affair, com seu amante (o livro), concebido como o mais amado e amoroso objeto de desejo. Oui, déjà vu!