De repente, depois de um longo sumiço, meu amigo aparece e, comme d'habitude, saca sua arte do bolso da morte e atira de lá do fundo do abismo.
eu tenho vontade de morrer
só pra ver o céu sem mim
e o cais vazio de embarcações
só pra ver o ar, a areia do ar
as coisas todas em silêncio
as brumas paradas do depois
e o vento imóvel nas estepes
eu tenho vontade de morrer
só pra ver as coisas despidas
a água de um mar indecifrável
a sombra que fecunda o chão
e a linha do horizonte sem luz
eu tenho vontade de morrer
morrer como se diz das horas
das cinzas, das brumas
das rochas que tão caladas
repousam sem mágoa
e ternamente não falam
eu tenho vontade de morrer só
sem nada sem dor sem ninguém
só pra fruir não ser não estar
e sentir fundo o esquecimento
só pra ver o trabalho das nuvens
nuvens, que são delicadas
sem alarde sem mágoa
que se desfazem sem som
quero morrer como nuvem
tentar morrer sem saudade
reservado e docemente casto
desataviado de tudo
eu tenho que morrer urgente
antes que as pessoas notem
e me importunem com ais
e me cubram de flores
e maculem a hora precisa
com o arrastar dos móveis
com "como eu era bom"
e depois me encerrem
num lugar sem nuvens
eu tenho vontade de morrer
de uma angústia no peito
da mesma que eu conheço já
eu que sei tanto de angústia
daquela boa, que tranca os canais
daquela que me dá vontade
de morrer num quarto
sem tv a cabo, sem wi-fi
sem janelas, sem serviçais
morrer como um dardo
que ao perder impulso cai
e ali permanece olvidado
sem flecha, sem alvo, sem arco
e sobretudo sem arqueiro.
[ poema & pintura | ygor raduy ]