domingo, novembro 12, 2023
Sarau Marginal
sábado, janeiro 07, 2023
O seu santo nome
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
sábado, dezembro 24, 2022
Artigos de luxo
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"... nós nos salvaremos pelos afetos. O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria."
[Ernesto Sabato | A Resistência]
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[art by William-Adolphe Bouguereau | Pietà | 1876]
sábado, outubro 29, 2022
Grito rubro que pulsa sob minha pele
Mesmo com a garganta
Perfurada pela lâmina do silêncio
O sangue pulsa vermelho
Mesmo que o carrasco
Arranque a língua insubmissa
O sangue grita vermelho
Mesmo sob a face do torturador
O corpo feito em pedaços
O sangue resiste vermelho
Mesmo com os olhos
Vagando na noite sem fim
O sangue brilha vermelho
Mesmo com rumores de ataques
Coturnos, bombas e tanques
O sangue da luta é vermelho
Mesmo com a corda no pescoço
Uma multidão pedindo nossas cabeças
O sangue permanece de pé, vermelho
Mesmo que os lábios toquem a lona
E sintam o gosto áspero da queda
O sangue levantará do chão, vermelho.
segunda-feira, março 21, 2022
O último brinde
Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.
Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne
sábado, fevereiro 26, 2022
Louca, mas nem tanto...
Dia desses achei que estava ficando louca. Fui até a cozinha beber água, abri a geladeira e, sem perceber, peguei uma coca. Em seguida, fui buscar um copo. No meio do caminho, fumando um cigarrinho, vi um cinzeiro sobre a mesa. Em vez de pousar o cigarro no cinzeiro, ou simplesmente bater a cinza, abri a coca e quaase a despejei no cinzeiro. Percebi, então, o quanto estava ligada no automático. Bom, ao menos percebi. Pior se tivesse mesmo despejado a coca no cinzeiro e bebido. Ora bolas, ao que tudo indica, concluí, restava ainda um pouco de sanidade na minha cachola.
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imagem: collage surreal space art
quinta-feira, outubro 14, 2021
Moi-même
Eu não queria querer
sem ritmo, sem nada.
terça-feira, setembro 07, 2021
7 de setembro
aqui não!
sábado, junho 05, 2021
Se ...
domingo, maio 23, 2021
Tudo traz, tudo leva, tudo lava
Ela me perguntou o quanto eu a amava.
Reuni em vidro todos os humores vertidos:
sangue, sêmen, lágrimas.
Amo você tantos rios.
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Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021
sexta-feira, abril 09, 2021
La musique
LXIX
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;
O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;
Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões
No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!
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BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293.
segunda-feira, abril 06, 2020
A morte feliz
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(Albert Camus | In: A Morte Feliz | tradução de Valerie Rumjanek | Rio de Janeiro | Record | p.60).
quinta-feira, abril 02, 2020
O amor
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.
sábado, dezembro 14, 2019
Missivas
Meu querido,
Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, de saudade e de esperança, e meu coração e minhas entranhas, do doce fogo que abrasa sem queimar, e do amor e do desejo unidos em casamento feliz.
Por que assinarias umas cartas que só poderiam ter saído de tuas mãos? Quem me estudou, me formou, me inventou, como fizeste? Quem podia falar dos pontinhos vermelhos de minhas axilas, das rosadas nervuras das cavidades ocultas entre os dedos dos meus pés, desta “franzida boquinha rodeada por uma mini circunferência de alegres ruguinhas de carne viva, entre azulada e plúmbea, à qual se chega escalando as lisas e marmóreas colunas de tuas pernas”? Só tu, meu amor.
Desde as primeiras linhas da primeira carta, eu soube que eras tu. Por isso, antes de terminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante do espelho, imitando a Dânae de Klimt. E recomecei, como em tantas noites de que tenho saudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia que exploramos juntos, ao longo daqueles anos compartilhados que agora são, para mim, fonte de consolo e de vida na qual volto a beber com a memória, para suportar a rotina e o vazio que vieram substituir aquilo que, ao teu lado, foi aventura e plenitude. [...]
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[Llhosa, Mario Vargas | Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva |2009 | p. 186].
domingo, dezembro 01, 2019
Identificação
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
e percorri o espaço no sopro do vento;
marulhei na corrente inquietadora de rios,
penetrei a mudez milenária das montanhas;
desci ao vácuo silencioso dos abismos;
circulei na seiva das plantas,
ardi no olhar das feras,
palpitei nas asas das pombas;
fui sublime n'alma do homem bom
e desprezível no coração do mesquinho;
inebriei-me da alegria do venturoso
e deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.
Nada encontrei mais doloroso,
mais eloquente,
mais grandioso
do que a tragédia cotidiana
escrita em cada vida humana.
[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | p. 119]
domingo, abril 21, 2019
No meio de mim
A carnal, não a outra, a eucarística, também chamada canibalística, já que se trata de beber o sangue e comer a carne de alguém que morreu há 2000 anos - isso os canibais nunca conseguiram. Sim, a comunhão. Não a de bens, mas a carnal. Supondo que se saiba o que a palavra “carne” significa. Mas não é necessário saber. É apenas preciso tentar chegar sempre um pouco mais perto, mais, um pouco mais. Quando se vê, já estou em ti, já estás em mim. Terminantemente sagrado. “Que eu esteja convosco.” - “Tu estás no meio de mim.”
sábado, abril 13, 2019
Tremor de estrelas
Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma de névoa.
A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da ideia.
Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.
Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.
A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.
A neve cai das rosas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.
Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?
[...]
Se o azul é um sonho,
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas ?
Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?
Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Coração dos meninos!
Almas rudes das pedras!
Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.
quinta-feira, fevereiro 14, 2019
Canção de já-não-mais
Se digo “estou”, mesmo em hora morta,
o silêncio contesta: “esteve”. Se ouso “sou”,
o mesmo hiato repara: “eras, foste, estiveste,
viste, feriste, vagaste.” E eu mesmo,
já em doce genuflexão, concedo:
“Daqui, pouco falta que me sustém sem partir,
espaçar, romper o que une flanco e flanco
rumo ao sem susto, sem lastro, sem solidez.”
O silêncio aquiesce sem um gesto.
E se vieste, cabe “logo vais”;
e se estamos cabe “já não mais”.
Pois basta um zás – não mais estar:
o possível escasso que vos alinhaste sobre o chão
agora vos é fosso, ataúde, desvão.
Repara que nada vos sustenta,
alinha, indica, oferece linha-guia
ou pouso onde, abrigado do incerto,
possas reclamar-te existente fora do
limite esguio que vos cabe.
O vento que se nega transpassar-te.
A noite que te oculta o dele ventre,
olhos, pélvis, voz: tudo o que dele,
ausente, se demora e te suspende.
A dor que é tua mais perene mandatária.
A morte que te aguarda indiferente.
A noite se retrai e se afasta desdenhosa,
alada, para espaços mais egrégios.
Resta a ti, como leito perpétuo, a escuridão.
Escuridão e silêncio.
* o último verso faz referência direta ao verso final do poema "The moon and the yew tree", de Sylvia Plath: "And the message of the yew tree is darkness. / Darkness and silence." In: "Ariel and other poems".
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hoje o facebook resgatou a lembrança desse meu amigo tão denso, querido e talentoso. Pena que de vez em quando ele mergulha nessa escuridão e silêncio. E dá uma sumida. Mas de vez em quando também ele volta, e ilumina tudo. Digo que lamento apenas retoricamente (ainda que sinta saudades dele), porque no fundo sei que ele se nutre dessa escuridão e silêncio para, em algum momento, ascender à luz.
sexta-feira, novembro 30, 2018
Melancolia
Ultimamente – não sei por quê – perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama – não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores. Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um Deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?”
quinta-feira, novembro 15, 2018
La mort de l'amour
"O amor nunca morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira e dos erros e das traições. Morre de doença e das feridas; morre de exaustão, das devastações, da falta de brilho."