Se Hume está certo em afirmar que nossas crenças religiosas têm por base fatores psicológicos, tais como o medo e a esperança, e que tais fatores fazem parte da compleição do ser humano, eu, sendo uma dessas criaturas ditas humanas, devo também, de algum modo, ser suscetível a elas. Mas, notem, please, para Hume, os primeiros princípios religiosos não surgem de um instinto original ou de uma impressão primária da natureza. Eles devem ser secundários... e quem quiser entender isso terá de recorrer à História Natural da Religião, obra na qual Hume trata do assunto. Se eu me detiver aqui não chegarei aonde quero.
Ora, ora...
Isso não significa que eu possa afirmar (ou mesmo acredite) que Deus existe na realidade, mas que, de algum modo, e a despeito de sua alegada existência, ao menos tenho a ideia dele, ou, digamos assim, eu penso nele. Acho que nunca pensei tanto em Deus como quando comecei a estudar filosofia (e comecei já na iminência de completar 37 anos). Confesso que demorei um pouquinho para entender por que Deus (a sua existência, a sua natureza ou, simplesmente, a ideia que temos dele) se constitui num dos grandes problemas filosóficos. Deus, até então, era para mim um ser cuja possibilidade ou não de existir não fazia exatamente parte de meus escrutínios, embora, às vezes, e de algum modo, ele se apresentasse à minha mente sobretudo nas horas de culpa, sofrimento, medo e esperança, como diz Hume.
Bom, nem sempre o Deus que se apresentava à minha mente era esse Deus monoteísta cristão. Tanto que por oito anos, os oito imediatamente anteriores aos meus 37, fui budista. E antes, "meditante", e antes, digamos, “procurante”.
Hoje, quanto mais penso em Deus (independentemente de se ele existe ou não), mais tenho a certeza de que sua suposta natureza, atributos e planos permanecem incertos e ocultos, e que Hume me parece estar certo quando diz que estas são questões indecidíveis, apesar de serem perfeitamente concebíveis pela mente.
É tese de Hume também que se a ideia de Deus é concebida pela mente, sua existência é possível, mas também, por diversas razões, pouquíssimo provável (tese que também não vou tratar aqui). Levanto esse assunto não para discutir filosoficamente essas questões (acho que uns diriam aqui: ainda bem! outros: ah, que pena!). Levanto o assunto para contar uma história.
Lembro-me vividamente de uma noite (acho que eu tinha mais ou menos uns 6 ou 7 anos) em que minha avó fez um discurso de que filha malcriada, especialmente com a mãe, o pai, ou mesmo a avó (e eu havia praticado um ato malcriado qualquer, na verdade, acho que tinha apenas sido desobediente), cometia um grandessíssimo pecado e, muito provavelmente (só que ela discursava com um ar de muito certamente), iria, quando morresse, pagar meus pecados ardendo no mármore do inferno.
Minha avó descrevia o diabo com chifres, rabo comprido, pele grossa e carbonizada, enormes asas de morcego, olhos fulminantes e cara de besta-fera que baba maldade e se delicia com ela: a maldade escorre pela boca e ele lambe de volta pra não deixar escapar nem um pouquinho. Tudo isso, claro, num cenário vermelho fogo repleto de almas penadas, típico de um inferno.
Depois ela descrevia Deus com aqueles atributos tradicionais de suprema benevolência, onisciência, onipresença e onipotência, com ar sereno e cara de bonzinho. Deus me olhava do alto daquele céu azul plácido e tranquilo. Mas notem: Deus estava bravo comigo e me recriminava.
Nosssa! Chorei a noite inteira morrendo de medo dos castigos do inferno. E olhem que eu tinha feito apenas uma bobagenzinha, tanto que nem me lembro que “pecado horroroso” era esse que havia cometido. Eu me contorcia e chorava mergulhada em culpa, arrependimento e medo. Acho mesmo que fiquei doente. Suplicava perdão àquela figura esplêndida, na esperança de escapar do inferno. E prometia que dali pra frente eu seria a menina mais boazinha e obediente do mundo (é claro que nunca cumpri essa promessa rs). Ai que angústia! Que tortura! Que pesadelo tive naquela noite (se é que dormi de fato! na verdade, acho que fiquei in delirium tremens).
Bom, minha fase cristã não durou muito. Minhas dúvidas em relação a Deus, ao cristianismo e às religiões em geral, aumentavam conforme eu crescia, até que hoje, bem mais esclarecida, penso: ainda bem que cresci e comecei a estudar filosofia ─ uma maneira (que também não vou explicar aqui) de escapar desses tormentos e superstições.
Hoje cometo lá meus pecadinhos (já que não sou perfeita), mas não tenho pesadelos com Deus e o Diabo. Basta, para que eu me redima das faltas que cometo, que minha consciência moral me acuse, seja esta ditada pela minha razão ou pelos sentimentos naturais de ser simplesmente e demasiada humana.