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quinta-feira, junho 01, 2017

Frágil e incerta


Há pouco, ao me levantar da cadeira na qual estudava, levei um tombo ridículo (como em geral são os tombos). Virei-me rapidamente para ir até a sala buscar meu celular e tropecei feio no adorável cão da casa que, por sua vez, descansava silenciosamente logo atrás da cadeira. Chegou ali sem que eu, absorta, o tivesse percebido. Ele é meio cor de creme, o piso da casa é cor de creme e até eu sou meio cor de creme. Diante desse cenário de cores e tons praticamente indistintos, não vi nada na minha frente, afora, após o tombo, o chão na cara, uma escuridão momentânea, seguida de algumas estrelas piscando. Caí dura, de corpo inteiro no chão, feito bloco de pedra, pois o silente e vigilante companheiro ─ que é grande e alto ─ me passou uma rasteira. Levantou-se rapidíssimo deslocando meus dois pés do chão ao mesmo tempo. Sem qualquer apoio, a queda foi praticamente livre. Digo praticamente porque consegui amortizá-la um pouco com as duas mãos. As veias de meus pulsos saltaram grossas e roxas. Meus ossos gritaram. 

Doeu pacas!!! Cheguei a tocar o nariz e a testa no chão. Junto a essa cena tragicômica, senti uma pontada nas escápulas, no pescoço, e uma forte dor no peito. Ninguém assistiu ao espetáculo, a não ser o próprio Bóris ─ doce cão, amigo, querido, e cheio de expressão nos olhos. Sem ninguém para me acudir no momento, fiquei ali por um tempo, estatelada, gemendo muitos ais. Aos poucos, fui me levantando. Toda trêmula e doída.

Pensei: tive muita sorte. Se eu tivesse caído de modo um pouco mais desajeitado, as consequências poderiam ter sido desastrosas. Eu poderia ter quebrado o nariz, ou o osso da fronte, um ou outro ou ambos os braços, ou uma clavícula, os pulsos, ou mesmo o pescoço ─ um pensamento trágico nunca pode faltar em se tratando de moi...

Ah... como a vida é frágil e incerta! Eu poderia ter me quebrado toda. Um tombinho de nada (na verdade, um tombão ridículo!) e tudo que eu programei para a semana que vem, ou mesmo para o resto de minha vida, seria revirado, alterado ou afundado.

[Boris: cheio de expressão nos olhos]


E por falar em vida frágil e incerta, a gente ouve falar daquelas pessoas que morrem num tombo besta porque caíram de mau jeito. Pensei: ainda que eu esteja agora toda dolorida, com hematomas nos dois pulsos, caí de bom jeito, assim como capotei de bom jeito na famosa estrada da morte, em outubro de 2016, a mais ou menos 100 km de Curitiba. Nessa capotada, que de cômica não teve nada (uma clássica rodada no óleo de uma pista sob garoa), também tive muita sorte. Saí praticamente indene. Não fiz nenhum corte, não verti nenhuma gota de sangue, não quebrei um osso sequer. Ganhei apenas alguns hematomas abaixo dos joelhos, nas costelas e na clavícula esquerda, além de diversos incômodos práticos e dores pelo corpo todo (como se tivesse levado uma surra). Mal acreditei que na hora do acidente não fiquei nem tonta e saí andando, embora estupefata, imediatamente após o carro parar embicado numa vala do canteiro que divide as pistas. Mas, para a sorte do meu destino, "esse fantasma sincronizador" (como diz Humbert Humbert em Lolita), com as rodas no chão. Para não dizer que não perdi nada, perdi alguns materiais impressos de estudos (que foram parar na lama), um brinco da orelha esquerda, meu Celtinha "bala" ─ tão leve, rodado e cheio de spirit ─ e mais algumas ilusões.

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[marília côrtes / 2017]

domingo, junho 14, 2015

Amizade Estelar

" ─ Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho, podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos ─ e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido só um destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo ─ ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos ─ elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. ─ E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra."

(Nietzsche. A Gaia Ciência IV §279, p.189-190)



Não me lembro quando li pela primeira vez esse aforismo de A Gaia Ciência. Provavelmente foi quando comecei a estudar Nietzsche, a fim de desenvolver um projeto de iniciação científica (CNPq), na época de minha graduação (idos de 2000-2002). Há algum tempo, ao retomar minhas leituras de partes da obra deste autor perturbador, tropecei várias vezes neste belo e trágico aforismo, já tão lido, relido, trelido, pensado, sentido, interrogado e grifado. Pensei: por que ele me chama tanto a atenção? Por que ele me afeta tanto? Por que meu coração se ressente ao lê-lo? Well, não estabeleci nenhuma relação do que Nietzsche afirma nele com a pessoa para a qual ele destina este aforismo. Pois tal aforismo nunca fez propriamente parte dos temas que me propus a estudar. Minha interpretação sempre foi, num certo sentido, totalmente parcial e descontextualizada do restante de sua obra (se é que me permitem...). Sempre admirei o teor poético, imagético e passional (bem ao estilo amor-fati) do que Nietzsche escreve. Ao lê-lo, sentia em meu coração (e sinto sempre que o leio) uma dorzinha aguda e gelada. Pensava no valor da amizade e lembrava da minha amizade mais cara. Perguntava-me: será que será assim? E repetia a mim mesma, como quem torce fazendo figa: tomara que não, tomara que não! Quero continuar a crer em nossa amizade terrena, ainda que ela possa ser também estelar e celestial.

[Há uma ano e meio li a biografia de Lou Salomé e pensei se Nietzsche teria escrito esse aforismo pensando nela. Eu não havia feito ainda nenhuma pesquisa a respeito. Na época, não fui adiante com minha dúvida. Mas, lendo-o novamente esses dias, fiquei curiosa. E fui conferir. Descobri que Nietzsche escreveu-o de modo a deixar "claro que não poderia atender ao apelo" do grande compositor Richard Wagner "para resgatar uma amizade perdida." Ao menos é o que está dito na sinopse do livro Amizade Estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, de Rosa Maria Dias, que, aliás, ainda não li. Quem sabe um dia. Até lá... (ou talvez para sempre) mantenho minha leitura parcial, ainda que agora eu saiba que a relação de amizade que serviu de mote a este aforismo é outra].

quinta-feira, dezembro 05, 2013

Tango Fati

Tango of the Archangel | Kees Van Dongen |1877-1968 
 Oil on canvas


Hoje, ao ouvir um tango, transbordei, tangamente, de emoções e lembranças. Coração disparado, agitado... Inspirei, expirei, suspirei, pausei! pensamentos pulularam no ritmo sincopado de meus batimentos cardíacos enquanto dirigia. Pisei no freio. Derrapei! ouvindo um tango. Ora, por que os tangos me encantam, arrebatam e extasiam desse modo? Porque são belos, penetrantes. Invadem-me não só pelos ouvidos, mas também pelas veias, poros e pulmões. Tangos circulam por todo o meu sistema sanguíneo e, por pouco, não me arrebentam as veias. Tangos... tangos... que bonitos. O que dizer?

Seria um caso daquilo sobre o que não se pode falar e que, portanto, deve-se calar? Se sim...  dane-se! vou transgredir esse famoso enunciado e falar mais um pouco sobre o que, talvez, devesse calar, ainda que Wittgenstein venha a se revirar na tumba. Trata-se de falar sobre o inefável, ainda que a lógica se descabele por eu ter proferido tamanha contradição. Trata-se de dizer sobre o indizível, ainda que me faltem palavras para exprimir as paixões que se agitam em meu peito em chamas e que se diga que o indizível só pode, então, ser mostrado.

Transbordo-me quando ouço um tango. Tangos agitam minhas paixões (desejos, amores, temores e dores). Eles têm um "q" de sagrado e um "q" de profano. Ao ouvir um belo e bom tango, ao menos por um breve momento, abandono-me em mim mesma e para além de mim mesma, tornando-me, digamos assim, metafísica ─ pura contemplação estética! É como se eu e o universo inteiro nos tornássemos um só em toda a sua plenitude. 

[ Acho que Schopenhauer iria gostar dessa última frase rs, mas só dessa última, uma vez que ele entende o belo como uma dissolução do eu: um rompimento completo das amarras da vontade de viver, que, por sua vez, é enlouquecida pelo querido e amado eu. Para Schopenhauer, a contemplação estética se dá por um apaziguamento, uma libertação momentânea dos grilhões da vontade, e não uma agitação do eu em tormentos passionais, como no meu caso. Well. deixemos, então, o "velho rabugento" pra lá ].

A meu ver, os tangos inspiram o amor ─ os amantes latinos ou os simplesmente amantes. A vida e a literatura estão repletas de amores calientes, ardentes, trágicos, dramáticos ou simplesmente amores. Quando ouço um tango, não quero mais nada, talvez, no máximo, um amante argentino rsr (brincadeirinha ─ mantenham o senso de humor)

Há tangos alegres ou felizes? Acho que não! Ao menos não me vem nenhum à memória. Arrisco-me a dizer, pois, que os tangos são sempre trágicos ─ exprimem os sofrimentos e dramas da existência, o que ela tem de belo, profundo, triste, dolorido e... (pausa)... trágico! E não são menos belos por trazerem à tona a tragicidade da existência. Ao contrário, precisamente por serem trágicos, os tangos são ainda mais belos. Creio que vêm ao encontro do conceito de Amor-Fati exposto por Nietzsche do seguinte modo:

"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas ─ assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas.  Amor Fati: Amor ao Destino". Tango Fati: "seja este, doravante, o meu amor" (A Gaia Ciência IV | § 276).