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sexta-feira, setembro 04, 2009

Lucidamente insano



Hoje acordei com vontade de escrever sobre literatura. Na verdade isso não aconteceu só hoje. Volta e meia eu acordo assim, mas acabo entretida em outros compromissos. Lembrei-me que a alguns posts abaixo, À Lolita eterna refletida em meu sangue, prometi que um dia ainda transcreveria mais algumas partes dessa obra que considero um deleite para os amantes, assim como eu, das belas palavras. Eis-me aqui, agora, para cumprir minha promessa (senão ficarei desacreditada rs).

Bom, é claro que não me refiro a belas palavras vazias, ou, digamos assim, pobres de significados. Palavras podem ser sonoramente belas, mas triviais, pouco ou quase nada significativas. Estas não me interessam. Quando falo em belas palavras refiro-me àquelas que nos invadem cortantes, no meio do peito e por todos os lados; palavras que suscitam idéias que te arrebatam e te arrebentam. Belas porque profundas, belas ainda que trágicas. Lolita tem esse poder: suscita idéias grávidas de significados dilacerantes.

Numa determinada altura do livro, quase ao final, o personagem Humbert Humbert diz que seu “pulso marcava, num minuto, quarenta pulsações, no outro, cem”. Gostei dessa idéia. Fiquei a pensar: que descompasso! Que aflição, que desequilíbrio, que mal-estar deve causar essa sensação (como se eu já não a tivesse sentido). Imaginei-me assim, analogamente, com um de meus pulsos aceleradíssimo, disparado, batendo cem vezes por minuto, e o outro slow motion, pesado, quase parando: a paixão corroendo, "as veias a doer" (p.19) e a procurar "uma presença sedativa" (p.33).

É claro que você pode sentir-se assim sendo afetado de diversas maneiras, como, por exemplo, quando encontramos, de repente, alguém por quem estamos velada e irresistivelmente apaixonados (na adolescência acontece muito, nos adolescentes tardios também rs, e por que não nos adultos?), e ficamos tímidos, não sabemos como nos comportar, perdemos a espontaneidade, temos medo ou vergonha de que a pessoa descubra ou perceba, receamos revelar nossa paixão (quem já se viu violentamente apaixonado desse modo sabe do que estou falando).

Mas esse não é o contexto no qual Humbert Humbert descreve o ritmo descompassado de sua pulsação. Ele já havia perdido Lolita, já havia se rasgado, enlouquecido: seu coração já se tornara “um órgão histérico”. Humbert procurava Lolita, de modo doente, incansável, obsessivo. Num certo dia, Humbert recebera uma carta de Lolita comunicando-lhe que havia se casado, que iria ter um bebê, e que passava por tristezas e dificuldades. Dolly pedia-lhe dinheiro. Humbert investigara o endereço, ensaiara a morte violenta do marido (Mr. Richard F. Schiller), e fora atrás dela.


“Não me foi possível ─ ai de mim! ─ conservar no estômago a primeira refeição, mas considerei essa indisposição física apenas um contratempo trivial, limpei a boca com um lenço de tecido fino e diáfano tirado de dentro do punho e, tendo como coração um bloco de gelo, uma pílula na língua e a morte inapelável no bolso traseiro da calça, meti-me elegantemente numa cabina telefônica em Coalmont e disquei para o único Schiller existente na velha lista destroçada” (p.366-367).

Após rastrear o endereço, Humbert atinge o seu “cinzento objetivo”. Ao chegar à casa de Lo, sofrido, “velho e frágil”, permanece imóvel ali em frente, sentado em seu velho sedan azul, durante vários minutos. Este é precisamente o momento do descompasso de seus pulsos.

Depois de vê-la “fraca e imensamente grávida [...] as faces, pálidas e sardentas, estavam fundas” (p.368-369), Humbert pergunta-lhe, rosnando, com a mão no bolso, se seu marido estava em casa. Enquanto isso a olha e pensa: “Não podia matá-la, claro, como alguns pensaram. Eu a amava, os senhores compreendem. Era amor à primeira vista, à última vista e a todas as outras vistas, sempre” (p.369).

Muita coisa se passara neste encontro triste, tenso, terno e dramático ao mesmo tempo, até que Humbert lhe entregasse o dinheiro. Ele conhecera Dick, o marido, e percebera que não estava à procura daquele homem. Não foi ele quem roubou Lolita. A cena, cheia de detalhes, se desenrola até que, antes de ir embora, Humbert, com aquele "tumor oculto da paixão inenarrável" (p. 80), tenta convencer Lolita a ir com ele: - “Lolita ─ disse-lhe eu ─ [...] Daqui até aquele velho carro... há uma distância de vinte, vinte e cinco passos. É uma distância muito curta. Dê agora esses vinte e cinco passos. Agora. Neste momento. Venha assim como você está. E viveremos felizes para sempre” (p.380). Lolita recusa. Questiona se ele só lhes dará o dinheiro que necessitam se ela for a um motel com ele. - Não, responde Humbert. Ele pensa:

“Ela compreendeu tudo errado: ─ quero que você deixe esse seu Dick incidental, bem como este buraco medonho, e venha viver comigo, e morrer comigo, e ‘tudo’ comigo. [...] Pense bem Lolita”. De qualquer modo, porém, mesmo que você se recuse receberá o seu ... trousseau” (p. 381)."Entreguei-lhe um envelope contendo quatrocentos dólares em dinheiro, além de um cheque de três mil e seiscentos dólares. Cautelosa, incerta, recebeu meu petit cadeau ─ e, então, sua testa se tornou de um belo cor-de-rosa. [...] Cobri o rosto com a mão e rompi nas lágrimas mais ardentes que jamais derramei. Senti que elas me escorriam por entre os dedos e pelo queixo, que me queimavam ─ e meu nariz se entupiu, e eu não podia parar, e ela, então, tocou em meu punho (p.381).

- Morrerei, se você tocar em mim ─ disse-lhe. ─ Você sabe que não irá comigo. Não há nenhuma esperança de que você vá? Diga-me apenas isso” (p.381).

E ela diz não! Depois de algumas justificativas dela e um diálogo sofrido, ele faz mais uma tentativa.

“- Uma última palavra – disse-lhe, em meu cuidadoso e horrível inglês. – Você está absolutamente certa de que... não amanhã, nem depois de amanhã, por certo, mas... bem, de que um dia, qualquer dia, não voltará para minha companhia? Criarei um Deus novo em folha e, com gritos penetrantes, elevarei a Ele o meu agradecimento, se você me der uma microscópica esperança (p.383)”. Ah... uma microscópica esperança! Era tudo o que ele precisava. Mas... - Não – respondeu Lolita sorrindo. Não!

"Adeus! - cantou ela, o meu doce, imortal e morto amor americano. Sim, porque ela está morta e é imortal" [...] "Vi-me, em seguida, dirigindo o carro em meio do chuvisqueiro do dia agonizante, com os limpadores do pára-brisa a funcionar com toda rapidez, mas incapazes de competir com as minhas lágrimas” (p.384).

Dali em diante, Humbert dirige-se a seu grand final. Mas antes, com aquela fascinante estética verbal que, por si só, fala pela pena de Nabokov, passa por mais algumas de suas miseráveis lembranças. Eis algumas delas:

“Guardo ainda outras lembranças enevoadas que se desdobram agora em monstros de dor desprovidos de membros. [...] eu nada conhecia acerca da mente de minha querida e que, era bem possível, atrás daqueles horríveis lugares-comuns juvenis, havia nela um jardim e um crepúsculo, e o portal de um palácio ─ vagas e adoráveis regiões que me eram lúcida e absolutamente proibidas, em meus andrajos poluídos e miseráveis convulsões, pois eu, não raro, percebia que, vivendo como vivíamos, ela e eu, num mundo completamente mau, nos sentíamos estranhamente constrangidos sempre que procurávamos discutir [...]. Ela costumava revestir sua vulnerabilidade de um ar de fastio e impertinência vulgar, enquanto que eu, empregando em meus comentários, desesperadamente impessoais, um tom de voz tão artificial que me eriçava os pêlos, provocava em minha ouvinte tais explosões de grosseria que tornavam impossível o prosseguimento da conversa, minha pobre e magoada criança” (p.388-389)!

“Eu a amava, Lolita. Eu era um monstro pentápode, mas amava-a. Era uma criatura desprezível, bruta, torpe e tudo o mais, mais je t’aimais, je t’aimais. [...] Lembro-me de certos momentos ─ chamemo-los geleiras do paraíso ─ em que, depois de saciar-me dela... após esforços fabulosos, insanos, que me deixavam bambo e listrado de azul, eu a tomava nos braços, afinal, com um mudo gemido de ternura humana (sua pele brilhava à luz do gás neon vinda, através das frestas dos estores, do pátio da estalagem, seus cílios fuliginosos embaciavam-se, os olhos cor de cascalho eram mais vagos do que nunca... enquanto o mundo todo não era senão uma pequena paciente ainda mergulhada na confusão de um anestésico, após uma grande operação) e a ternura se transformava em vergonha e desespero e eu embalava a minha leve e solitária Lolita em meus braços de mármore, e gemia em seus cálidos cabelos, e acariciava-a a esmo, e pedia-lhe, mudamente, que me abençoasse e, no auge dessa agoniada e generosa ternura humana (com a minha alma verdadeiramente dependurada de seu corpo nu, e prestes a arrepender-se), súbito, ironicamente, horrorosamente, a luxúria tornava a nascer e... ‘Oh, não!’, exclamava Lolita com um suspiro dirigido ao céu. E, num momento, a ternura e o azul ─ tudo se despedaçava” (p.389-390).

(NABOKOV, Vladimir. Lolita. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981).

quarta-feira, maio 20, 2009

À Lolita eterna refletida em meu sangue...





“Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA. Era LO, apenas LO, pela manhã, com suas meias curtas e seu um metro e quarenta e oito centímetros de altura. Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita.” 

Ah... isso é simplesmente lindo. Curioso é que expressa um amor criminoso. E o mais curioso ainda é que, se assim não fosse, não haveria Lolita (ou a Confissão de um Viúvo de Cor Branca), a obra-prima do escritor russo Vladimir Nabokov.

Essa é uma obra que ao mesmo tempo em que causa repugnância moral, curiosidade científica (por se tratar da história de amor de um “pervertido”), arranca suspiros e enternece corações em virtude não só de sua beleza literária, mas também pela compaixão que desperta no leitor quando este percebe a tragicidade de um amor que, além de obsessivo e devorador, é moral e juridicamente condenável. O protagonista Humbert-Humbert, um homem já bastante maduro, acalenta (talvez fosse melhor dizer sofre de) predileções eróticas inusuais. Ele se apaixona por sua enteada de 12 anos Dolores Haze, “em seus braços sempre Lolita”.

Quando li este trágico romance não resisti a extrair algumas belas frases e parágrafos, idéias e expressões geniais, e anotar tudo num caderninho (uma seleção, I confess, bem difícil).

Escrito numa linguagem elegante e sofisticada, o romance soa como música para ouvidos refinados: eis aí uma verdadeira obra da arte de confessar de maneira desesperada e, ao que tudo indica, honesta, uma paixão criminosa.

Não pretendo aqui, ao menos por enquanto, fazer apreciações morais sobre o romance (embora eu reconheça que ele é um prato saboroso pra isso). Tampouco discutir as diferentes interpretações de seus leitores e versões dos filmes de Stanley Kubrick ou Adrian Lyne. Minha intenção é tão-somente salientar seu valor literário transcrevendo alguns trechos desses que alteram nossa respiração.

“...olhai [pois] este emaranhado de espinhos”. 

Paradoxalmente, eu diria, esse belo emaranhado de espinhos.

“De repente, estávamos louca, desajeitada, desavergonhada e angustiosamente apaixonados um pelo outro; irremediavelmente, deveria eu acrescentar, pois aquele frenesi de posse mútua só poderia ter sido aplacado se verdadeiramente assimilássemos e nos embebêssemos de cada partícula da alma e da carne do outro... Ali, sobre a areia macia..., ficávamos estendidos durante toda a manhã, num petrificado paroxismo de desejo... [Humbert ao falar de Annabel, precursora de Lolita, que morreu de tifo ainda púbere].


Destaco aqui não só a beleza desse trecho, como também a riqueza semântica concentrada na palavra paroxismo que, por sua vez, significa “espasmo agudo ou convulsão; momento de maior intensidade de uma dor ou de um acesso; recorrência ou intensificação súbita dos sintomas de uma afecção, estertores de um agonizante; vascas”. Pergunto: quem é que ainda não se viu num tal paroxismo de desejo? 


“Folheio sem cessar estas miseráveis lembranças...”

“Quando tento analisar meus próprios anseios, motivos, atos, etc., rendo-me a uma espécie de imaginação retrospectiva que alimenta minha faculdade analítica com alternativas ilimitadas e que faz com que cada caminho imaginado se bifurque e se aparte sem cessar em meio da complexa e enlouquecedora perspectiva de meu passado. Estou convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita começou com Annabel”.


“Suas pernas, suas encantadoras e nervosas pernas, não estavam muito próximas uma da outra e quando minha mão localizou o que eu buscava, uma expressão sonhadora e estranha, meio de prazer, meio de dor, estampou-se sobre aqueles traços infantis. [...] enquanto eu, com uma generosidade que estava pronta a oferecer-lhe tudo - meu coração, minha garganta, minhas entranhas - lhe dava para segurar, com sua mão desajeitada, o cetro de minha paixão” [sobre o primeiro e malogrado encontro a sós com Annabel].

“Desejo, agora, apresentar a seguinte idéia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets. Notar-se-á que substituí os termos espaciais por termos de tempo. De fato, gostaria que o leitor visse ‘nove’ e ‘catorze’ como constituindo os limites – as praias cintilantes e os róseos rochedos – de uma ilha encantada e assombrada por essas minhas nymphets e cercada por vasto e brumoso mar. São todas as meninas, entre esses limites de idade, nymphets? Claro que não. Do contrário, nós que conhecemos esse segredo, nós, os viajeiros solitários, os nympholets, teríamos há muito enlouquecido. Tampouco a beleza serve para se formar qualquer juízo a respeito; e a vulgaridade, ou pelo menos o que uma determinada comunidade assim o classifica, não confere, necessariamente, certas características misteriosas, a graça tresloucada, o charme indefinível, astuto, insidioso, que despedaça almas e que distingue a nymphets de certas de suas coevas que dependem, de modo incomparavelmente maior, do mundo espacial dos fenômenos síncronos do que daquela intangível ilha de tempo extasiante em que Lolita brinca com as que lhe são semelhantes”.



“É preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha (oh, como a gente tem de se aviltar e ocultar-se!), para se discernir imediatamente, mediante sinais inefáveis - o contorno ligeiramente felino de um osso malar, a esbeltez de um membro pubescente, bem como os outros indícios que o desespero, a vergonha e as lágrimas me impedem de enumerar -, o fatal diabrete entre as crianças saudáveis. Ela, a nymphet, passa despercebida entre as demais, sem que tenha, ela própria, consciência de seu fantástico poder”.

Bom, por questões de espaço e tempo devo agora encerrar por aqui, mas tem mais, muito mais. Pretendo, aos poucos, transcrever mais algumas partes que considero um deleite para os amantes das belas combinações de palavras.