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quinta-feira, março 31, 2022

Bom dia, deem uma viajadinha no tempo. Remontem aos anos finais do século XVIII — contexto da Revolução Francesa — e vejam o que essa mulher, Olympe de Gouges, ousou declarar em linhas que, dois anos mais tarde, entre outras, custaram-lhe a cabeça.


 

“Homem, você é capaz de ser justo? É uma mulher que lhe faz a pergunta — você não a despojará desse direito, pelo menos. Diga-me, quem lhe deu o poder soberano para oprimir meu sexo? A sua força? Os seus talentos? Observe o criador em sua sabedoria, percorra a natureza em toda a sua grandeza, da qual você parece querer aproximar-se, e dê-me, se você ousa, o exemplo desse império tirânico (n.1).

Retorne aos animais, consulte os elementos, estude os vegetais, enfim, olhe todas as modificações da matéria organizada, e renda-se à evidência, quando lhe ofereço os meios de fazê-lo. Procure, pesquise e distinga, se você puder, os sexos na administração da natureza. Em toda parte, você encontrará os sexos confundidos, em toda parte eles cooperam com um conjunto harmonioso para essa obra prima imortal.

Somente o homem costurou para si um princípio dessa exceção. Estranho, cego, inflado de ciências e degenerado, neste século de luzes e de sagacidade, na ignorância mais abjeta, ele quer comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. Ele [este sexo] pretende usufruir da Revolução e reivindicar seus direitos à igualdade, para nada mais dizer.”

(N.1. De Paris ao Peru, do Japão ao Senegal, o homem é, a meu ver, o mais tolo animal (N.A.)).

[Acima, texto de abertura à Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, 1791].

Olympe de Gouges (1748-1793), dramaturga, ativista política, abolicionista, autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1791), foi acusada de traição e guilhotinada em 03 de novembro de 1793 “por haver esquecido as virtudes que convêm a seu sexo e por haver se intrometido nos assuntos da República” — um destino também compartilhado pela rainha Maria Antonieta da Áustria, esposa de Luís XVI. 

Tal Declaração, dedicada à rainha Maria Antonieta, é composta por um preâmbulo, dezessete artigos, um epílogo e mais algumas linhas sobre a “Forma do contrato social entre o homem e a mulher.” Encontra-se traduzida in: ROVERE, Maxime (Org.). Arqueofeminismo: Mulheres Filósofas e Filósofos Feministas. Séculos XVII e XVIII. São Paulo: n-1 Edições, 2019.

Vale muito a leitura!

segunda-feira, junho 18, 2018

De olhos bem vendados


Imaging Red |Asya Kucherevskaya


Nunca, na história deste país, os fatos contradisseram tão bem o velho ditado-clichê segundo o qual a justiça tarda, mas não falha. Aqui, em nossa corrupta e mal administrada res publica, a justiça não apenas tarda, mas, na maioria das vezes, também falha. E, pior, agoniza!

Aliás, eu diria, não apenas aqui, na história deste país, e agora, em nosso tempo (nesse caso, o "nunca" introduz o assunto aqui apenas como recurso retórico). Se houve na história da humanidade, acho eu, um tempo e lugar no qual a justiça (pensemos especialmente naquilo que costumamos chamar de justiça social) se fez efetivamente justa, prevalecendo sobre as injustiças, esse tempo deve ter sido muito curto. Não é à toa que desde Sócrates e Platão essa virtude cardeal par excellence  foi e continua sendo matéria de diversas controvérsias, teses e dissertações.

É claro que alguns vão dizer que Deus - o supremo legislador moral - está vendo e fará a justiça prevalecer no dia do juízo final, que não compreendemos seus onibenevolentes desígnios, que Ele nos reserva um verdadeiro paraíso no além, e que, em algum momento, todos os males serão punidos e todos os bens recompensados, ou mesmo que, do ponto de vista da eternidade ou do todo (que ninguém jamais alcança, diga-se de passagem, exceto o próprio Deus, caso exista), os males, misérias e injustiças que superabundam no mundo serão, ao fim e ao cabo, bens para o universo.

Mas isso, diriam outros, já seria sair do exame da vida ordinária, ultrapassar o alcance e os limites de nossas faculdades e adentrar o reino das fadas, centauros e dragões.


Giulio Aristide Sartorio | Studio per la Gorgone e gli eroi


quarta-feira, novembro 21, 2012

Agir bem para bem viver




“... a prudência é o princípio e o supremo bem, 
razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; 
é dela que originaram todas as demais virtudes; 
é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, 
e que não existe prudência beleza e justiça sem felicidade” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 45).

Platão, ao buscar definir a essência da justiça, considerou-a o mais belo de todos os bens. Ele afirma que a justiça deve ser amada tanto por si mesma quanto por suas consequências. E como virtude, par excellence, deve ser amada também por “aquele que quer ser plenamente feliz” (República II).

Aristóteles, por sua vez, ao procurar “o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação” diz, na Ética a Nicômaco, que “quase todas as pessoas estão de acordo quanto ao fato de que esse bem mais alto é a felicidade", pois “identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz”; mas adverte que eles diferem “quanto ao que seja a felicidade” (EN I 4: 1095a 20).

Se quisermos saltar séculos à frente, para o período humanista da filosofia moderna, podemos encontrar, nos Ensaios de Montaigne, afirmações semelhantes: "A meu ver, a felicidade do homem consiste em bem viver" (Essays II) e “não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente” (Essays III).

E se remontarmos mais uma vez à antiguidade, encontraremos na Carta sobre a felicidade de Epicuro, além da epígrafe acima, a afirmação segundo a qual “as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 47).

Sêneca, dois séculos após Epicuro, por seu turno, declara que “a vida feliz apoia-se, estável e imutavelmente, sobre a retidão e certeza do juízo”, e que é “feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida” (Sêneca. A Vida Feliz, p. 30-31).

Em sua apresentação à obra de Sêneca, Diderot observa que, de acordo com o estoico, “para alcançar a felicidade é necessária a liberdade: a felicidade não é para quem possui outros senhores além do próprio dever. Mas [pergunta Diderot], não será o dever um patrão arrogante? E na condição de serviência que importa a qual senhor se sirva? Importa demasiado: o dever é um senhor do qual não se pode libertar sob pena de tornar-se infeliz” (Sêneca. A Vida Feliz, introdução, p. 12).


terça-feira, setembro 18, 2012

Filosofia para Diletantes



Eis um título que, por um lado, considero perfeito para um curso voltado àqueles que desejam estudar filosofia por amor à sabedoria. Aliás, amor à sabedoria vem diretamente ao encontro da origem da palavra filosofia, malgrado se possa dizer que esta palavra tomou significados diversos, de acordo com as teorias dos diversos filósofos. 

Como se sabe, o diletante é aquele que tem interesse e se dedica a uma arte ou ofício, digamos assim, como amador, quer dizer, por amor e deleite, e não por ofício ou obrigação. 

Nesse sentido, o título se ajusta perfeitamente à proposta inicial deste curso, qual seja, a de oferecer um programa extra-acadêmico dirigido a um público que deseja exercer a atividade filosófica não por obrigação curricular, mas simplesmente por prazer e amor aos estudos.

Eu disse por um lado... por quê? Porque, de outro, o título pode suscitar um sentido pejorativo que o termo "diletante", sinônimo de amador, tomou na linguagem ordinária - a de que o diletante não leva as coisas muito a sério. Nada a ver, pois do fato de que alguém possa exercer uma atividade apenas por amor e prazer não se segue que esse alguém é descuidado ou não leva as coisas (no caso aqui os estudos) a sério. Uma pessoa pode muito bem se dedicar aos estudos, a qualquer arte ou ofício, de modo diligente, como um autoditada, por exemplo. Algumas pessoas fazem isso naturalmente, outras, talvez, necessitem aprender a estudar sozinhas, ou seja, precisam de um empurrãozinho, de alguém que as introduza no universo filosófico e as oriente.

Desde que comecei a estudar filosofia, há quatorze anos (fiz e faço isso cumprindo as exigências da academia, mas também como diletante, no sentido original da palavra, ou seja, por paixão e deleite), acredito que existe um tipo de público que adoraria estudar filosofia, mas que não está nem um pouco disposto a calçar o "sapato apertado" da erudição acadêmica. Esse público, obviamente, não se pretende graduado, mestre, doutor ou pós-doutor em filosofia, tampouco deseja ser professor de filosofia. Todavia, ele tem sede, curiosidade, interesse, vontade e desejo de conhecer, ainda que não com o rigor da academia, o universo da filosofia.

Mas como satisfazer a esse público se levarmos em conta a (por certo controversa) distância que (dizem) separa os filósofos acadêmicos dos mortais comuns? (Ops... eles não são mortais comuns?) Será mesmo possível diminuir esse suposto abismo? Qual seria a ponte que tornaria possível ascender ao conhecimento filosófico? Algo me diz que grande parte dos acadêmicos de plantão pensa que isso não seria possível fora dos altos muros da academia. E embora eu seja também uma acadêmica de plantão, estranhamente (e a contragosto rsr) mortal e comum (sorry, não resisti), penso que seria sim possível, e só há uma maneira d'eu me certificar disso: colocando-me like a bridge over troubled water.

Pensando em atender a este suposto público (que acredito ser um público seleto, pois não creio que o estudo da filosofia possa atrair um grande público); e pensando também em satisfazer a minha necessidade de falar sobre filosofia, estruturei (numa parceria com a Aldeia Coworking Londrina), o primeiro módulo de um curso de filosofia para diletantes.

Por meio da leitura e comentários de textos de alguns grandes filósofos, historiadores e intérpretes da filosofia, o programa pretende oferecer uma visão introdutória e panorâmica da história da filosofia, a partir da origem e do significado de conceitos fundamentais do pensamento ocidental - conceitos que atravessaram séculos e ainda hoje permanecem atuais. 

Eis o cartaz e o programa deste primeiro módulo (que começa amanhã, às 20 hs):





MÓDULO I

1. Introdução (quarta-feira: 19/09)
1.1. Visão introdutória e panorâmica da história da filosofia
1.2. Divisão dos períodos e áreas da filosofia
1.3. Principais autores e temas
1.4. Perspectivas e correntes filosóficas

2. Gênese, natureza e desenvolvimento da filosofia e dos problemas especulativos da antiguidade (quarta-feira: 26/09)
2.1. As formas da vida espiritual grega que prepararam o nascimento da filosofia
2.2. Religião, misticismo e filosofia
2.3. Problemas e características da filosofia antiga
2.4. Os pré-socráticos: os problemas da physis, do ser e do cosmo

(textos de referência: REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo. História da Filosofia Grega e Romana. Vol.I Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2009.
BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos (15a. ed.). São Paulo: Cultrix, 2010.
KENNY, Anthony. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Vol. I (Filosofia Antiga). Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011).

3. Platão (quarta-feira: 03/10)
3.1. Conceitos fundamentais da teoria da ideias
3.2. Características distintivas da metafísica de Platão
3.3. A compreensão de conhecimento
3.4. A imortalidade da alma

4. Platão (quarta-feira: 10/10)
4.1. A Justiça
4.2. O Estado justo
4.3. Justiça e concepção de alma
4.4. A analogia entre a alma e a polis

(textos de referência: PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999 e PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Abril Cultural, 1972).



[Pintura de Catherine Chauloux]