quinta-feira, janeiro 30, 2014

Morte Lírica


Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.


[A meu ver, uma mulher que pensa sente e expressa o que está acima dito, uma mulher que concebe essa combinação de ideias palavras imagens sons e sentimentos, não pode deixar de ser considerada, reverenciada e declarada em alto (e eu diria até... solene) e bom som, uma grande e admirável poetés: Maria do Rosário Pedreira]. 

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Ella na passarela

Ella chegou ao clube desfilando aquele seu charme habitual ─ uma delicada mistura de graça, beleza e vivacidade. E ainda que Ella fosse uma mulher madura, do alto de seus 38 anos, conservava seus trejeitos de garota marota, dada uma discreta malícia em seu sorrisinho de lado, e uma evidente irreverência em seu corpinho de moça. Onde Ella entrava, e por onde Ella passava, atraía olhares de admiração. Ella movimentava-se com a graciosidade e leveza de quem está a bailar.

Ao caminhar toda formosa pela passarela que circunda a piscina, à procura de um lugar ao sol, Ella avistou de longe um tipo asqueroso (que ela mesma certa vez já havia observado com involuntária repulsa). Era um tipo chulo, excessivamente chulo. 

Ella pensou em dar meia-volta, mudar o caminho, só pra não ter de passar por aquele sujeitinho bronco, visto que o cara, comme d’habitude, já havia lançado a distância seu olhar ordinário de macho predador. Ella percebeu aquele tipinho "eu sou o lobo mau" lamber os beiços e teve uma espécie de náusea. Controlou-se. E achou que, uma vez dados os primeiros passos, era melhor não hesitar e voltar. Ia dar muito na cara que desviava daquele caminho apenas para evitá-lo. Respirou fundo, franziu o cenho e foi em frente.

Ella sempre via aquele sujeitinho vulgar por ali, geralmente cercado de mais uns três tipos semelhantes a ele. Já o havia visto também algumas vezes conversando sobre negócios com seu ex-marido (que raramente aparecia). E pelo fato de vê-los às vezes conversando, Ella se sentia constrangida a cumprimentar aquele ser tosco e estulto sempre que não havia como evitá-lo. Cumprimentava-o sempre com apenas um gélido movimento de cabeça, justamente pra não lhe dar espaço pra dizer nada. 

Ora, o que Ella poderia esperar ouvir de um sujeitinho daquele?

Ao vê-la passar, o malandro de quinta, com ar de quem quer puxar um papinho, adiantou-se e lhe perguntou: ─ o namorado não quis vir hoje? Ella bufou diante de tal atrevimento. Ficou puta da vida, ao ponto de não conseguir disfarçar o constrangimento que sentiu. Com um olhar sério e furtivo, não respondeu. Deu apenas um sorrisinho amarelo e sem graça. E continuou em frente, indignada, pensando: “não é que esse beiçudo barrigudo teve a pachola de me fazer uma pergunta dessa?”

A sorte dele foi que Ella era educada. O sorrisinho glacial, seguido de um ar de desprezo, disse tudo, mas certamente Ella desejou ser suficientemente grosseira para, soltando fogo pelas ventas, lhe perguntar:

─ Por que o senhor acha que seria minimamente razoável me fazer uma pergunta tão invasiva? Que relevância tem para você e/ou para a humanidade se meu namorado quis ou não quis vir hoje? Quando é que lhe dei espaço para o senhor se dirigir a mim, assim? Ah... faça-me o favor! A você, lobo mau com cara de bobo mau, caberia apenas me observar passar, ou, no máximo, respeitosamente me cumprimentar com um brevíssimo aceno de cabeça. E mais nada! Vá lamber esses beições pra lá e comer sua vovozinha ─ seu babaca ordinário! ou melhor: vá lamber sabão! como dizia a minha avó!

quarta-feira, janeiro 08, 2014

Ausência na presença


Costumo anotar num caderninho algumas ideias, frases, passagens e expressões literárias dos livros que leio. É como se elas me lessem e, ao me lerem, dizem algo mais. Quando li A Identidade de Milan Kundera fiz isso. Anotações que me fizeram pensar e repensar. Eis uma... e apenas uma delas:

Chantal se pergunta:

“Saudade? Como podia sentir saudade se ele estava na frente dela? Como se pode sofrer com a ausência de alguém que está presente? (Jean-Marc saberia responder: pode-se sofrer de saudade na presença do amado se se entrevê um futuro em que o amado não está mais presente; se a morte do amado já está, então, invisivelmente presente)” (p.39).

Algumas vezes me fiz essa mesma pergunta, certamente porque me vi diante dessa situação: sofrendo a ausência de alguém que estava presente, bem ali, na minha frente. 

A resposta de Jean-Marc me parece boa. Estou ali, na presença do meu amado, mas, ao olhar para o futuro, não o vejo mais presente em minha vida. Vejo apenas a ausência dele  um vazio, uma dor. Sinto saudades, sofro e lamento sua ausência presente. 

Ops! como assim? 

Eu diria que se pode sofrer a ausência de alguém que está presente quando aquela pessoa já não se apresenta mais como aquela que você conheceu, amou ou ama ainda. Ela mudou, não é mais a mesma, malgrado seja ela mesma quem está bem ali na sua frente. Aquela ficou no passado. Hoje você a olha e não a vê. Você está com ela, mas se sente só. Você ama quem já não existe mais ─ nem aqui, nem agora, nem lá ou acolá.

(Kundera, Milan. A Identidade. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Cia das Letras, 1998).

[Art | Os Amantes |1928  de René Magritte]