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quinta-feira, outubro 23, 2014

O espanto filosófico


"E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar pleno de admiração" (Platão. Teeteto, 155 d).


Não sei de quem é a tradução dessa passagem do Teeteto. Retirei-a daqui 
http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115685_03_cap_03.pdf
mas fui conferir na minha edição e a encontrei traduzida de modo diferente:

Vale dizer que nessa passagem Sócrates diz a Teeteto que Teodoro parece ser um bom avaliador no que tange à natureza de Teeteto (de possuir, entre muitas outras virtudes, um intelecto prodigiosamente bem dotado). Teeteto havia acabado de dizer a Sócrates estar perplexo, a ponto de chegar a experimentar vertigem quando se põe a considerar todas as questões que emergem da discussão a respeito do "que é conhecimento". Sócrates diz: "esse sentimento de perplexidade (müsteria) revela que és um filósofo, já que para a filosofia só existe um começo: a perplexidade"  (Teeteto, 155-d, edição da Edipro/2007).

Na edição da Fundação Calouste Gulbenkian a mesma passagem se apresenta traduzida do seguinte modo: "Efectivamente, meu amigo, Teodoro parece não ter adivinhado mal a tua natureza. Pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filósofo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este" (155-d).


"Teeteto - Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens.
Sócrates - Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia" (155-d).

Preciosismos acerca das traduções à parte (ai que mania), Aristóteles perfilha essa mesma visão ao afirmar na Metafísica [A 2 982 b 10-15] que "de fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples." 

Por sua vez, Schopenhauer, com sua concepção pessimista da existência, diz no suplemento 17 (referência ao § 15) do livro I do Mundo Como Vontade e Representação que:

"O espanto filosófico é no fundo uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam acalmar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias."

Sobre essa passagem (bem como sobre o significado de punctum pruriens) escrevi em 

[e, vejam só, cinco dias depois descubro de quem é a tradução da citação lá de cima, a que inspirou este post: é do Giovanni Reale em sua História da Filosofia Antiga volume I, p.387]

sábado, outubro 18, 2014

E por que não o nada?

Eu ia escrever algo sério sobre filosofia. Tratar, ainda que episodicamente, de ao menos um dos diversos temas, autores ou conceitos próprios da filosofia antiga, já que, por força das circunstâncias, passei os últimos cinquenta dias da minha vida debruçada sobre dez temas relativos a esse período da história da filosofia (e mais vinte dias me aguardam ainda em torno deles). Não foi a primeira vez, mas desta vez foi mais ampla, pontual e insistentemente. 

Tais temas envolvem o pensamento filosófico desde os Pré-Socráticos (século VI a.C) até Plotino (séc. III d.C), ou seja, quase mil anos de história. Confesso que não foi fácil, pois, a cada vez que começava a estudar um tema, os problemas filosóficos começavam a pulular. E o assunto crescia... crescia... crescia... até tornar-se gigante. Quanto mais procurava saber, mais percebia que nada sabia (é, Sócrates sabia o que dizia quando disse "sei que nada sei").

Enquanto isso eu pensava: por Zeus!!! das duas uma, ou vou ser engolida pela Physis ou massacrada pelo Logos, e jamais saberei A Verdade

Não, calma lá! Certamente haverá outras hipóteses: talvez eu transcenda essa esfera sensível, ascenda à esfera inteligível e nunca mais volte. Assim poderei definitivamente libertar minha alma desse cárcere em que ela habita e contemplar as ideias e formas platônicas, isto é, o verdadeiro Ser, em toda a sua plenitude.

Bom, mas se isso não acontecer, provavelmente morrerei intoxicada e louca de tanta substância aspirada das páginas da Metafísica de Aristóteles. E não haverá motor imóvel nenhum capaz de me mover. Meu repouso será eterno.

Ao mesmo tempo, também me perguntava: será que não posso mesmo entrar duas vezes no mesmo rio, como diz Heráclito, já que, no momento seguinte, nem o rio nem eu mesma somos mais os mesmos? "aos que entram nos mesmos rios outras e outras águas afluem [...] (frag. 12); "nós entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos" (frag.49). 

Será que as coisas são e não podem deixar de ser, ou não são e jamais poderão ser, como afirmou Parmênides (frag. 2,3)? 

Ora ora, Epicuro, tem certeza de que a felicidade identifica-se com o prazer e de que é possível alcançá-la pelos meios que você indica? Heloooo Sêneca, seria mesmo desejável a beata vita proposta por você (na esteira do estoicismo)? Diga-me, caro Protágoras, serei mesmo a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são? Ou devo ouvir os céticos e suspender todos  os meus juízos?

Oh, god, que mundo é esse? Quem sou eu (se é que sou)? De onde venho? Para onde vou? Por que isso e não aquilo? E por que não o nada?




quarta-feira, novembro 21, 2012

Agir bem para bem viver




“... a prudência é o princípio e o supremo bem, 
razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; 
é dela que originaram todas as demais virtudes; 
é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, 
e que não existe prudência beleza e justiça sem felicidade” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 45).

Platão, ao buscar definir a essência da justiça, considerou-a o mais belo de todos os bens. Ele afirma que a justiça deve ser amada tanto por si mesma quanto por suas consequências. E como virtude, par excellence, deve ser amada também por “aquele que quer ser plenamente feliz” (República II).

Aristóteles, por sua vez, ao procurar “o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação” diz, na Ética a Nicômaco, que “quase todas as pessoas estão de acordo quanto ao fato de que esse bem mais alto é a felicidade", pois “identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz”; mas adverte que eles diferem “quanto ao que seja a felicidade” (EN I 4: 1095a 20).

Se quisermos saltar séculos à frente, para o período humanista da filosofia moderna, podemos encontrar, nos Ensaios de Montaigne, afirmações semelhantes: "A meu ver, a felicidade do homem consiste em bem viver" (Essays II) e “não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente” (Essays III).

E se remontarmos mais uma vez à antiguidade, encontraremos na Carta sobre a felicidade de Epicuro, além da epígrafe acima, a afirmação segundo a qual “as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 47).

Sêneca, dois séculos após Epicuro, por seu turno, declara que “a vida feliz apoia-se, estável e imutavelmente, sobre a retidão e certeza do juízo”, e que é “feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida” (Sêneca. A Vida Feliz, p. 30-31).

Em sua apresentação à obra de Sêneca, Diderot observa que, de acordo com o estoico, “para alcançar a felicidade é necessária a liberdade: a felicidade não é para quem possui outros senhores além do próprio dever. Mas [pergunta Diderot], não será o dever um patrão arrogante? E na condição de serviência que importa a qual senhor se sirva? Importa demasiado: o dever é um senhor do qual não se pode libertar sob pena de tornar-se infeliz” (Sêneca. A Vida Feliz, introdução, p. 12).