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domingo, julho 25, 2021

Le son et le sens


Nada foi perdido
nada jamais tido
entre a pedra e a perda
entre o vidro e o vivido
entre a onda e a sombra
entre o ritmo e o rito
entre o sonho e o sol
não ficou vestígio.

Só o som ficou
entre a letra e o espírito
no instante dito
no ar sumido
e este estar estrito
e este silêncio escrito — 

tudo foi sentido.

[Rodrigo Garcia Lopes | O Enigma das Ondas | Iluminuras | 2000]


photo: Alper Durukan

quarta-feira, março 10, 2021

Pandora


Pânico, pandemia, pandemônio: 
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.

Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.

Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.

É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.

***
Rodrigo Garcia Lopes
O Enigma das Ondas [Iluminuras | 2020]

***
[Imagem | Pandora | 1885 | Walter Crane | 1845-1915]



quinta-feira, agosto 15, 2019

Minuto




lá vem você
se passando por vento
como se ninguém te visse,

lá vem você dublando pensamento
como uma praia que se sentisse,

pra perto do riso, do risco, do início
das ondas, das dunas do espanto,

lá onde o calar fala mais alto
e onde o momento comemora
com um minuto de silêncio.



[Rodrigo Garcia Lopes | In: Visibilia | 1996 | Poemas Escolhidos | Centro Cultural São Paulo]

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(Photo: © Tetsuro Higashi)