Ele é o chefe. A divisão está lotada. Fila em todos os setores. Ella passa. O chefe? Arregala os olhos. Se atrapalha na entrevista sobre a greve. Ella percebe o impacto que sua passagem causa nele. E resolve se servir disso. Tudo é urgente. A burocracia é de ranger os dentes. E as soluções? Todas morosas. A divisão trabalha com poucos funcionários. Ella tem pressa. Respira fundo, cresce o corpo, engrandece o espírito, e se exibe um pouco passando pra cá e pra lá como quem procura a pessoa certa para resolver seu problema. Ele, perturbado, dá a maior bandeira. Não consegue tirar os olhos dela. Ella passa, então, para o outro lado. Exibe-se um pouco mais. O chefe, todo atordoado, termina a entrevista, entra em sua sala, e manda um funcionário chamá-la. Tudo está implícito. Ambos sabem que não vai rolar nada. É suficiente que ele a olhe e que ela entenda o olhar dele. E, para ele, é suficiente que ela permita ser olhada com aquele olhar de quem diz que a quer, ainda que saiba que nunca vai tê-la. Ella é educada. Ele? Prestativo. Acompanha-a por todos os setores necessários, facilitando as coisas. Tudo se resolve rapidamente com a maior discrição e boa vontade. Ella estende a mão, agradece-o de modo cortês e, com um reservado sorrisinho no rosto, sai toda satisfeita e desenvolta. C'est tout.
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domingo, setembro 20, 2015
segunda-feira, maio 11, 2015
No touch
Ella escrevia para tentar sobrepujar toda aquela dor, ao ter que admitir, a contragosto, que ambos não poderiam mais chutar a bolinha do gato, classificar livros nas estantes, fazer panquecas e amor, ou sexo nas escadarias; tampouco poderiam ouvir o confortável silêncio que se seguia ao toque de seus olhares e sorrisos refrigerantes. Com a boca amarga, e um nó na garganta, Ella vaticinava que, diante das coisas que ouvira e de tudo que acontecera, ambos já não poderiam mais se tocar de forma alguma. Num brusco movimento de saída, engolindo seco, Ella disse: ok, não vou mais perturbá-lo com a minha presença. E sem dizer mais nada, pensou: perturbarei sim, mas com a minha falta, muita falta...
[by Daniel Murtagh - Mourning]
sexta-feira, outubro 24, 2014
Question mark
Otto havia saído e batido a porta. Ella pegou um cigarro, sentou-se ao chão da sala e ali, paralisada, permaneceu. Não sentia as lágrimas molharem seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Não sentia as pernas adormecerem. Sabia apenas que não conseguia se mover. Ella estava ali e não estava. O telefone tocava como um ruído ao longe. Ella só sentia a ardência do cigarro em sua garganta. O choro, feito convulsão, não veio naquele momento, era somente uma água salgada e silenciosa que, por ausência de força, não conseguia enxugar. O pensamento ficou completamente borrado. De repente, sentiu uma dor tão violenta como se nunca mais pudesse sair daquela posição. Faltara-lhe o grito, o desespero, a fúria. A dor provocara-lhe a contenção de qualquer movimento voluntário. As lágrimas continuavam a escorrer e a grudar por todo seu corpo. Quando, finalmente, conseguiu se perceber no tempo e no espaço, Ella resolveu sair. No carro, enxergava o trânsito como por detrás de um fundo de garrafa. Tudo tinha ficado inaudível. À noite, depois de um esforço imenso, o pensamento de Ella começou, lentamente, a se organizar. Repassou cada movimento de Otto. Ouviu mil vezes cada palavra que havia sido dita. Reviu todos os olhares que ele lhe havia lançado. Tentou, friamente, reconstruir aqueles dias ─ o que lhe custou cavar e revirar ainda mais o buraco aberto em seu peito. Cada gesto do qual Ella se lembrava, agitava-lhe o entendimento que, por sua vez, lutava desesperado contra toda tentativa de compreensão. Nela, só havia incompreensão. E um enorme ponto de interrogação.
segunda-feira, agosto 25, 2014
Num trago
Ella entra no bar e fica ali a refestelar-se pelo balcão. Otto chega e, inadvertidamente, se aproxima. Ella não se mexe. Acende um cigarro, traga-o com força e, resoluta, permanece em silêncio, sem ao menos olhar para Otto. Otto também não fala nada. Apenas fica ali, parado, a fitá-la fixamente. A atmosfera se adensa. O silêncio pesa. E se estende...
Passados alguns minutos, como se fossem horas, Ella irrompe:
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
E tchau!
domingo, agosto 10, 2014
Os restos de Ella
Há tempos Ella se sentia partida ao meio. De um lado, estava esvaziada, como se dentro dela houvesse apenas um silêncio devastador. De outro, sentia-se um bicho enjaulado a querer vomitar tudo que pensava e sentia – uma massa gordurosa que estava a lhe corroer. Não era um silêncio escolhido. Era simplesmente o que lhe restava. Estava anestesiada. Nada podia fazer, a não ser recolher-se em seu próprio sofrimento.
quarta-feira, julho 23, 2014
Nas garras de um grito
Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.
Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.
Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.
Dentro de mim mora um grito.
De noite, ele sai com suas garras, à caça
de algo para amar!
Resolveu, então, tomar um banho gelado.
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.
terça-feira, junho 03, 2014
Observações triviais
Ella saiu pra almoçar às 12:45. Pelo brilho do sol, supôs que a temperatura estivesse mais alta. Se enganou tremendamente: o sol até que estava quente, porém, o vento... ai... o vento estava gélido e cortante! Ella se arrependeu de não ter se agasalhado até os dentes. Pensou que talvez fosse o caso de voltar ao hotel pra se agasalhar melhor. Mas, enquanto pensava, hesitou, pois achava que havia demorado tanto pra sair que, se voltasse, iria, comme d'habitude, se enrolar mais um pouco pra sair de novo. Acabaria perdendo o horário do almoço, a fome iria passar e isso certamente faria com que Ella passasse o resto do dia a enganar a fome quando esta retornasse ao seu estômago de passarinho.
Pensando assim (e já encantada pelo cenário das ruas curitibanas), seguiu em frente. Ao mesmo tempo em que blasfemava contra o vento frio, aprazia-se por ter tido a prudência de sair de luvas, cachecol, e uma echarpe de lãzinha na mochila. Tais acessórios ajudaram-na a suportar o frio, mas de modo algum a deixaram confortável. Ella procurou desviar sua atenção daquele frio impositivo em direção às pessoas que circulavam pelas ruas e avenidas, às belas praças, monumentos, construções, lojas e cafés (cenários que traziam a ela as mais diversas lembranças de um passado distante, mas memorável).
Ella andava sem direção definida, porém, a fim de encontrar um lugar agradável pra almoçar. Passeou pra cá e pra lá, nostalgicamente, até que encontrou um restaurantezinho com aparência simpática e sedutora. Entrou, apreciou o ambiente, sentou-se, e lá permaneceu ─ no Arrumadinho da Marechal Deodoro ─ a esperar seu virado à paulista, enquanto rascunhava suas observações triviais em seu moleskine de capa preta.
segunda-feira, junho 02, 2014
Vida ordinária
Ella observa, enquanto toma seu café, a encruzilhada da Cruz Machado com suas velhas esquinas e seus transeuntes. Táxis, carros de passeio, utilitários e os mais diversos tipos de veículos automotores se entrecruzam. Pessoas comuns transitam pra cá e pra lá: passos compassados, mecânicos e regulares: uns mais apressados, outros menos ─ uma perna seguindo-se à outra, como numa engrenagem.
Os olhos de Ella percorrem vagarosamente todos os movimentos da rua, enquanto desgosta de seu café morno. Ella pensa: que vida mais ordinária, povoada de pessoas ordinárias, com seus rostos, roupas e sapatos ordinários!
Apesar da baixa temperatura de junho (e por que não dizer temperatura ordinária?), o céu curitibano está aberto e o sol reina majestaticamente. Porém, está frio demais para Ella e seu gosto quente. Suas mãos estão geladas. O coração apertado. E em meio à observação e burburinho ordinários, Ella aprecia o borbulhar de seu interno mundo extraordinário.
Os olhos de Ella percorrem vagarosamente todos os movimentos da rua, enquanto desgosta de seu café morno. Ella pensa: que vida mais ordinária, povoada de pessoas ordinárias, com seus rostos, roupas e sapatos ordinários!
Apesar da baixa temperatura de junho (e por que não dizer temperatura ordinária?), o céu curitibano está aberto e o sol reina majestaticamente. Porém, está frio demais para Ella e seu gosto quente. Suas mãos estão geladas. O coração apertado. E em meio à observação e burburinho ordinários, Ella aprecia o borbulhar de seu interno mundo extraordinário.
quinta-feira, janeiro 23, 2014
Ella na passarela
Ella chegou ao clube desfilando aquele seu charme habitual ─
uma delicada mistura de graça, beleza e vivacidade. E ainda que Ella fosse uma mulher madura, do alto de seus 38 anos, conservava seus trejeitos de garota marota, dada uma discreta malícia em
seu sorrisinho de lado, e uma evidente irreverência em seu corpinho
de moça. Onde Ella entrava, e por onde Ella
passava, atraía olhares de admiração. Ella movimentava-se com a graciosidade e leveza de
quem está a bailar.
Ao caminhar toda formosa pela passarela que circunda a piscina, à procura de um
lugar ao sol, Ella avistou de longe um tipo asqueroso (que ela mesma certa vez já
havia observado com involuntária repulsa). Era um tipo chulo, excessivamente chulo.
Ella
pensou em dar meia-volta, mudar o caminho, só pra não ter de passar por aquele
sujeitinho bronco, visto que o cara, comme d’habitude,
já havia lançado a distância seu olhar ordinário de macho predador. Ella
percebeu aquele tipinho "eu sou o lobo mau" lamber os beiços e teve uma espécie de náusea. Controlou-se.
E achou que, uma vez dados os primeiros passos, era melhor não hesitar e voltar. Ia
dar muito na cara que desviava daquele caminho apenas para evitá-lo. Respirou fundo,
franziu o cenho e foi em frente.
Ella sempre via aquele sujeitinho vulgar por ali,
geralmente cercado de mais uns três tipos semelhantes a ele. Já o havia visto
também algumas vezes conversando sobre negócios com seu ex-marido (que raramente
aparecia). E pelo fato de vê-los às vezes conversando, Ella se sentia constrangida a cumprimentar aquele ser tosco e estulto sempre
que não havia como evitá-lo. Cumprimentava-o sempre com apenas um gélido movimento de cabeça, justamente pra não lhe dar espaço pra dizer nada.
Ora, o que Ella poderia esperar ouvir de um sujeitinho daquele?
Ao vê-la passar, o malandro de quinta, com ar de quem quer
puxar um papinho, adiantou-se e lhe perguntou: ─ o namorado não quis vir hoje? Ella bufou
diante de tal atrevimento. Ficou puta da vida, ao ponto de não conseguir
disfarçar o constrangimento que sentiu. Com um olhar sério e furtivo, não respondeu. Deu apenas um sorrisinho amarelo e sem graça. E continuou em frente, indignada, pensando:
“não é que esse beiçudo barrigudo teve a pachola de me fazer uma pergunta
dessa?”
A sorte dele foi que Ella
era educada. O sorrisinho glacial, seguido de um ar de desprezo,
disse tudo, mas certamente Ella desejou ser suficientemente grosseira para, soltando
fogo pelas ventas, lhe perguntar:
─ Por que o senhor acha que seria minimamente razoável me
fazer uma pergunta tão invasiva? Que relevância tem para você e/ou para a
humanidade se meu namorado quis ou não quis vir hoje? Quando é que lhe dei
espaço para o senhor se dirigir a mim, assim? Ah... faça-me o favor! A você, lobo mau com cara de bobo mau,
caberia apenas me observar passar, ou, no máximo, respeitosamente me cumprimentar com um brevíssimo aceno de cabeça. E mais nada! Vá lamber esses beições pra lá
e comer sua vovozinha ─ seu babaca ordinário! ou melhor: vá lamber sabão! como
dizia a minha avó!
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