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quarta-feira, maio 30, 2018

Da imensidão do mar


Pena Líquida

Saudade,
dor de talento solitário,

sinonímia de banzo. Dor
de arrasto recolhida

ao leito das lembranças,
que nos condena à penitência

das aves sem voos,
de passos sem presença

e na esperança de retorno
do outro nos alinha.

Saudade é a pena líquida
que polimos quando

o objeto amado
de nós se distancia

em ausências sem esperas
ou em esperas sofridas.

[Marina Alice da Luz Ferreira]





Marina Alice foi, outrora, minha professora no curso de Comunicação Social da UEL (1982-1984). Coincidentemente, no dia em que minha primeira filha, Marina, nascia (1985), Marina Alice apareceu nos corredores da maternidade e presenciou-me andando e chorando um pouco as dores e o medo do parto que se aproximava. Um parto que se tornou cesária. Nunca me esqueci daquele dia, daquela cena, tampouco do abraço carinhoso de "boa hora" da Marina Alice. E jamais se esquece também do nascimento de uma filha.

Há não muito tempo soube pelo facebook (sim, o facebook é uma entidade falante) que Marina Alice escrevia poesias. Saquei melhor o porquê de ter sentido uma admiração e simpatia imediatas por ela. 

Marina tem poesia dentro dela
e mar... mar... 
mar...



O poema apareceu em minha timeline dedicado aos amigos queridos com as seguintes palavras:

"uma pausa do caos externo para pautar o que me vai na alma." 


sábado, março 10, 2018

Deslumbramento


É amor? Não sei. Esta intranquilidade,
Este gozo na dor, esta alegria
Triste que vem de manso e que me invade
A alma, enchendo-a e tornando-a mais vazia;

Este cansaço extremo, esta saudade
De uma cousa que falta à vida... O dia
Sem sol, as noites ermas, a ansiedade
Que exalta e a solidão que anestesia,

É amor. Egoísmo de sofrer sozinho,
De as penas esconder do humano açoite,
De transformar as pedras do caminho

Em carícias sutis para colhê-las
E andar como um sonâmbulo, na noite,
Escancarando os olhos às estrelas...

[ © Olegário Mariano |  In: Canto da minha terra ]


terça-feira, setembro 05, 2017

Peito Vazio


Havia uma propaganda no Spotfy que eu achava uma graça. A cena se dava pela locução de um rapaz que se mostrava sem jeito, titubeante, com o pensamento e a fala entrecortados. Ele perdia as palavras, mostrava-se inseguro, perturbado, afogando-se em suas próprias emoções.

Ele dizia:

- Olá... éee.... 
- bem, eu só queria dizer... ahhh... 
- sabe...
- eu só estava imaginando se...
- olha... deixa eu te dizer...

Daí entrava uma moça (a locutora) com voz de quem está de bem com a vida, leve, segura, insinuante (quase podemos vê-la com um sorrisinho nos lábios)... e perguntava, assim, na lata!!!

- Ficou sem palavras???

(seguia-se um rápido silêncio)

(e ela mesma, com um tom bem humorado e sugestivo, respondia:)

- Compartilhe uma música!

(e play)...

Sempre que eu ouvia essa propaganda me dava vontade de compartilhar uma música, associada a certas cenas, lembranças e saudades... Eu teria muitas. Hoje escolhi essa: Peito Vazio, do Cartola e Elton Medeiros, na voz de Roberta Sá e Ney Matogrosso, tocada pelo Trio Madeira Brasil. 

Aumente o som, respire fundo... and play !!!







quarta-feira, maio 24, 2017

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste.


Carlos Drummond de Andrade | 'A Um Ausente' | In: Farewell | Poesia Completa | Editora Nova Aguilar | Rio de Janeiro | 2007



Qualquer ser humano que conhece o amor e a dor da perda de um amor, ou de um amigo, sentir-se-ia, creio eu, profundamente tocado por esse belíssimo e penetrante poema. Mas nem todos, talvez, procurassem saber a trágica história que ele conta. A quem interessar possa, deixo aqui o link que a conta, por Marcelo Bortoloti:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1659927-a-homossexualidade-na-vida-e-na-obra-de-carlos-drummond-de-andrade.shtml


terça-feira, maio 09, 2017

Ausência


"Antes, tu estavas. Agora, tu não estás mais. O agora é um agora sem ti. Lá fora, tão mansamente cai a chuva. Mas é uma chuva sem ti, e não importa quão mansamente ela caia, não importa nem mesmo que seja ela ou não a chuva, porque ela, assim como todas as outras coisas, são coisas sem ti. E eu mesmo – eu respiro sem ti, meu coração pulsa sem ti em algum lugar fora do lugar do coração, eu me olho no espelho e verifico que sou uma face sem ti, meus olhos sem ti são dois buracos ocos sem serventia, já que a única serventia que eles tinham era olhar-te e agora, sem ti, eles miram estupidamente o vazio. Não me encontro alegre nem triste. Alegria e tristeza eram somente possíveis por ti, ou em teu louvor. Agora que te foste, não há razão alguma pela qual possa eu alegrar-me ou entristecer-me. Há apenas esse apático e despovoado e monótono agora sem ti e, dentro dele, lágrimas que verto sem razão."


[ Ygor Raduy | Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes ]




art by Mantha Tsialiou 

terça-feira, maio 31, 2016

Saudade




Magoa-me a saudade do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda em mim
os animais que atormentam o meu sono.

[out/1979]

Mia Couto
in: Raiz de Orvalho e Outros Poemas


quarta-feira, janeiro 08, 2014

Ausência na presença


Costumo anotar num caderninho algumas ideias, frases, passagens e expressões literárias dos livros que leio. É como se elas me lessem e, ao me lerem, dizem algo mais. Quando li A Identidade de Milan Kundera fiz isso. Anotações que me fizeram pensar e repensar. Eis uma... e apenas uma delas:

Chantal se pergunta:

“Saudade? Como podia sentir saudade se ele estava na frente dela? Como se pode sofrer com a ausência de alguém que está presente? (Jean-Marc saberia responder: pode-se sofrer de saudade na presença do amado se se entrevê um futuro em que o amado não está mais presente; se a morte do amado já está, então, invisivelmente presente)” (p.39).

Algumas vezes me fiz essa mesma pergunta, certamente porque me vi diante dessa situação: sofrendo a ausência de alguém que estava presente, bem ali, na minha frente. 

A resposta de Jean-Marc me parece boa. Estou ali, na presença do meu amado, mas, ao olhar para o futuro, não o vejo mais presente em minha vida. Vejo apenas a ausência dele  um vazio, uma dor. Sinto saudades, sofro e lamento sua ausência presente. 

Ops! como assim? 

Eu diria que se pode sofrer a ausência de alguém que está presente quando aquela pessoa já não se apresenta mais como aquela que você conheceu, amou ou ama ainda. Ela mudou, não é mais a mesma, malgrado seja ela mesma quem está bem ali na sua frente. Aquela ficou no passado. Hoje você a olha e não a vê. Você está com ela, mas se sente só. Você ama quem já não existe mais ─ nem aqui, nem agora, nem lá ou acolá.

(Kundera, Milan. A Identidade. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Cia das Letras, 1998).

[Art | Os Amantes |1928  de René Magritte]

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Sem mais quê nem pra quê

The Mill | Van Rijn Rembrandt |1606-1669 | óleo sobre tela

Outro dia, quando trabalhava na tese, dei de cara com aquelas dúvidas cruéis acerca de como usar um termo ou como se escreve uma palavra. Era um simples que! Mas tive dúvidas se naquele contexto ele deveria levar acento ou não. Mais do que depressa me dirigi a um de meus dicionários. Abri meu Aurélio Eletrônico Século XXI:

E dá-lhe que daqui, dá-lhe que de lá: pronome interrogativo, pronome exclamativo, pronome relativo, advérbio, preposição, conjunção coordenada aditiva, alternativa, subordinativa, comparativa, conjunção subordinativa integrante, concessiva, causal, final... ufa! No final, partícula expletiva: expeli um PQP em alto e bom som de tanto que!

Mas o mais interessante disso tudo foi clicar num daqueles livrinhos do dicionário que mostram o uso desse monte de que, e ler ali nas conjunções coordenativas aditivas o seguinte pequeníssimo trecho do livro Despedidas do poeta português António Pereira Nobre (1867 -1900).

Passo os dias metido em meu moinho,
E mói que mói saudades e tristezas...

Tudo a ver... !