Mostrando postagens com marcador mulheres. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador mulheres. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, novembro 20, 2019

Memória





Vozes-Mulheres 

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
    

[Conceição Evaristo | Poemas de recordação e outros movimentos | p. 10-11]




Esta é a Nayara. Minha aluna da UENP em duas disciplinas: história da filosofia moderna e tópicos especiais de filosofia moral. Foi ela quem leu, sob absoluto silêncio, este poema fodástico na abertura da XII Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Mulheres na Filosofia, antes mesmo de um 'boa noite a todas / boa noite a todos'. Há dias pensei em publicá-lo. Achei que hoje, dia da Consciência Negra, por razões óbvias, seria um bom dia.


quinta-feira, novembro 07, 2019

Zeitgeist : no espírito do tempo




Este é o cartaz da XII Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Mulheres na Filosofia; e IX Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP. Um evento realizado nesta semana, entre os dias 04 e 07 de Novembro/2019, e coordenado por mim. Confesso que não foi fácil, desde a sua concepção até a sua realização final. 

Quando assumi coordenar essa Jornada, em torno de abril/maio/2019, ainda sem a escolha de um tema, jamais imaginei que ele viesse a se configurar precisamente neste. Passei algumas semanas pensando em alguns assuntos e também quais temas poderiam ser interessantes, ainda que eles não contemplassem propriamente meus horizontes de estudos. Propus em torno de sete temas: Filosofia e Literatura; Arte e Filosofia; Filosofia Ensaística; Filosofia Política; Filosofia, Misticismo, Superstição e Fanatismo; Filosofia e Senso Comum; Ceticismo; Mulheres na Filosofia.

A ideia de incluir o tema "Mulheres na Filosofia" me veio à mente quando me lembrei da formação  do GT Filosofia e Gênero e, posteriormente, passei a notar a série "Conheça Filósofas" promovida pela Associação Nacional de Pós-Gradução em Filosofia - ANPOF. Achei que o tema estava, digamos assim, na ordem do dia. Mas jamais imaginei que o colegiado, composto atualmente por nove homens e uma mulher (euzinha aqui), votasse nele. 

De imediato, me vi em maus lençóis, uma vez que em 20 anos de academia estudei apenas o pensamento de filósofos homens. Curioso é que nunca havia estranhado propriamente tal fato. Tomava a hegemonia masculina dos cânones filosóficos e agendas de pesquisas nesse assunto como algo natural. Afora as mulheres que li (fora da academia), mais da literatura do que propriamente da filosofia, não conhecia bulhufas desse tema, nem ninguém que o trabalhasse pontualmente. Algo nada difícil de descobrir, dadas as ferramentas de pesquisa disponíveis na atualidade. 

A princípio, mal percebi que o assunto nos conduz, num certo sentido de modo indissociável, ao tópico do feminismo e às discussões sobre gênero e violência contra a mulher. Definitivamente, tal tema passava ao longe de meus horizontes de estudos, embora estivesse sempre a me rondar. Comecei a pesquisar, num primeiro momento, com uma certa resistência. Jamais havia me envolvido efetivamente com o feminismo, suas lutas e desdobramentos. Tampouco me assumia, declaradamente, como feminista. Porém, passei a perceber, de uns tempos pra cá, e, definitivamente, após me envolver com esse evento, que, na verdade, sempre fui feminista ─ feminista na vida, dada a maneira como a levei, e dadas algumas posturas determinantes que assumi e certas atitudes que tomei nesse meu mais de meio século de existência.

Foram meses gestando uma proposta, uma imagem e um texto de abertura que pudesse representá-la. A imagem já se encontra acima (arte realizada pelo Paulo Guerreiro da Concebe Agência de Publicidade). O texto, lido na abertura, após a leitura de um poema de Conceição Evaristo (depois eu digo qual e publico), segue abaixo:



XII JORNADA DE DEBATES: ENCONTROS COM A FILOSOFIA
MULHERES NA FILOSOFIA
IX ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA EM FILOSOFIA DA UENP


Na contemporaneidade, a mulher na filosofia assume uma posição sem dúvida bastante relevante. Isso se dá, principalmente, em virtude do momento histórico atual que, por sua vez, exige a inserção da mulher como conceito filosófico em face aos diversos sistemas e perspectivas de pensamento. Nesse horizonte, torna-se urgente pensar e ressignificar outros conceitos que, há algum tempo, encontram-se em crise: política, diversidade, minorias, lugar de fala, igualdade de gênero, feminismo, liberdade, violência, resistência, modos de avaliação e valoração de conhecimentos, práticas, culturas, etc. Contudo, é sabido que a presença das mulheres na filosofia (assim como em outras áreas do saber) foi, em grande parte, apagada ao longo de toda a tradição filosófica. Quer dizer, a perspectiva filosófica da mulher não se constitui de modo consistente como parte dessa tradição. Mas não é verdade que elas não existiram. A aparente ausência das Mulheres na Filosofia revela, em larga medida, desconhecimento da própria historiografia da filosofia: Hipátia de Alexandria, Aspásia, Safo de Lesbos, Hildegarda de Bingen, Lou Andreas Salomé, Susan Sontag, Graciela Hierro, Angela Davis, Émile Du Châtelet, Edith Stein, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Margaret Cavendish, Damaris Cudworth, Marie de Gournay, Christine de Pizan, Elizabeth de Bohemia, Judith Butler, Mary Astell, Anne Conway, Hannah Arendt (e tantas outras que não foram aqui mencionadas) figuram nesse universo filosófico até então muito pouco explorado e de evidente supremacia masculina. Ora, não cabe mais apontarmos esse apagamento das mulheres filósofas como ausência de Mulheres na Filosofia. É preciso, antes, questioná-lo, tendo em vista a construção histórica do pensamento e os diversos motivos pelos quais essas vozes estiveram relegadas ao silêncio. De outro lado, a crise das Humanidades aponta para um levante extremamente interessante de escrituras – filosóficas e literárias – nas quais as vozes das mulheres ressoam em caráter investigativo e reflexivo acerca de problemas e questões não apenas filosóficas, mas também políticas, econômicas, sociais e culturais. Em vista disso, uma Jornada de Debates em torno desse tema vem ao encontro dessas vozes femininas que clamam por uma investigação, resgate e lugar de fala das Mulheres na Filosofia. Alinhar as diretrizes de pesquisa em filosofia da UENP com os problemas que estão sendo postos na esfera nacional de pesquisa pela ANPOF ─ e, em especial, com as demandas sociais, políticas, econômicas e culturais da atualidade ─ visa aqui, além de promover o debate, revirar os cânones filosóficos, incluindo as filósofas nas agendas de ensino, pesquisa e extensão das universidades, de modo a reconhecer e fortalecer a presença fundamental das Mulheres na Filosofia e seus possíveis desdobramentos.


***
[obs: as primeiras linhas desse texto foram traçadas, lá no início, por um aluno da filosofia, Murilo N. Nucini, que topou de cara me ajudar a pensar  num projeto para esse evento. De lá para cá, o texto deu voltas e voltas em ma tête. Cortei, acrescentei, incluí, excluí, revirei frases, termos, expressões e parágrafos, mudei a ordem, torci e retorci, encorpando-o significativamente. Um retoque semifinal (aquele olhar exterior necessário de quem não o tem já viciado depois de tantas edições e reedições) foi dado pela minha amiga Bárbara Marques, professora da UEL  uma das conferencistas que já trabalhava esse tema].


Bom, acho que posso dizer, sem receio de passar por mentirosa, que o evento foi impactante para todos aqueles que participaram. De minha parte, tomei ciência de muitas mulheres filósofas escritoras porretas e poderosas da filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea. Como tema de estudos - Mulheres na Filosofia - será um caminho sem volta, ainda que eu não vá abandonar os estudos de meus filósofos preferidos. Um novo leque se abriu. Tenho em vista, agora, novos horizontes. Minhas alunas(os) também.

Para mais informações sobre essa XII Jornada de Debates (resumos das conferências, minicurso, mesa-redonda, intervenções culturais, atividade paralela e comunicações), acesse: 



terça-feira, agosto 17, 2010

Schopenhauer, as mulheres e os homens


Caro Fernando, obrigada pelo comentário em http://mariliacortes.blogspot.com/2010/03/arte-de-lidar-com-as-mulheres.html. Minhas observações estouraram o número de caracteres no campo dos comentários, por isso, publiquei-as aqui.



Infelizmente não tenho comigo, de modo completo, essa parte da filosofia de Schopenhauer. Meus comentários foram com base nas pequenas citações contidas no pequeno excerto que citei. Sei que isso traz o inconveniente de nos levar a imprecisões e equívocos interpretativos ─ por não contemplar a profundidade e extensão da teoria que o filósofo apresenta. Schopenhauer é um grande filósofo, mas que, como qualquer outro, pode cometer alguns pecados filosóficos, talvez não por estar completamente equivocado, mas simplesmente por fazer afirmações peremptórias que, a meu ver, não passam de hipóteses mais ou menos prováveis. Digamos que a hipótese de Schopenhauer seja mais do que menos provável em alguns aspectos! Digamos que a hipótese de Schopenhauer não seja completamente implausível, mas também que não se constitui numa verdade universal e necessária, tal como ele parece pretender. Que ela seja plausível... (o que já é bastante!).

Bom, devido à falta de um material em mãos para consultar, qualquer coisa que eu diga aqui será apenas a partir do que você citou e comentou: de minha parte, então, faço aqui rasos e arriscados (talvez até suicidas) comentários ao pé da letra (sem levar muito em conta o espírito), repletos muito mais de perguntas do que de respostas.

Segundo você, Schopenhauer diz:  "o homem dificilmente alcança a maturidade da sua razão e das suas capacidades intelectuais antes dos vinte e oito anos de idade; a mulher, aos dezoito. Trata-se também de uma lógica: uma lógica bem medida. Por isso, as mulheres permanecem crianças ao longo de toda a sua vida, vendo apenas o que está próximo, prendendo-se ao presente, tomando a aparência das coisas pelas coisas em si e dando prioridade a ninharias em detrimento de assuntos mais importantes:"

Pergunto: Quer dizer que as mulheres amadurecem (quanto à razão e suas capacidades intelectuais) aos 18 anos e, ao mesmo tempo, permanecem crianças ao longo de toda a sua vida, e que por isso essas faculdades são nelas mais falhas e imperfeitas? Quer dizer que quanto à razão e suas capacidades intelectuais as mulheres “estacionam” aos 18 anos? Mulheres amadurecem (de que modo: emocionalmente apenas?) permanecendo imaturas intelectualmente? Como assim? Não posso deixar de pensar que alguma inconsistência permeia esse raciocínio, ainda que, talvez, eu não possa prontamente indicá-la.

 Você diz que o autor justifica que os homens têm intelectos superiores aos das mulheres no parágrafo "Maturidade - masculina e feminina" (p. 16) afirmando que "quanto mais nobre e perfeita é uma coisa, mais tarde e mais lentamente ela atinge a maturidade.” Ora, com base em que Schopenhauer afirma isso? O que nos garante que as coisas são de fato assim? Talvez Schopenhauer tenha uma bom fundamento para dar suporte a isso: mas qual seria exatamente? Não sei como (ao menos a partir do século 20) é possível alguém dizer que tem conseguido constatar isso de forma empírica, tal como você disse.

Você conclui: "portanto, segundo o autor, os homens apreendem a inteligência das mães (tem lógica porque na maioria das sociedades de todos os tempos os filhos passam mais tempo com as mães do que com os pais), mas esta inteligência não nasce e fica por aí, esta inteligência vai evoluindo ao longo dos anos como está evidenciado no parágrafo que citei, chegando a um ponto que supera a inteligência das mães".

Quer dizer que os filhos, ao passarem mais tempo com as mães (“estacionadas”, sempre crianças, infantis e incapazes de desenvolver seus intelectos) desenvolvem suas inteligências naturalmente (herdadas das mães, segundo Schopenhauer) num ritmo 10 anos mais lento do que os de suas mães, e que, por isso, as superam em inteligência? Ele fala em herança ou desenvolvimento de inteligência? É essa inteligência herança genética ou, digamos assim, adquirida e desenvolvida pela educação? Não sei, mas parece haver algum parafuso solto aí.

Tudo bem que temos nos homens, como você bem assinala, os maiores exemplos de grandes feitos em várias áreas por toda a história. Mas não poderíamos atribuir este fato também a várias outras causas e circunstâncias? Todo mundo sabe que as mulheres por milênios foram subjugadas à força masculina (inegavelmente maior). Não bastaria que as coisas fossem assim para impedi-las de desenvolverem seus talentos e/ou capacidades intelectuais? Em alguns períodos da história, por exemplo, as mulheres nem mesmo eram consideradas cidadãs, e estavam muito mais próximas do status dos escravos do que de qualquer acesso às importantes áreas do conhecimento, ou de qualquer caminho que pudesse levá-las a desenvolver seus “supostos” talentos (fosse como escritora, cientista, política, filósofa ou coisa que o valha). E será que era por que elas não tinham inteligência e talento para mudar isso, ou porque estavam constrangidas pela necessidade (de um lado pela própria natureza ─ mais sensível, frágil e delicada ─ e, de outro, pelo subjugo da força masculina)? A superioridade masculina nesse aspecto (da força física) é mesmo superior!



Todo mundo sabe também que às mulheres sempre foram delegados os cuidados com os filhos e atividades domésticas em geral. Não nego que a natureza, num certo sentido, moldou-as biologicamente para a gestação e cuidado com os filhos, mas penso que nem por isso deixou de conceder-lhes razão e inteligência (em muitos casos, maior do que em muitos homens) para mudar aquilo que é possível nessa história. E penso que isso sim pode, agora, ser constatado de forma empírica. Veja nos últimos tempos a quantidade de mulheres que ascenderam ao poder político; a quantidade de mulheres superando muitos homens nas atividades econômicas, administrativas, científicas, acadêmicas, etc, e ainda dando conta dos filhos e atividades domésticas. É claro que alguém pode argumentar que a proporção é muito pequena. Mas o que nos garante que as mulheres não possam vir a superar, numa proporção cada vez maior, os homens em suas aptidões intelectuais? Será mesmo que os homens permanecerão sempre realizando maiores feitos que as mulheres, em todos esses campos do conhecimento, nessa proporção tão desmedida? Tenho dúvidas de que isso esteja determinado genética e biologicamente ad infinitum por uma diferença em nossas constituições intelectuais.

Você diz: 'É de salientar que este autor estava ligado ao mundo das artes, aliás, ele próprio gostava de tocar flauta, e ele também faz muita referência às mulheres nas suas actividades': "Com toda a razão, poder-se-ia chamar o sexo feminino de não-estético. Nem para a música, nem para a poesia, tampouco para as artes plásticas as mulheres têm, real e verdadeiramente, talento e sensibilidade... (p. 63). Assim, como a lula, também a mulher gosta de se esconder na dissimulação e de nadar na mentira’, e de facto, o teatro vive da mentira, já que o que se representa não é o que está a acontecer na realidade”.

O que dizer, então, da quantidade de homens artistas (famosos e premiadíssimos) de teatro e televisão? Seriam eles lulas que gostam de se esconder na dissimulação e nadar na mentira? Ou eles seriam, por conta desses seus talentos, efeminados? Por acaso a poesia, a pintura e as artes plásticas tratam da realidade? Elas também não são representações? Ou os talentosos e sensíveis homens que produziram verdadeiras obras primas ao longo de todos esses séculos nessas áreas retrataram a realidade e reproduziram a própria coisa em si? Onde está a lógica bem medida em tudo isso?

Bom, embora eu também tenha Schopenhauer em alta conta, ao menos em relação à parte que melhor conheço (e que no fundo é pouca) de sua filosofia, acho que a argumentação dele nesse assunto, se não for completamente equivocada (e olha que não acho que seja completamente), se mostra bastante arriscada, parcial, preconceituosa e dogmática, ao menos na maneira pela qual ele as apresenta. Talvez fosse o caso de ele apenas cultivar um pouco de papas na língua. Não tenho a menor inclinação para achar que as mulheres são superiores ou exatamente iguais aos homens (tampouco inferiores, exceto em força física), mas também não posso deixar de observar toda essa falta de compostura verbal. Que ele é um grande filósofo, ah... isso ele é, mas que fala umas besteiras, carrega nas tintas e é rabugento, ah... isso ele também faz e é! Não dá pra ouvir tudo isso e ficar quieta, ainda que ele tenha bons argumentos para dar apoio às suas melhores teses (que certamente não são as sobre as mulheres).

[imagem 2 | Francisco de Zurbarán | Hércules destrói o leão de Nemeia |1634 ]

quinta-feira, março 25, 2010

A arte de lidar com as mulheres



Quem lê o título desse pequeno tratado (A arte de lidar com as mulheres), “um florilégio de sentenças”, imagina que vai encontrar ali, no mínimo, percepções agudas e excelentes dicas de como lidar com as mulheres (já que se propõe a revelar uma arte).

De fato, para alguém falar com propriedade sobre as mulheres é necessário ter não só perspicácia como também um conhecimento elevado e profundo de sua natureza: é preciso saber como elas pensam, sentem e agem, não só em geral, mas também em determinadas circunstâncias.

Obviamente o autor, ao expressar ali suas opiniões sobre as mulheres, julgou-se bastante conhecedor delas. Porém, embora não se possa dizer que ele desconhecia totalmente as mulheres, na verdade, nesse tratado, ele atirou em seu próprio pé, pois não encontramos, salvo em algumas passagens, muita coisa sensata. Ao contrário, damos de cara com um festival de bobagens ditas pelo (nada mais nada menos) grande e admirável filósofo Schopenhauer (e isso não é nenhuma ironia; ele é, de fato, grande e admirável, mas até mesmo os grandes filósofos podem dizer e disseram algumas asneiras).

Franco Volpi, autor da introdução e notas da edição da Martins Fontes, 2004, adverte-nos de que “ao ler-se o presente tratado, devem ser levados em conta os condicionamentos e as circunstâncias, ou seja, o pesado fardo da tradição machista e os atávicos preconceitos que calcam a pena de Schopenhauer” (XIV) ─ apenas um entre tantos filósofos falidos no amor.

Ora, o que se passou na cabeça de Schopenhauer ao escrever sobre as mulheres não expressa todo o seu pensamento ou toda a sua filosofia que, por mais que traga algumas ideias indefensáveis, é de inestimável valor e matéria para muitas teses e discussões interessantes. No fundo, eu o tenho em alta conta. Tanto que já lhe rendi aqui mesmo (neste blog) muitos elogios e escrevi também um TCC sobre o tema da liberdade da vontade em Schopenhauer. Mas isso não me impede de exclamar:

my god, há aqui tantas bobagens (e carregadas nas tintas) que ao lê-las dá vontade de sair berrando!!! (lembrei-me de alguém dizendo isso diante de um absurdo patente).

Ainda segundo Volpi, não se pode também desconsiderar “a difícil relação que Schopenhauer teve com a figura materna”, relação esta que provavelmente causou a “exacerbada misoginia e indefensável, quase caricatural, imagem da mulher que, em sua obra, Schopenhauer pretendeu fundar em bases metafísicas” (XVII-XVIII)

Desculpas e justificativas da inépcia schopenhaueriana à parte, e a despeito de alguém que possa argumentar que todo autor paga, de um certo modo, um certo tributo a seu tempo, vamos ao que interessa, ou seja, às proposições ricas de “aspectos hilariantes, aptas ─ como um clássico hors d’âge ─ a divertir qualquer um” (XXIX). Talvez alguém dissesse mais: aptas também a indignar as mulheres (e alguns homens sensíveis e inteligentes). Mas, no fundo, não dá para levar muita coisa a sério.

Eis, então, algumas “pérolas” schopenhauerianas:


“As mulheres são o sexus sequior, o sexo que sob qualquer ponto de vista é o inferior, o segundo sexo, e em relação a cuja fraqueza deve-se, por conseguinte, ter consideração. Contudo, demonstrar-lhes veneração é extremamente ridículo e nos diminui aos olhos delas” (p. 4).

Ora, talvez alguém possa defender que aqui nem tudo é bobagem. Como bem me lembrou o Aguinaldo, Schopenhauer teve algumas intuições básicas em relação às diferenças biológicas entre as mulheres e os homens dignas de consideração. Porém, dear Aguinaldo, nem por isso elas são sob qualquer ponto de vista inferiores. Talvez pudéssemos dizer que em relação à força física ou a determinadas aptidões elas sejam, respectivamente, mais fracas e menos habilidosas, do mesmo modo que os homens também o são em relação a outras qualidades e aspectos.

“A mulher no Ocidente, particularmente aquela que é chamada de “dama”, encontra-se em uma falsa posição, pois a mulher, que os antigos com razão chamavam de sexus sequior, não merece de forma alguma ser o objeto de nosso respeito e veneração, trazer a cabeça mais erguida que a do homem e ter os mesmos direitos que ele. Vemos perfeitamente as consequências dessa falsa posição. Seria, por conseguinte, muito desejável que também na Europa esse número dois do sexo humano fosse recolocado em seu lugar natural, e que se desse um fim a esse monstro chamado dama, do qual não apenas toda a Ásia se ri, mas também a Grécia e Roma teriam se rido; as consequências, no aspecto social, burguês e político, seriam incalculavelmente benéficas. [...] A verdadeira “dama” européia é uma criatura que simplesmente não deveria existir; o que deveria sim haver são donas de casa e moças que tivessem a esperança de vir a sê-lo, de forma que não seriam educadas para a arrogância, mas para a vida doméstica e a submissão” (p. 97-98).

Uau, essa é de doer! Simplesmente indefensável...

“Com toda razão, poder-se-ia chamar o sexo feminino de não-estético. Nem para a música, nem para a poesia, tampouco para as artes plásticas as mulheres têm, real e verdadeiramente, talento e sensibilidade; quando, porém, elas afetam ou simulam essas qualidades, de nada mais se trata senão de pura macaquice voltada a seu desejo de agradar” (p. 85).

“Quando as leis concederam às mulheres os mesmos direitos dos homens, elas deveriam ter lhes dado também um intelecto masculino” (p. 79).

Bom, se tivessem me oferecido um intelecto masculino eu o recusaria sem titubear.

Mas curioso é que o próprio Schopenhauer em algum lugar (não me lembro onde, sorry) afirma que os filhos herdam do pai o caráter e da mãe o intelecto (ou a inteligência). Ora, com base em que ele afirma que do pai herdamos o caráter e da mãe o intelecto?

Ademais, se os filhos herdam o intelecto ou a inteligência da mãe, como podem possuir intelectos superiores aos das mulheres? Bom, alguém poderia argumentar que o intelecto materno, ao se unir a características específicas da genética masculina, produz intelectos superiores. Bom, aí o caldo engrossa... 

“O domínio natural da mulher sobre o sexo masculino por meio da sensação de satisfação dura cerca de dezesseis anos. Aos quarenta anos, a mulher não está mais apta para a satisfação sexual” (p. 47).

Tá aí a mulherada (e a história) que o faz mentir.

Talvez ele devesse ter dito que ela não está mais apta à procriação, embora hoje em dia, apesar de não ser propriamente desejável que as mulheres resolvam procriar aos quarenta anos, não há mais nenhuma contra-indicação relevante ou impedimento natural para isso (com algumas exceções, é claro). E os fatos atestam que as mulheres ainda e depois dos quarenta estão sim aptas à satisfação sexual. Quanto a isso, Schopenhauer pisa feio na bola.

“Quando a natureza dividiu o sexo humano em duas partes, não fez o corte exatamente na metade. Em toda polaridade, a diferença entre o pólo positivo e o negativo não é puramente qualitativa, mas também quantitativa. É assim que também os antigos e os povos orientais viam as mulheres e, consequentemente, reconheciam a posição adequada a elas muito melhor do que nós, com nossa galanteria francesa fora de moda e nossa veneração despropositada às mulheres ─ a mais fina flor da estupidez germânico-cristã ─, que só serviu para torná-las arrogantes e sem consideração, fazendo às vezes lembrar os macacos sagrados de Benares, que, por terem consciência de sua santidade e inviolabilidade, se permitiam tudo e qualquer coisa” (p. 9-10).

Ai... sem comentários!

“As mulheres, como pessoas que, por causa da fraqueza de seu intelecto, são muito menos capazes do que os homens de entender, reter e tomar como norma princípios gerais, ficam em regra atrás deles em relação à virtude da justiça e, portanto, também da probidade e da retidão; por isso, a injustiça e a falsidade são seus fardos mais frequentes e a mentira seu elemento real. [...] A idéia de ver mulheres exercendo a magistratura desperta risos” (p. 93)

Ora ora Schopenhauer, eu diria, é você quem, aqui, nos desperta risos.

Ok, ok... não nos esqueçamos das intuições schopenhauerianas básicas sobre a vontade de vida e do instinto sexual no interesse da espécie. Não nos esqueçamos também de suas idéias até que sensatas sobre o casamento, a monogamia e a poligamia, mas que falta fez, na época, um exemplar do rei Juan Carlos para dizer ao menos em alguns momentos: “por qué no te callas” Schopenhauer?

Uma última observação: o título aqui não é o original de Schopenhauer, pois este ensaio, contido na obra Parerga e Paralipomena (1851), traz apenas o título Sobre as mulheres, e não A Arte de Lidar com as Mulheres.