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sexta-feira, janeiro 01, 2021

Ano Novo


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

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Ferreira Gullar | 1930-2016 | Toda Poesia | Rio de Janeiro | José Olímpio | 1997



segunda-feira, março 23, 2020

Sobre a vontade de morrer


De repente, depois de um longo sumiço, meu amigo aparece e, comme d'habitude, saca sua arte do bolso da morte e atira de lá do fundo do abismo.



eu tenho vontade de morrer
só pra ver o céu sem mim
e o cais vazio de embarcações
só pra ver o ar, a areia do ar
as coisas todas em silêncio
as brumas paradas do depois
e o vento imóvel nas estepes

eu tenho vontade de morrer
só pra ver as coisas despidas
a água de um mar indecifrável
a sombra que fecunda o chão
e a linha do horizonte sem luz

eu tenho vontade de morrer
morrer como se diz das horas
das cinzas, das brumas
das rochas que tão caladas
repousam sem mágoa
e ternamente não falam

eu tenho vontade de morrer só
sem nada sem dor sem ninguém
só pra fruir não ser não estar
e sentir fundo o esquecimento
só pra ver o trabalho das nuvens

nuvens, que são delicadas
sem alarde sem mágoa
que se desfazem sem som
quero morrer como nuvem
tentar morrer sem saudade
reservado e docemente casto
desataviado de tudo

eu tenho que morrer urgente
antes que as pessoas notem
e me importunem com ais
e me cubram de flores
e maculem a hora precisa
com o arrastar dos móveis
com "como eu era bom"
e depois me encerrem
num lugar sem nuvens

eu tenho vontade de morrer
de uma angústia no peito
da mesma que eu conheço já
eu que sei tanto de angústia
daquela boa, que tranca os canais

daquela que me dá vontade
de morrer num quarto
sem tv a cabo, sem wi-fi
sem janelas, sem serviçais
morrer como um dardo
que ao perder impulso cai
e ali permanece olvidado
sem flecha, sem alvo, sem arco
e sobretudo sem arqueiro.


                                  [ poema & pintura | ygor raduy ]

domingo, dezembro 09, 2018

Nothingness II


para onde olhas?
para o abismo
e o que vês?
o nada
assim
sem ponto
sem vírgula
sem nada


The White Sky | XIX | by Stefano Bonazzi


segunda-feira, agosto 20, 2018

Recordação


E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.



Memory | 1948 | Rene Magritte


Erinnerung

Und du wartest, erwartest das Eine,
das dein Leben unendlich vermehrt;
das Mächtige, Ungemeine,
das Erwachen der Steine,
Tiefen, dir zugekehrt.

Es dämmern im Bücherständer
die Bände in Gold und Braun;
und du denkst an durchfahrene Länder,
an Bilder, an die Gewänder
wiederverlorener Fraun.

Und da weißt du auf einmal: das war es.
Du erhebst dich, und vor dir steht
eines vergangenen Jahres
Angst und Gestalt und Gebet.


Rainer Maria Rilke | in Das Buch der Bilder | O livro das imagens | 1902 | tradução de Maria João Costa Pereira | Lisboa | Relógio D’Água | 2005

segunda-feira, maio 14, 2018

Abismo-me


"Por mágoa ou por felicidade, sinto às vezes vontade de me abismar."

[ Barthes, Roland | Fragmentos de um Discurso Amoroso | p.9 ].

Abisme-se!


[photo by Taida Celi ]


domingo, janeiro 28, 2018

Lifetime




A outra face da vida

Nada revela o trabalho,
tão sorrateiro, do tempo,
nas profundezas do ser.

Como um 'iceberg' enorme,
tudo gira, de improviso.
Muda-se o plano da vida
pra face desconhecida.

Um ângulo de luz tão diferente
incide nos mais claros pensamentos...
Quantas lacunas inobservadas,
com seus abismos desconcertantes!
O que era terra firme e segura,
é gelo móvel e flutuante.


[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Curitiba | Inventa 2014 | p.91]


quinta-feira, dezembro 28, 2017

Abismal




Meus olhos estão olhando
de muito longe, de muito longe,
das infinitas distâncias
dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria sua face.
Mas os cinco dedos pendem como um lírio murcho
ao longo do vestido.

Aqui tudo é leve, silencioso, indefinido, 
imóvel.
Não tenho mais limites.
Tornei-me fluida como o ar.
Seus olhos têm apelos magnéticos,
mas estou abismada
em profundezas infinitas.



[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Curitiba | Inventa 2014 | p.133]


quarta-feira, junho 29, 2016

Do abismo do desconsolo

Torturado, Amadeus se perguntava: - Como ela podia ter brincado com ele daquele jeito? Ter-lhe escrito que o coração dela era dele? Ter-lhe colocado no céu ao despertar-lhe as mais doces esperanças para, depois, lançá-lo ao abismo sem fundo do desconsolo? Não! Amadeus não podia compreender por que ela havia virado as costas para a paz, a serenidade, a sabedoria e o contentamento espiritual que ele lhe proporcionara por tantos anos. Não podia compreender por que ela jogava ao mar a vela que a levava longe, colocando-se, assim, à mercê das tempestades hedonistas que paralisariam sua alma aprisionada às demandas brutas de seu belo corpo. Era como se ela tivesse virado o rosto para seu próprio rosto. Sem o saber, iludida, afastando-se dele, afastava-se de si mesma, enterrando, assim, a possibilidade de sua alma receber o alimento que a mantinha governante de sua própria vida ─ a mais bela das vidas, o mais refrescante dos sopros. 

Dilacerado, Amadeus desejou que ela estivesse morta. Mas ela estava viva. Então, ele a matou em seu peito.



segunda-feira, maio 26, 2014

Voragem


"Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, donde não sei se a levantarei mais..." (Machado de Assis, Teatro, p.270)