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quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)

terça-feira, outubro 24, 2017

Instruções para o arquiteto


Há tempos transcrevi esse pequeno excerto da fala do personagem Dom Rigoberto de Mario Vargas Llosa. Deixei-o ali nos rascunhos para publicá-lo com alguns comentários. Hoje resolvi desengavetá-lo. Mas notei que estou completamente sem tempo (ou será preguiça? ou desculpa esfarrapada?) de tecer quaisquer considerações a respeito. Então, apenas observo que a passagem trata de Dom Rigoberto dizendo a seu arquiteto (que havia feito um pequeno projeto do qual ele não havia gostado) a concepção que tem acerca de um futuro lar para ele, sua esposa Lucrécia (a seus olhos uma verdadeira deusa-humana) e seu filho Fonchito (uma criança deveras singular que se pode chamar, digamos assim, de um "anjo-endemoniado"). Digo também que essa é uma das obras que já li, grifei, reli e transcrevi várias partes (por pura fruição estética meeesmo). A riqueza da trama, dos personagens, da linguagem e dos temas ali tratados e discutidos é es-tu-pe-fa-ci-en-te. Perspicácia, ironia, humor, sensualidade, inteligência e imaginação saltam aos olhos de qualquer leitor de gosto delicado (num sentido bem humeano).  No mundo de Dom Rigoberto ─ mundo no qual "seus caprichos governarão" (amei essa frase rs) ─ reinam os livros, as obras de arte, o conhecimento, a cultura, o erotismo, muitíssimo prazer e, sobretudo, Dona Lucrécia - a soberana de seus desejos. 

« La liseuse » par Jean-Jacques Henner


“Nosso mal entendido é de caráter conceitual. O senhor fez este bonito desenho de minha casa e de minha biblioteca partindo da suposição — muito difundida, lamentavelmente — de que em um lar o importante são as pessoas, em vez dos objetos. Não o critico por fazer seu esse critério, indispensável para um homem de sua profissão que não se resigne a prescindir dos clientes. Mas minha concepção de meu futuro lar é a oposta. A saber: nesse pequeno espaço construído que chamarei de meu mundo e que meus caprichos governarão, a prioridade básica caberá aos meus livros, quadros e gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses quatro milhares de volumes e a centena de telas e estampas que devem constituir a razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor subordinará a comodidade, a segurança e a conveniência dos humanos às daqueles objetos. [...] Confio em que o senhor não tome o que acaba de ler — a preponderância que concedo a quadros e livros sobre bípedes de carne e osso — por uma tirada de humor ou pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada, consequência de experiências difíceis, mas, também, muito prazerosas. Não me foi fácil chegar a uma postura que contradizia velhas tradições — vamos chamá-las de humanísticas, com um sorriso nos lábios — de filosofias e religiões antropocêntricas, para as quais é inconcebível que o ser humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja considerado menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que aparece (se lhe for mais cômodo, digamos refletido) nas imagens da arte e na literatura. Poupo-o dos detalhes desta história e o transfiro à conclusão a que cheguei e que agora proclamo sem rubor. O mundo de velhacos semoventes do qual o senhor e eu fazemos parte não é o que me interessa, o que me dá prazer e sofrimento, mas sim essa miríade de seres animados pela imaginação, pelos desejos e pela destreza artística, presente nesses quadros, livros e nessas gravuras que consegui reunir com paciência e amor de muitos anos."



Llosa, Mario Vargas | Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Ana Angélica d'Avila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva | 2009 | p.14



Allegory of Sculpture | Gustav Klimt | 1889


(ah... vale lembrar que embora a obra Os Cadernos possa ser lida independentemente da obra que a antecede, ou seja, O Elogio da Madrasta, convém ler essa primeiro, pois o desenrolar da primeira trama condiciona, num certo sentido, a futura relação entre os personagens da segunda).