sexta-feira, dezembro 15, 2006

Sobre o fim do mundo VII, VIII e IX (continuação e fim)


VII - Você acredita na extinção da raça humana? 




[abaixo deste post seguem cinco outros posts com as questões de I a VI].

De acordo com tudo que falei acima (no blog é abaixo) acho possível que ela se extinga, mas a curto prazo, pouco provável. Se com as pesquisas sabemos que os recursos naturais estão esgotados 25 % a mais da capacidade regenerativa do planeta, com uma sóbria, eficiente e responsável política de preservação ambiental poder-se-ia reverter esse quadro, pois sabemos também que a natureza tem uma poderosa capacidade regenerativa. Se há interesse em preservá-lo (e eu acredito que há), o mínimo que deveríamos fazer para reverter esse quadro seria nos servir de recursos adequados, ou seja, a meu ver, nossa inteligência e conhecimento científico. Ora, não dá para ficar rezando!

VIII - O fato de o fim do mundo ser presente na vida humana desde o início da civilização se deve a quê?

É importante que se perceba que o fim do mundo não é, para nós, um fato, mas sim uma idéia, e penso que essa idéia vem de uma reflexão sobre outras idéias. Talvez, e, principalmente, das idéias de finitude e mortalidade, como já disse acima (aqui é abaixo).

IX - Se você soubesse o dia exato em que o mundo iria acabar o que você faria?



Essa questão me incomodou bastante. Num primeiro momento pensei: não tenho a mínima idéia. Mas, pensando bem, começaram a chover idéias na minha cabeça. Tantas que, por uma certa preguiça, preferi responder que sinceramente não sabia. E depois que dependeria da informação de quando isso pudesse vir a acontecer. E daí as perguntas e respostas começaram a me parecer circulares. E resolvi encerrar o assunto... só não disse que se essa possibilidade fosse imediata, como qualquer mortal comum, provavelmente, eu me desesperaria.


C’est fini!


sábado, dezembro 02, 2006

Não desistam de mim...


Gente! Estou mesmo de pernas para o ar, mas não desistam de mim. Apesar de estar sendo esmagada pelo tempo, ou melhor, pela falta de tempo, eu não desisti de escrever para vocês. Sei que estou a dever, mas eu pagarei (não sei quando, mas será logo). Só preciso de um tempo para recuperar o fôlego (e o próprio tempo). Sabem como é, conforme eu já disse lá embaixo, pensar dá trabalho, escrever então... nem se fala. E requer o implacável tempo, esse dono do mundo, como diz o Dr. Fantástico! Aguardem-me, please!
Beijos.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Imortalidade, eternidade e perfeição


Peço licença aos meus caros e seletos leitores para interromper essa entrevista sobre o fim do mundo - faltam apenas três questões. Vi-me compelida a postar um comentário que fiz a um outro post , intitulado MORTE, escrito por Aguinaldo Pavão em seu blog http://agguinaldopavao.blogspot.com.br/2006/11/morte.html .

Para evitar muitas explicações, peço que vocês leiam a postagem dele que, como o próprio título revela, é uma reflexão sobre a morte, e, a partir da idéia da morte, uma reflexão sobre a imortalidade e a eternidade. 

O texto, pensado e escrito com aquela agudeza peculiar do pensador-escritor, suscitou talentosos comentários entre alguns colegas e amigos. Vale conferir. E eu não resisti a fazer um comentário também, mas a título ilustrativo apenas. Permiti-me postá-lo no meio dessa entrevista porque, se vocês notarem, logo na primeira questão sobre o fim do mundo, eu mesma assinalei que o assunto era instigante porque nos levava a pensar nos conceitos de finitude, infinitude, mortalidade, imortalidade e eternidade. Então, segue o comentário.

Aguinaldo. Parece-me que a reflexão sobre a morte é mesmo inevitável. E eu me inclino a concordar contigo, embora titubeie com a idéia contrária. A idéia da Carina me parece boa, poderíamos viver ao menos um pouco mais (150 anos me parece bom rs, aumentei um pouquinho) e melhor. Mas o que eu gostaria de lembrar é que seu post vem ao encontro do maravilhoso conto “A Perfeição”, de Eça de Queiroz que, por sua vez, versa sobre os oito anos que Ulisses passou na divina Ilha de Ogígia, chegando lá depois que “o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambolhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde a imortal Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e amara” (p. 262).

O conto é magnífico (não resisti a transcrever as partes mais emocionantes) e mostra o tédio, a dor e a tristeza de Ulisses (homem de tão rutilantes feitos) “jazendo numa ilha mole... mais lânguida que uma cesta de rosas...” (pp. 265-266), após ter sido aprisionado pela Deusa que o “presenteou” com a imortalidade.

No entanto, para Ulisses, a imortalidade não se apresentava como um presente, mas sim como uma miserável tortura, pois ele não suportava a “inefável paz e beleza imortal... “ e “com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia , revolvendo o queixume do seu coração...” (p. 262) até que, de repente, um Deus descera, um grande Deus, o leve e eloqüente Mercúrio, o Mensageiro dos Deuses, descera a mando do tempestuoso Júpiter, incumbido de dar um recado à Deusa ditosa. O recado é o seguinte:

“Oh, Deusa ... o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso, Júpiter, regulador da Ordem, te ordena, oh Deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços claros, e o restituas, com os presentes docemente devidos, à sua Ítaca amada, e à sua Penélope... (p. 269) ” Calipso, depois de lamentar profundamente a determinação do poderoso Júpiter, promete ensinar o intrépido Ulisses “a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...” (p. 270).

Um dos pontos mais emocionantes do conto está, a meu ver, na resposta que Ulisses dá a Calipso quando esta questiona o seu desejo de voltar à esposa mortal [pois, “as mortais brilham ante as Imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras...” (p. 275)].

A resposta de Ulisses é simplesmente sublime, olha só:

“ Oh Deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! 

Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrósia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! 

Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - ‘Foi culpa tua, mulher!’ - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!” (pp. 275-277)

Bom, depois de vários outros diálogos e acontecimentos, já no fim do conto, Calipso faz a seguinte pergunta a Ulisses: “se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal?” (p. 282).

Ulisses responde novamente de modo esplêndido:


“Oh Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. 

Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostrastes estes prados perpétuos: - e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu vôo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras Harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta, para não escutar o murmúrio sempre lânguido destes arroios sempre transparentes! 

Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Oh Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre a sua muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte!” (pp. 282-283).

E assim segue Ulisses preparando a jangada para se lançar ao mar. Ao final, Calipso, inconformada, lastima: “Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...” (p. 285).

Ulisses magnificamente dá seu último brado:

“Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!” (p. 286)
“E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!” (p. 286)

(QUEIROZ, Eça de. A perfeição. In: Contos. Porto: Lello & Irmão – Editores, s/d).

Desculpe-me a extensão do comentário, mas foi irresistível.
Um beijo... e espero que você viva bastante (e que eu possa desfrutar da sua vida), já que não quer viver (talvez com razão, sabe-se lá) para todo o sempre!

A primeira imagem é de Ulisses enfrentando as sereias (esse episódio narrado na Odisséia acontece antes dele chegar na Ilha de Ogígia); e, a segunda, da Penélope em seus 20 anos de espera.

terça-feira, novembro 07, 2006

Sobre o fim do mundo V e VI (continuação)


V - Existiria então algum meio de salvação?

Se entendermos o fim do mundo como certo e infalível, não. Aquilo que é certo e infalível não tem como deixar de acontecer. Se o entendermos como apenas provável – uma hipótese - sim, pois na esfera das probabilidades encontra-se a contingência. Para cada evento apenas provável ao menos um evento diferente tem de se apresentar como possível e, talvez, este evento diferente viesse a se apresentar como a salvação. As hipóteses estão aí para serem confirmadas ou refutadas.


VI - Na sua opinião o fim do mundo está relacionado a atitudes humanas ou a algo divino?


Bom, como você deve ter percebido, para mim o fim do mundo pode e deve ser pensado a partir de algumas hipóteses. Sendo assim, essa resposta dependerá de qual delas eu assumo para pensar como esse fim poderia vir a acontecer. 

Não tenho a menor simpatia em relacionar o fim do mundo a algo divino. Sou bem mais simpática às teorias que a ciência oferece, como por exemplo, aquela que relaciona esse fim (do planeta terra) a eventos naturais que podem, num certo sentido, ser atribuídos (com muita cautela) a atitudes humanas de constante destruição. Porém, se de repente soubermos que um enorme meteoro vem, numa velocidade estonteante, em direção a terra, e que não há como ele não se chocar com ela, não podemos atribuir essa causa a atitudes humanas. 

Certamente muitos poderão relacionar esse fato a causas divinas, mas, como já indiquei, considero tais atribuições supersticiosas e arbitrárias. Não há nenhuma causa humana (e divina, já que não tomo essa hipótese como razoável) na prevista morte do sol (cientistas calculam que será daqui a 6,5 bilhões de anos, e que quando isso acontecer a Terra já terá sido consumida numa enorme nuvem incandescente, ao menos 1,5 bilhão de anos antes). 

Mas sabemos que os homens também têm um certo potencial de provocar paulatinamente uma destruição do mundo (ao menos em termos de planeta terra), seja esgotando irresponsavelmente os recursos naturais de modo a provocar cada vez mais catástrofes e calamidades, seja (de maneira mais radical) explodindo bombas atômicas de potências avassaladoras. 

Li outro dia que o relatório de 2006 (não sei de qual pesquisa) mostra que os seres humanos já usam dos recursos naturais do planeta 25% a mais do que a capacidade que a natureza tem de regenerá-los, o que significa que se continuarmos nesse ritmo, em 2050 (cálculo que a pesquisa fornece), precisaremos de dois planetas Terra para proverem nossas necessidades. Em vista de tudo isso, penso que é preciso determinar dimensões, proporções, e também considerar várias causas concorrentes para se responder com um mínimo de plausibilidade a essa questão.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Sobre o fim do mundo IV (continuação)


IV - Como você imagina este dia?


Posso imaginá-lo de vários modos. Fazer simples e complexos experimentos mentais. Minha imaginação pode fornecer uma enorme variedade de representações possíveis, desde que estas não impliquem contradições absolutas. Todas aquelas catástrofes em proporções gigantescas e aniquiladoras que citei acima (no caso do blog, citado abaixo) podem ser imaginadas. 

Hume assinala em EHU 5. 2. § 10: “Nada é mais livre do que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhes possível inventar uma série de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhe uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para si mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer...”. Mas isso, ao menos a princípio, permanecerá no campo das ficções (que não se transformam em sólidas crenças) da imaginação.

Há um outro ponto que considero interessante. Veja se não é curioso:


Uma pessoa que morreu na catástrofe das Torres Gêmeas durante os atentados de 11 de setembro de 2001 pode muito bem ter pensado que estava vivendo o fim do mundo. Nem todas perceberam que aquela destruição toda era causada pelo choque de um avião e que o mundo subsistiria. Não tiveram tempo de perceber nem de colher informações sobre o que ocorria de fato. Talvez uma vítima do último Tsunami (ou qualquer outro) tenha pensado a mesma coisa, ou seja, pensou que o mundo estava sendo engolido por uma onda gigantesca e que este era não só o seu fim, mas o fim do mundo. Contudo, como já disse, de um fim particular ou de uma morte individual, não se segue o fim do todo ou a morte do mundo.

terça-feira, outubro 31, 2006

Sobre o fim do mundo III (continuação)





III - De onde você acredita que vem a necessidade de se acreditar no fim do mundo?

Eu não diria que a crença no fim do mundo é necessária, embora eu perceba que a maioria das pessoas pensa a respeito e acaba formando uma opinião sobre o assunto. A idéia de necessidade aí me parece muito forte. Necessário é aquilo que, em geral, não pode deixar de ser ou acontecer, tal como é ou acontece. Mas nem todos acreditam no fim do mundo. É preciso distinguir entre conhecer, pensar, opinar e crer no fim do mundo. Aqueles que abraçam as explicações religiosas geralmente têm crenças bem arraigadas (e provavelmente equivocadas) sobre esse suposto fim. Mas eu mesma não referendo esses discursos. A mim o fim do mundo se apresenta como um tema instigante que serve de mote para especulações que excedem os limites do nosso entendimento, haja vista a mente ter capacidade finita para conhecê-lo (em sentido estrito). Mas nem por isso eu saio por aí apelando a crenças mal fundamentadas. Prefiro colher dados e informações a respeito do tema a fim de formar opiniões plausíveis. É importante determinar como e até onde podemos conhecer os fenômenos. No caso do "possível" fenômeno do fim do mundo, a impossibilidade de conhecê-lo é patente, pois, como disse, diz respeito ao futuro. Todavia, podemos pensar, opinar e formar crenças a respeito, de acordo com as informações disponíveis. 

Li em algum lugar (desculpe-me a imprecisão, mas não me lembro onde) que o medo do fim do mundo é, digamos assim, uma versão cósmica do temor da morte individual. A explicação é interessante. Quer dizer, a partir da consciência de nossa finitude e experiência da finitude de outros seres, ampliamos (por analogia) essa idéia até alcançarmos a idéia de fim de mundo. 

Mas veja bem, ter medo da morte não leva necessariamente a crer no fim do mundo. Certamente não tememos somente as coisas que são certas e infalíveis como a morte é (ao menos até que tenhamos a experiência de algum ser imortal). Temos de fato medo de coisas que são apenas possíveis e contingentes, mas nem sempre nossos medos são suficientes para produzirem crenças consolidadas. Eu (como quase todos os mortais comuns) tenho medo da morte (talvez mais de como ela ocorrerá do que dela propriamente dita). Ela ocorrerá certa e infalivelmente. Mas eu não vivo torturando meu cérebro pensando nela (se assim fosse acho que a vida tornar-se-ia insuportável), muito menos no fim do mundo (ao menos enquanto essa possibilidade se apresentar como relativamente distante). Até que se prove o contrário, o fim do mundo não é certo e infalível, e mesmo que abracemos teorias que afirmem isso, não passarão de conjeturas, umas mais plausíveis, outras menos plausíveis. 

Ademais (lembrando Hume), conhecemos mui imperfeitamente uma parte mínima desse grande sistema chamado mundo, e durante um intervalo de tempo muito curto. Como então podemos nos pronunciar com certeza acerca de um mundo que tem aproximadamente dez bilhões de anos (com formas de vida completamente desconhecidas) e que dependendo de seu desenrolar poderá ainda viver (mesmo que em condições deploráveis), mais tantos bilhões de anos? Se pensarmos nessas proporções, como formar uma idéia adequada, ou uma sólida crença (para voltar à questão), deste suposto fim?

domingo, outubro 29, 2006

Sobre o fim do mundo II (continuação)



O Juízo Final | Michelangelo

II - Baseado em que você pode reforçar sua opinião?


Em favor de que o mundo terá um fim temos algumas teorias disponíveis. É importante distinguir a qualidade dessas teorias e em que medida elas oferecem bons argumentos, ou qual delas oferece uma melhor explicação.

Assinalo aqui duas vertentes bem difundidas e distintas: as explicações científicas e as religiosas (estas últimas de cunho profético). As famosas (e a meu ver, lendárias) profecias de Nostradamus (escritas há mais de quatro séculos) são bem conhecidas e muita gente acredita nelas. Porém, o exercício da profecia sempre está associado a elementos místicos e/ou religiosos (estes, no caso do cristianismo, encontrados nas narrativas bíblicas como, por exemplo, o dia do Juízo Final). Tais pressuposições me parecem obscuras, fantasiosas, arbitrárias e frágeis. Quer dizer, em geral, não considero argumentos proféticos e místicos consistentes, embora, confesso, as acaloradas discussões acerca da filosofia da religião me interessam bastante. Não há como negar que a existência de Deus, a natureza de seus atributos, as crenças que efetivamente sustentamos e vários outros objetos dessa natureza são temas fecundos e verdadeiramente dignos de investigação filosófica.

Talvez fosse interessante que antes de pensarmos em formar uma concepção do fim do mundo, pensássemos em formar uma concepção da origem do mundo (cosmogonia), pois a concepção do fim do mundo dependerá da idéia que temos de sua origem. Se eu acredito que Deus criou o mundo (teoria criacionista) e que a Bíblia é uma fonte sagrada, confiável e veraz, provavelmente acreditarei num fim de mundo aos moldes do Juízo Final. Se eu acredito na teoria do Big-Bang, provavelmente terei uma concepção de fim completamente diferente. Muita gente acredita que Deus criou o mundo sem se interrogar muito se Ele existe mesmo (pois a existência de Deus é indemonstrável) e como, de fato, fez isso (apenas aceitam as narrativas transmitidas e já consagradas). Mas por que dar crédito a Deus na criação do mundo e não à própria matéria? Algumas respostas confortam facilmente certas mentes, outras dão origem às mais profundas inquietações, por serem muito complexas e fugidias. Mas, em geral, os homens permanecem submersos em incertezas e perplexidades quanto a esse assunto.

Por outro lado, se trilharmos o caminho das teorias científicas (apoiadas no solo mais firme de alguns dados empíricos, mas nem por isso teorias infalíveis), temos disponíveis (estou a supor) aquelas que apontam para um fim de mundo de aniquilação total e irreversível, ocasionado por várias causas concorrentes: a partir de princípios de desintegração e degradação naturais, catástrofes em série e de dimensões gigantescas (secas, maremotos, terremotos, tsunamis, choques de meteoritos ou planetas, uma nova explosão térmica, ou ainda a morte do sol). Algumas destas catástrofes (dizem) aconteceriam em virtude de certas ações humanas, outras pela própria natureza. Todavia, é difícil conceber a idéia de aniquilação total.

Veja só, existem teorias que sustentam que o mundo pensado como aniquilação total e irreversível não teria um fim propriamente dito, mas apenas grandes transformações que se dariam através de fenômenos que, no fundo, são auto-organizativos. Para afirmar uma aniquilação total do mundo, que inclua todos os seres vivos, toda a natureza orgânica e também a inorgânica, temos de negar a Lei da Conservação da Matéria [1774 – Lavoisier] que reza que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (não sei se essa lei já caiu por terra, mas acredito que não). Se todos esses fenômenos catastróficos não forem suficientes para destruir a matéria inorgânica, a ponto de fazê-la desaparecer, parece possível que essa matéria inorgânica venha a gerar nova matéria orgânica, e daí novas formas de vida. Acho que a teoria do Big Bang (pela qual guardo bastante simpatia) segue essa linha. Parece-me uma teoria bastante plausível para se pensar a origem do universo, bem como o seu “possível” fim. Esta teoria afirma que o Universo surgiu há pelo menos dez bilhões de anos em virtude de uma explosão térmica resultante da compressão de energia. Portanto, o Universo teria sua origem nessa explosão e a matéria orgânica (a vida), por sua vez, teria sua origem na matéria inorgânica. Ora, se o fim do mundo ocorrer devido a uma nova e imensa explosão, podemos acreditar que ele não acabará de fato, mas sim que sofrerá grandes transformações, e que, talvez, sejam necessários mais alguns bilhões de anos para o mundo tomar uma forma tal qual ou apenas próxima a que conhecemos hoje. Também é lícito supor que será totalmente diferente, que jamais se organize nestes moldes, enfim, qualquer suposição a esse respeito que não esteja nem possa ser assentada na experiência (e não temos experiência da origem dos mundos, tampouco do fim), permanecerá no plano das hipóteses. É claro que numa explosão assim a raça humana não teria condições de sobreviver, mas note, da extinção da raça humana não se segue o fim do mundo. Podemos pensar em relação ao exemplo acima que um processo de desorganização e degeneração da matéria participaria de um processo de reorganização e regeneração. A desorganização tornar-se-ia um dos traços fundamentais da organização do sistema. Cabe perguntar: qual das hipóteses disponíveis é mais plausível? A ciência com suas descobertas e capacidade de predição torna-se aqui indispensável para responder mais satisfatoriamente a essa questão.


sexta-feira, outubro 27, 2006

Só para assinalar...


Olha só como é que eu fiquei rghrghgrhgrhrghrgrh.
Hoje, pra colocar a postagem abaixo, fiz nada mais nada menos do que nove tentativas. As oito primeiras foram frustradas.
Esse blog tem hora que dá nos nervos: a imagem não entra, a página expira, a cada vez que modificamos uma coisinha o negócio emperra. Levei algumas horas. Alguém aí sabe o que acontece com esse brilhante veículo de comunicação? Haja paciência! Ufa... desabafei!
Amanhã vou tentar postar as outras questões sobre a idéia de fim do mundo.

Sobre o fim do mundo - I





Outro dia recebi um telefonema de um estudante de jornalismo (o Vinícius) pedindo que eu concedesse uma entrevista a ele (fui indicada pela Karen Debértolis). Perguntei: qual é o tema? E ele disse: é sobre o fim do mundo.

Ich! Minha mente deu a volta ao mundo. Perguntei-me: que sei eu sobre o fim do mundo? Aliás, como posso saber algo a respeito do fim do mundo? Ainda, como posso pensar sobre o fim do mundo e afirmar algo a respeito dele? 

Me vi ora presente, ora ausente, às vezes na terra, às vezes no céu. Fiz uma viagem para além dos limites da realidade: transportei-me “... às mais distantes regiões do universo, ou mesmo para além do universo, até o caos desmedido onde se supõe que a natureza jaz em total confusão” 

(não resisti a usar essa bela frase de Hume, EHU seção 2). O resultado (nada conclusivo) será apresentado em partes, pois escrevi sete páginas sobre o assunto e cada vez que as leio inclino-me a mudar ou acrescentar mais alguma coisa às idéias que esbocei.

É claro que devo ter escrito muita bobagem (rs). O assunto é vasto e fugidio. E não dá dinheiro, como disse uma de minhas filhas – expliquei-lhe que não dava dinheiro para mim, o que não é o caso do Marcelo Gleiser e muitos outros. Mas dando ou não dinheiro o tema é muito instigante e parece inesgotável! 

A entrevista consiste de nove questões: vou responder uma a uma em posts separados, com uma, duas ou três questões. Não apresento concepções consolidadas, mas sim um tatear sobre muitas dúvidas e algumas hipóteses. 

As questões foram as seguintes


1. Qual a sua concepção sobre o fim do mundo?
2. Baseado em que você poderia reforçar sua opinião?
3. De onde você acredita que vem a necessidade de se acreditar no fim do mundo?
4. Como você imagina esse dia?
5. Existiria então algum meio de salvação?
6. Na sua opinião o fim do mundo está relacionado a atitudes humanas ou a algo divino?
7. Você acredita na extinção da raça humana?
8. O fato de o fim do mundo ser presente na vida humana desde o início da civilização se deve a quê?
9. Se soubesse o dia exato em que o mundo iria acabar o que você faria?

Bom, começo com uma cartinha para o Vinícius. A entrevista foi realizada por escrito via e-mail.


Vinícius: o que expresso aqui em relação ao tema do fim do mundo são algumas idéias (fresquinhas) decorrentes das inquietações que o assunto me causou. São meras especulações que de forma alguma podem ser consideradas crenças consolidadas ou concepções estanques. A questão se colocou para mim do seguinte modo: em vez de procurar fazer afirmações sobre como eu acho ou acredito que será o fim do mundo, procurei esboçar algumas (poucas) concepções mais difundidas sobre o tema, extrair algumas conseqüências e pensar em como o fim do mundo pode ser pensado. Isso porque acredito que ele pode ser pensado de vários modos, dependendo dos métodos e perspectivas que adotarmos (bem como de certos dados empíricos disponíveis). Abstive-me de citar pontualmente algumas idéias que inevitavelmente tomei emprestada do filósofo David Hume (1711-1776) porque isso me tomaria muito tempo (e eu tomei essa entrevista como uma conversa informal). Para fazer citações eu teria que revirar algumas obras. Mas gostaria de registrar (para não ser acusada de desonestidade filosófica, ingrata, plágio, etc), que por trás de muitas idéias particulares que aqui apresento encontram-se traços marcantes das teorias de Hume.


I - Qual a sua concepção sobre o fim do mundo?


Não sei se poderia afirmar que tenho propriamente uma concepção formada, completa ou acabada do fim do mundo. Tenho sim, algumas noções inconclusivas a respeito desse tema. Em geral meu pensamento está voltado para questões sobre a origem do mundo e a ordem que nele pode ser observada (tema relacionado ao meu projeto de doutorado).

Veja só: a idéia de fim de mundo diz respeito, ao menos até que se prove o contrário, a um futuro (e sobre o futuro só podemos crer, conjeturar e lançar hipóteses com maiores ou menores graus de probabilidades) aparentemente bem distante. Penso que é natural que nos preocupemos com o futuro, mas numa dimensão mais imediata, pois objetos muito distantes têm pouca influência sobre nossas paixões. Isso não significa que não seja uma questão instigante (pois nos leva a pensar em conceitos como finitude, infinitude, mortalidade, imortalidade, eternidade, origem), mas na medida em que diz respeito a questões de fato e existência (Hume EHU seção 4) cujas respostas permanecerão (até que tal fato se dê) na esfera das probabilidades, acho tanto possível que o mundo acabe quanto que não acabe, ou seja, que tenha fim e não tenha. Podemos pensar ambas as proposições sem cair em contradição. Quero dizer, as duas são possíveis. Para formar uma concepção mais sólida, eu teria de reunir dados e analisar detidamente os argumentos que contam a favor e contra essa idéia, ainda que idéias muito distantes, não assentadas na experiência, sejam pálidas, escorregadias e imprecisas.

Pois bem, a própria noção de fim de mundo, além de muito complexa, é pouco clara, pois de que tipo de fim de mundo estamos falando? É um fim total no qual todas as formas de vida desapareceriam, toda a matéria orgânica e, inclusive, a inorgânica (se é que isso é possível de fato)? Ou um fim no qual só os seres vivos seriam aniquilados? A matéria inorgânica subsistiria, ainda que totalmente transformada? O mundo aqui referido significa apenas o planeta terra, ou contempla um universo maior de outros mundos possíveis? Ou seja, seria necessário qualificar melhor esse “fim de mundo” pois, dependendo da dimensão que adotarmos, é possível dar a cada uma dessas questões respostas distintas.



quinta-feira, outubro 26, 2006

Deu nó - háháhá!!!


Calma gente, sei que faz tempo que não escrevo aqui. Mas não se desesperem rsrsrsrsrs ... só preciso de mais um tempinho. Teremos novidades neste final de semana. Pensar dá trabalho. Escrever, então? nem se fala...
Abraços!

sábado, setembro 30, 2006

Um verdadeiro duelo...


O comentário abaixo refere-se a um outro comentário escrito pela estudiosa de Kant Andréa Faggion. O debate tem início numa postagem intitulada “Compatibilismo versus incompatibilismo (ou Hume versus Kant)” publicada em 22 de setembro de 2006 por Aguinaldo Pavão no blog http://agguinaldopavao.blogspot.com.br/2006/09/compatibilismo-versus-incompatibilismo.html
Junto a esta postagem segue (na seção de comentários) a brilhante resposta da Andréa: uma verdadeira aula sobre a teoria kantiana.

Cara Andréa,
Peço licença para brindar o seu “belo e inteligente” comentário (como bem disse o Aguinaldo... e sem ironia) com alguns comentários ulteriores (provavelmente não tão belos e inteligentes rsrsrs). Se me permite a intromissão, a comparação que você fez entre as teorias de Hume e Kant sobre a liberdade e imputabilidade moral causou-me um desconforto filosófico de tirar o sono (não se sinta culpada rsrsrs, sempre que eu mesma faço essa comparação perco o sono). Isto porque, para oferecer uma resposta a essa famigerada controvérsia, ambos caminham em direções diametralmente opostas, a meu ver, num verdadeiro duelo de gigantes. Como você sabe, Hume busca em suas explicações uma radical deflação metafísica, e Kant, embora pense numa metafísica crítica, não deixa de ser metafísico. Hume adota um monismo explicativo. Já Kant, um dualismo que os kantianos e Kant mesmo preferem chamar de transcendental. Também suas concepções de razão e vontade são completamente distintas. Há que se ressaltar que Hume e Kant estão num profundo desacordo quanto às competências do discurso filosófico. Não pretendo, ao menos neste momento, afirmar a verdade de uma teoria e a falsidade de outra, mas apenas mostrar que a solução compatibilista humeana não é tão fácil assim, como você assinalou, pois não se reduz a afirmar que, “afinal, a vontade possa ser necessitada por causas naturais e o corpo livre para agir”. De fato, Hume, em outras palavras, afirma isso, mas para chegar a essa simplicidade empreende uma tarefa que a meu ver não é nada fácil.
Quando se trata de liberdade interior, Hume de fato opta pelo determinismo, mas é justamente por isso que ele é um compatibilista. Como qualquer compatibilista coerente, Hume recusa a liberdade da vontade, mas não a liberdade da ação. E não há razão para que um compatibilista fique constrangido se lhe fizerem a pergunta: como podemos ser moralmente censurados ou louvados se nossa vontade não é livre? Para um compatibilista, os nossos juízos ordinários de responsabilidade moral de modo algum requerem uma vontade livre para lhes dar suporte, basta admitirmos que um homem agiu de acordo com sua vontade (não que agiu com uma vontade livre). A reflexão de Hume sobre a imputabilidade moral visa a elucidar o modo como o senso comum procede, especialmente na qualidade de observador, quando se trata de emitir juízos de aprovação e desaprovação moral. Ora, os juízos de louvor e censura moral, na visão de Hume, reportam-se ao caráter do agente. Portanto, o alvo da imputabilidade moral é o caráter – isto é, uma disposição interna com relativa estabilidade que motiva as ações dos indivíduos.
Para que possamos compreender essa teoria, devemos, é o apelo de Hume, fixar a filosofia na província modesta da vida comum. Se não entendemos o que Hume compreende por filosofia, simplesmente não compreendemos Hume. Na sóbria província da vida comum poderemos perceber que não há qualquer necessidade de investigarmos as causas remotas que determinam o caráter (porque alguém bem poderia perguntar se somos responsáveis por nosso caráter, já que ele é antecedentemente determinado). O caráter pode ser - como de fato é pelo senso comum - tomado como a instância pragmaticamente última de nossos juízos de imputação moral.
É claro que Kant de modo magistral e sublime ultrapassa as jurisdições epistemológicas fixadas por Hume, procurando mostrar que a condição de possibilidade para se pensar a liberdade e imputabilidade moral implica necessariamente a adoção de um duplo ponto de vista, ou seja, o do fenômeno e o da coisa-em-si. Agora, é evidente que a Hume esse duplo ponto de vista não interessa. Por certo ele rejeitaria categoricamente (rsrsrs) essa perspectiva transcendental, afirmando, provavelmente, que coisa-em-si não tem sentido algum e, conseqüentemente, a lei moral kantiana também careceria de qualquer sentido. Ora, a partir de perspectivas metodológicas radicalmente distintas, afirmar que Hume fracassa em oferecer uma resposta satisfatória ao problema é fechar os olhos para os critérios epistemológicos estabelecidos por ele e aplicar distinções a uma teoria que, em hipótese alguma, se prestaria a isso.
Bom, afora essa minha tentativa de esclarecer alguns pontos, acredito que haja algum problema de tradução em relação à primeira citação que você faz de Hume: “esta liberdade incondicional...”. Veja só, isto está em completo desacordo com Hume, pois, como determinista, tudo está condicionado, inclusive a liberdade (como a teoria dele esforça-se por demonstrar). Na verdade, Hume fala em liberdade hipotética: “Now this hypothetical liberty is universally allowed to belong to every one, who is not a prisoner and in chains” (EHU, 8 §23, p.159). Uma tradução dessa merece ser atirada às chamas... uma vergonha! ... rsrsrsrsrs.
Um abraço,
Marília
(p.s.: Ai, ai, ai... sabe que agora, pensando bem, pelo pouco que te conheço, e o muito que sei de sua competência filosófica, acho que em vez de recuperar o sono vou perder de vez... rsrsrsrsr).

domingo, setembro 24, 2006

Metafísica, Filosofia e Matemática

Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 16 de setembro de 2006. Por Espinosa de Aquino
Neste encontro foram discutidos os seguintes pontos:

1. Retomada da leitura e análise do § 9 do prefácio da segunda edição da CRP (B XIV-XV)
1.1. Metafísica, Filosofia e Matemática

■ 1.1. A metafísica, como escreve Kant em CRP B XIV, pode ser entendida como “um conhecimento especulativo da razão inteiramente isolado que através de simples conceitos (não como a matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva completamente acima do ensinamento da experiência na qual portanto a razão deve ser aluna de si mesma”. A metafísica, assim, estaria em condições menos favoráveis que a matemática, pois não poderia contar com qualquer espécie de, digamos, certificação intuitiva, como acontece com a matemática. De todo modo, como argumenta Kant na seqüência, a matemática e outras ciências poderiam ter seu fim caso uma barbárie assolasse a humanidade e seus conhecimentos, porém não a metafísica. A metafísica sobreviveria ao abismo dessa barbárie. “Pois a razão emperra continuamente na metafísica, mesmo quando quer dar-se conta a priori (como se arroga) daquelas leis confirmadas pela experiência mais comum” (CRP B XIV). Essas palavras evocam o início do prefácio A da CRP. Enquanto a razão sobreviver, a metafísica sobreviverá.
Em que pese essa compreensão, relativamente fácil do que Kant afirma no § 9 do prefácio B, é possível levantarmos alguns questionamentos:

a) A compreensão de matemática no § 9 é equivalente à compreensão exposta no § 6 (B XI-XII)? Aparentemente, não. No § 6, a matemática parece ser melhor entendida como um conhecimento racional que constrói conceitos representando-os a priori. No § 9, a idéia sugerida nos inclina a pensar que o conhecimento matemático primeiro produziria conceitos e depois os aplicaria à intuição. Ora, é duvidoso se o conhecimento matemático comporta dois momentos distintos. O momento em que o conceito é produzido parece ser o mesmo momento em que o conceito é construído. Sendo assim, não há por que dizer que ele se aplica à intuição, uma vez que a construção do conceito já é realizada intuitivamente.

b) A metafísica e a filosofia poderiam ser consideradas equivalentes? De acordo com a definição de Kant, a filosofia é um conhecimento racional a partir da exposição de conceitos (CRP B 741). Essa definição está muito próxima, é verdade, da compreensão de metafísica. Contudo, a filosofia é mais ampla que a metafísica, principalmente se pensarmos nas pretensões mais propositivas da metafísica.

c) Um triângulo é construído (e isso compete ao conhecimento matemático), porém a liberdade não é construída (pois ela compete ao conhecimento filosófico). Se essa compreensão é correta, o que a sustenta? Kant considera que a liberdade é um conceito dado (conceito no sentido amplo, o que envolve também idéias), precisando evidentemente de elucidação e justificação. Já um triângulo não é conceito dado, mas construído. A liberdade não é representada a partir das formas puras da intuição (tempo e espaço), já o triângulo, como um conceito matemático, depende das formas puras da intuição.

O § 9 (B XV) termina com a famosa caracterização do procedimento de investigação metafísica, a saber, “um mero tatear e, o que é pior, entre meros conceitos”. Talvez pudéssemos aproximar com a noção humeana de relação de idéias. Nesse caso, a metafísica, embora pretenda ser sintética, não conseguiria ir além de juízos analíticos. Como ela não tem consciência de sua própria errância, resta dogmática levantando pretensões que não pode suportar.


sábado, setembro 16, 2006

Ingresso para os objetos

Curso Introdução ao pensamento de Kant
Professora Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do dia 23.07.2006
Por Nícolas Pioccopi


“Pobres filhos da Terra” que somos, nunca freqüentaremos as coisas – é verdade. Mas essa é uma boa nova, pois tais coisas, afinal, como Hume tão bem viu, nunca ofereceriam relação necessária à inspeção de nosso espírito” (Lebrun, Gerard. ‘Hume e a astúcia de Kant’ In: Sobre Kant. Tradução de José Oscar de Almeida Marques; Maria Regina A. C. da Rocha; Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Edusp, Iluminuras, 1993, p. 12).
No último estudo leu-se e discutiu-se dois parágrafos do texto de Gerard Lebrun – “Hume e a astúcia de Kant’ – que trata do conhecimento que se pode possuir acerca de um objeto. “Pobres filhos da Terra que somos, nunca freqüentaremos as coisas” – diz Lebrun em seu texto.
O astrofísico Stephen Hawking em uma de suas entrevistas, neste ano, disse certa coisa que muito chama a atenção para este nosso problema de não termos ingresso para que possamos freqüentar as coisas. Hawking falava que a matemática que orienta os físicos em suas deduções e observações talvez teria de ser “re-inventada” - ou que pudesse ser encontrada uma nova forma de enxergar a mesma coisa - por não poder dizer exatamente a significação das coisas - o que, num futuro nada distante, poderia vir a causar um problema em nossas investigações acerca do universo. Da mesma forma, o problema dos movimentos que levou o filósofo grego do século IV a.C, Zenão de Eléia, a formular, entre outros paradoxos, o de “Aquiles e a tartaruga”, apontava para a necessidade de uma nova forma de pensar. Este paradoxo fala de uma corrida que Aquiles apostaria com uma tartaruga e esta começaria à frente numa distância de tantos metros de Aquiles - por este correr dez vezes mais rápido do que a tartaruga. Digamos que Aquiles começasse a corrida oitenta metros à frente da tartaruga. Quando é dado o sinal de largada ambos começam a correr. Quando começam a correr Aquiles percorre em um dado intervalo de tempo “t” os oitenta metros que a tartaruga tinha de vantagem dele e, neste mesmo intervalo de tempo “t” que Aquiles gastou para percorrer estes oitenta metros, a tartaruga andou mais oito metros para frente. Em virtude de Aquiles correr dez vezes mais rápido que a tartaruga, a distância percorrida pela tartaruga é a distância de Aquiles dividida por dez. Quando Aquiles percorre estes oito metros, a tartaruga anda mais estes oito metros divididos por dez, ou seja, caminha mais oitenta centímetros (0,8 metros) - e assim ao infinito. Zenão alega que Aquiles jamais conseguiria alcançar a tartaruga, o que certamente é um equívoco notório, visto que Aquiles, de fato, alcançaria a tartaruga e a ultrapassaria. O que resolveria este problema seria uma nova forma de raciocinar e que só foi concebida no século XVII por Leibniz e Newton. Até então nossa matemática não dava suporte para que pudéssemos conhecer os movimentos dos objetos visíveis a olho nu - como é o caso de Aquiles e a tartaruga - objetos de nossa experiência diária. Ambos tiveram que inventar uma nova matemática, um novo modo de ver as mesmas coisas, poder-se-ia dizer que “um novo método” e, dessa forma, foi possível que nós adentrássemos nos movimentos das, o que até então era a visão da época, engrenagens bem definidas que era o universo.
Porém, com o passar do tempo, as nossas observações e dúvidas foram aumentando até que chegamos às partículas elementares dos átomos e, portanto, a outras velocidades e distâncias. A mesma matemática, que antes era a principal ferramenta para calcular os movimentos dos objetos, ainda é usada tanto quanto antes. Porém, a idéia de universo já não é mais a mesma, ou seja, apareceram inúmeros outros objetos a serem observados e, portanto, a “física já não é mais a mesma”, quer dizer, surgiram problemas que esta matemática não é capaz de resolver “exatamente”. A idéia que se tem do início do universo, na verdade, é uma interpretação que se faz de cálculos cujo resultado final é uma divisão do tipo “um sobre zero”. Isso em matemática é um número infinito e, portanto, indefinido. Com base nisto dizemos que o universo era primariamente um ponto de “densidade infinita”. O que se pretende dizer aqui é que, apesar de termos raciocínios poderosos para a tentativa de compreensão dos objetos, de tornar a ciência dos mesmos sólida e verdadeira, em muitos casos esta ferramenta acaba por não servir plenamente e acabamos por precisar de algo mais para a compreensão dos objetos. Faltaria algo que desse a chance de especulação sobre tais objetos. Um exemplo da diferença entre a matemática e a física - de como a matemática é um raciocínio que usamos como ferramenta para tentar adentrar nos objetos - foi o que Lorentz disse ao refazer alguns cálculos de Galileu que diziam a respeito da velocidade relativa dos corpos: “Os cálculos estão certos, mas, não faço a mínima idéia do que estes querem dizer. Isto é matemática, enquanto matemática está certo.” Isso lembra muito o seguinte trecho do texto de Gerard Lebrun: “Se alguém, dizia Hume, pudesse abstrair tudo o que sabe ou viu, seria completamente incapaz, consultando apenas suas próprias idéias, de determinar que espécie de espetáculo o universo deve ser...” (Lebrun, Gerard. ‘Hume e a astúcia de Kant’. p. 12). Se pensarmos nas ciências a priori, nunca iremos chegar a conhecimento algum sobre o que é nosso meio, porém, o conhecimento delas, no plano delas, é exato e, portanto, são válidas independentemente de qualquer experiência. Todavia, estas são incapazes de nos dar a luz necessária ao esclarecimento de dada questão apenas por si mesma. Para tanto é necessário que haja um forte elo entre uma coisa e outra e que, sem ele, tudo tornar-se-ia uma questão de crença ou superstição. Este elo, ao menos no plano sensível, é o da causalidade, afirma Kant. Desta forma o ingresso para as coisas parece tornar-se mais acessível e este acesso se daria de modo especulativo - o que parece salvar a metafísica - e certamente dá um novo horizonte para a compreensão de dado objeto. Se, por um lado, Lorentz, ao consultar apenas suas idéias para tentar compreender o meio, ou seja, apenas consultar a matemática, não chegou a alguma conclusão acerca do nosso meio empírico, Einstein, por outro lado, ao interpretar dadas ocorrências dispostas no meio empírico de modo certamente especulativo e, ao relacioná-las com as conclusões de Lorentz, criou a teoria da relatividade.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Crença, ficção ou superstição?

Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 08 de julho de 2006
Por Espinosa de Aquino

No encontro de 08 de julho de 2006, foram discutidos os seguintes pontos: 1. Leitura e discussão do relatório do encontro anterior elaborado por Fábio Roberto Zambrin. 1.1. Esclarecimentos sobre a distinção entre crença, ficção e superstição em Hume.
Inicialmente a diferença entre ficção e crença foi traçada com base na consideração segundo a qual a crença, comparativamente à ficção, representa um sentimento mais forte, mais intenso. A partir disso, levantou-se a questão sobre a diferença entre a “crença” de um indivíduo delirante em seres exóticos, como, por exemplo, a crença na existência de sereias ou a crença na existência de bovinos voadores, presumivelmente mais forte que a crença de um indivíduo normal na existência, digamos, dos anéis de saturno Mas deve-se considerar, como alertou a professora Marília, que acreditar em anéis de saturno ou em dinossauros tem relação com a difusão de informações que a autoridade da ciência nos oferece, na medida em que tais informações não se opõem a tudo que encontramos na experiência, ainda que de forma indireta. Penso que há aqui o peso da autoridade influenciando, com superioridade, as paixões e a imaginação. A professora Marília esclareceu também que, de acordo com Hume, o delirante está excluído da reflexão que distingue ficção de crença. Ela citou a Investigação sobre o entendimento humano (IEH) II § 1. Se o delirante tiver uma sensação mais forte que o indivíduo normal, ainda será ficção, pois o que ele acredita é fruto apenas de sua imaginação. Ou seja, Hume pensa, ao esclarecer os conceitos de ficção e crença, em termos de normalidade, vale dizer, em uma mente sã. Com efeito, poderíamos dizer que Hume se refere à experiência comum e não à experiência incomum de um homem delirante. Se entendi bem, o que a professora Marília quis dizer é que exemplos patologicamente extravagantes fogem do horizonte da vida comum, que é o horizonte da filosofia humeana. Sublinhe-se, aqui, o termo “patologicamente”, porque exemplos extravagantes de pessoas consideradas sãs cabem na teoria. É o caso dos fanáticos (num sentido frouxo) e dos supersticiosos. Pessoas que acreditam em santos, anjos-da-guarda ou coisas que o valham se encaixam na distinção, e esses exemplos podem ser considerados extravagantes.
Foi lido em apoio aos esclarecimentos mencionados, IEH V § 8, p. 69.
[...] toda crença relativa a fatos ou à existência efetiva de coisas deriva exclusivamente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro.
Leu-se também IEH V § 9-10:
Nada é mais livre que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhe possível inventar uma séria de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhes uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para si mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer, no qual acredite com a máxima certeza. Em que consiste então, a diferença entre ficção desse tipo e uma crença? Ela não repousa simplesmente em alguma idéia peculiar que estaria anexada às concepções que exigem nosso assentimento e ausente de todas as ficções reconhecidas como tais; [...].
[...] a diferença entre ficção e crença localiza-se em alguma sensação ou sentimento que se anexa à segunda, mas não à primeira, e que não depende da vontade nem pode ser convocado quando se queira.
Surgiu também a questão sobre por que dizemos, ou deveríamos dizer, conforme sugere o pensamento de Hume, que a existência de dinossauros é uma crença e não uma ficção. De acordo com a professora, essa dificuldade é resolvida se atentarmos para o fato de que na crença há uma sensação, o mesmo não ocorrendo com a ficção. Precisamos notar que os devaneios soltos da imaginação nunca serão sentidos por nós do mesmo modo que sentimos aquilo em que cremos.
Foi observado ainda que a perspectiva empirista de Hume parece prescindir de uma teoria da verdade, o que a própria distinção entre ficção e crença a partir da intensidade das sensações parece confirmar.
Após o tratamento desse ponto, passamos a discutir a diferença entre superstição e entusiasmo. Vimos que a superstição se refere ao medo de males desconhecidos [fraqueza e melancolia também] e o entusiasmo à esperança, ao orgulho, à presunção [e cálida imaginação]. Contudo, superstição e entusiasmo têm uma fonte comum, a saber, a ignorância.
Para a próxima reunião restou ainda a discussão sobre o tópico - destacado no relatório de Fábio Zambrin – sobre a liberdade ilusória. O próximo encontro retomará esse ponto e dará seqüência à leitura do artigo de Lebrun “Hume e a astúcia de Kant”, bem como ao estudo da CRP.

sábado, setembro 02, 2006

Postulados da razão pura prática


Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 19 de agosto de 2006
Por Espinosa

No encontro de 19 de agosto de 2006, foram discutidos os seguintes pontos:
1. Leitura e discussão do relatório do encontro de 15 de julho de 2006, elaborado por Carlos Nadalim.
2. Digressão sobre como ler textos filosóficos
3. Esclarecimento sobre dúvida do último encontro acerca da relação entre transcendental e experiência
4. Esclarecimentos gerais sobre o papel das idéias de Deus, alma e liberdade na filosofia kantiana.

■ 1) Foram feitas algumas observações corretivas ao relatório. Estas observações foram pontuais. Foi salientado pela professora Marília a excelente qualidade do texto redigido por Carlos Nadalim.
■ 2) Argumentou-se que devemos ler os autores de filosofia como se eles estivessem querendo dizer o que disseram. Apenas quando esse método de leitura não prosperar, estamos autorizados a recorrer a interpretações que levem em conta elementos subjacentes ao que o texto registra. Um autor como Kant permite tranqüilamente que pratiquemos, em geral, a leitura de suas obras supondo que o que ele escreveu era o que ele queria de fato dizer. Autores que se servem, por exemplo, de alegorias e ironias com freqüência devem ser lidos com mais cuidado, talvez se justificando, nesse caso, o recurso a uma interpretação que não se prenda apenas ao que o texto diz. Destacam-se, entre esses autores, Platão e Hume.
■ 3) Na CRP Kant afirma:
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori (CRP B 25. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Assim, pode-se dizer que a experiência tem como apoio metafísico o transcendental (o termo metafísico é usado aqui no seu sentido crítico, não dogmático ou tradicional). Não há experiência sem princípios do entendimento e formas puras da intuição. Vale citar uma ilustrativa passagem dos Prolegômenos:
A palavra transcendental [...] não significa o que ultrapassa a experiência, mas o que a precede (a priori), para mais nada determinado a não ser tornar possível o conhecimento da experiência. Quando tais conceitos ultrapassam a experiência, então seu uso é transcendente, distinto do imanente, isto é, o uso limitado à experiência” (Proleg. p. 93, n. 31. Tradução de Tânia Maria Bernkopf. Os Pensadores, 1980).
■ 4) Antes de esclarecer o papel das idéia de Deus, alma e liberdade, foi assinalado preliminarmente que é um equívoco pensar que as três críticas de Kant respondem, respectivamente, aos problemas do conhecimento, moralidade e estética. É um erro, pois a CRP não trata apenas do conhecimento e CFJ não trata apenas da estética. Argumentou-se que as três idéias dizem respeito aos postulados da razão pura prática e, em especial, Deus e imortalidade da alma funcionam como requisitos conceituais para se pensar no conceito de sumo bem, que é a conjunção necessária entre virtude e felicidade. Essa tese é questionável e alguns problemas foram levantados. Como podemos pensar em felicidade para um ser não sensível, como se supõe devam ser as almas? Deus e alma não funcionariam, no fundo, como móbiles da ação, tendo em vista o desejo de felicidade acalentado por todos os seres humanos? Sobre esse segundo problema foi citada uma passagem da CRP B 841-42 em que Kant parece de fato sucumbir a uma moral heterônoma. Vale citar a passagem.
É necessário que todo o curso de nossa vida seja subordinado a máximas morais; por outro lado, é simultaneamente impossível que isto aconteça se a razão não conectar com a lei moral, a qual é uma simples idéia, uma causa eficiente que determine ao comportamento conforme àquela lei um êxito exatamente correspondente aos nossos fins supremos, seja nesta vida, seja numa outra. Portanto, sem um Deus e sem um mundo por ora invisível para nós, porém esperado, as magníficas idéias da moralidade são, é certo, objetos de aprovação e admiração, mas não molas propulsoras (aber nicht Triebfedern) de propósitos e de ações, pois não preenchem integralmente o fim que é natural a cada ente racional e que é determinado a priori, e tornado necessário, por aquela mesma razão pura (CRP B 840-841. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Foi alertado, porém, que esse ponto de vista foi abandonado por Kant na Fundamentação com a tese da autonomia da vontade. Para o Kant da moral autenticamente crítica – que parece não ser o caso do Cânon da CRP – a lei moral não é apenas o princípio de conhecimento, mas também princípio de execução, isto é, móbil das ações morais. Sublinhe-se que a lei moral é o único e suficiente móbil da ação moral.
Com respeito à primeira questão, isto é, como pensar em felicidade – que é um componente do sumo bem – para seres não físicos, como se presume devem ser as almas, o grupo não chegou a nenhuma conclusão positiva. Pareceu a todos que Kant deveria ter se explicado melhor.

domingo, agosto 20, 2006

Rosa Meditativa - Salvador Dali

Fragmentos de um discurso amoroso


Hoje resolvi acrescentar ao meu blog (na postagem logo abaixo) algo que tem me feito muita falta: LITERATURA! Sou, de fato, uma amante da filosofia, mas como meu coração é bem grande, cabe-lhe também amar a literatura. E há tempos, por conta das exigências da filosofia (que com muito gosto e prazer eu procuro satisfazer) e da vida corrida (que nem sempre tenho gosto e dou conta de satisfazer), tenho negligenciado esse meu amor. Chegou a hora de me redimir. Para tanto, apresento aqui, alguns fragmentos inspirados nos "Fragmentos de um Discurso Amoroso" de Roland Barthes.

Para quem não conhece, esse livro contém essencialmente a figura do enamorado “que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala”. Quando eu os escrevi (na verdade, fiz um recorte dos fragmentos), vivia essa figura completa e desesperadamente enamorada. Sentia-me no turbilhão de uma crise dolorosa, mórbida, da qual eu precisava me curar. Na ausência e esfacelamento do meu amor, buscava fragmentos que pudessem recompô-lo. Precisava de uma trégua, de adocicar meu coração, pois não suportava mais minha própria amargura. Assim, eu procurava incessantemente um lenitivo. E foi na literatura do discurso amoroso que o encontrei, ainda que apenas de modo fugaz. Leia aqui: http://mariliacortes.blogspot.com.br/2006/08/fragmentos.html


Fragmentos dos fragmentos



“...encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um: você... a especialidade do meu desejo. [...] foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras) para que eu encontrasse você, que entre mil, convém ao meu desejo. [...] por que desejo você? por que o desejo por tanto tempo...? [...] espero uma chegada, uma volta, um sinal... pode ser fútil ou imensamente patético. [...] uma mulher espera seu amante, de noite, na floresta; quanto a mim, só espero um telefonema, mas é a mesma angústia. Tudo é solene, não tenho noção das proporções. [...] do sabor de uma ou outra contingência, me deixo levar pelo medo de um perigo, de uma mágoa, de um abandono, de uma reviravolta... [...] na tua ausência, sou, tristemente, uma imagem descolada, que seca, amarelece, encarquilha... [...] uma mutilada que continua a sentir dor na perna amputada... [...] pouco a pouco sufoco, meu ar se rarefaz... [...] ciúmes, angústias, posses, discursos, apetites, signos, o desejo amoroso queima por todo lado. [...] e nada mais doloroso do que uma voz amada e cansada: voz extenuada, rarefeita, exangue, poder-se-ia dizer, voz do fim do mundo, que vai ser tragada muito longe pelas águas frias: ela está no ponto de desaparecer, como o ser amado está no ponto de morrer: o cansaço é o próprio infinito: o que não acaba de acabar. Essa voz breve, curta, quase sem graça pela raridade, esse quase nada da voz amada e distante torna-se em mim uma rolha monstruosa, como se um cirurgião me enfiasse um tampão bem grosso de algodão na cabeça. [...] pois desde que te vejo, por um instante, não me é mais possível articular uma palavra: mas minha língua se quebra e um fogo sutil desliza de repente sob a minha pele: meus olhos não têm olhar, meus ouvidos zumbem, o suor escorre pelo meu corpo, um arrepio toma conta de mim; fico mais verde do que o capim, e por pouco me sinto morrer. [...] quero constantemente arrancar de você a fórmula do seu sentimento, e de minha parte digo constantemente que o amo: nada fica para ser sugerido, adivinhado: para que se saiba uma coisa é preciso que ela seja dita; mas também, desde que ela é dita, ela é provisoriamente verdadeira...”

Nota explicativa 

sexta-feira, agosto 18, 2006

Immanuel Kant [1724-1804]

A rainha metafísica

O texto abaixo consite em anotações feitas durante as aulas do Curso de Introdução ao pensamento de Kant.
Relatório do encontro de 17 de junho de 2006.
Profª. Marília Côrtes de Ferraz.
Por Carlos F. de Paula Nadalim
(obs: Os relatórios não obedecem necessariamente uma ordem seqüencial das aulas).

Retomando as discussões realizadas na aula precedente, continuamos nossas análises sobre o parágrafo 4 do prefácio A da Crítica da Razão Pura. Anteriormente, vimos o abalo denunciado por Kant, que a senhora das ciências – a Metafísica - recebera através dos ataques desferidos principalmente por Hume. Ora, se as percepções dos sentidos captam impressões sensíveis, e as transformam em idéias, a chamada “Metafísica” teria seu nascedouro nas constatações empíricas. Ou seja, seriam apenas cópias de impressões, sem um referencial exterior a elas. Estas impressões, para Hume, transformadas em idéias pela mente, não possuiriam outra origem senão das próprias impressões sensíveis. Logo, a validez da metafísica, partindo de tais pressupostos, encontrar-se-ia em maus lençóis pelo fato de ter suas bases epistemológicas colocadas em xeque.
As dúvidas levantadas sobre o texto pairaram sobre o seguinte trecho:
“Embora essa suposta rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experiência comum e, por isso, com justiça, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigências, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada falsamente e, assim, a metafísica continuou a afirmar as suas pretensões; pelo que de novo tudo caiu no dogmatismo arcaico e carcomido e, finalmente, no desprestígio a que se tinha querido subtrair a ciência. Agora, depois de serem tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências, mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas ciências...” (CRP A IX-X).
Kant estaria se referindo a quais ciências? Seriam as ciências denominadas metafísicas? Ou as chamadas empíricas? Ou ainda àquelas a priori como a matemática, e a física pura? No parágrafo terceiro, encontramos uma possibilidade de resolução do problema. O mesmo nos ensina: “Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada rainha de todas as outras...” (CRP A VIII). Num primeiro momento, teríamos a tendência de contrapor, pela leitura do texto em tela, a ciência (metafísica) de um lado e as demais ciências (empíricas) do outro. Contudo, tal solução aparenta-se precipitada ao constatarmos, no parágrafo VI da introdução da Crítica da Razão Pura afirmações obscuras sobre tal diferenciação categórica. Se considerarmos a razão pura como aquela onde se encontram proposições metafísicas, independentemente da experiência, as ciências empíricas estariam dentro de tal classificação. Nelas, encontraríamos, segundo Kant, princípios a priori e a posteriori. Assim, a meu ver, parece que as ciências possuem princípios metafísicos por excelência para Kant, pois se encontram permeadas daquilo que Hume não havia percebido, a saber, juízos sintéticos a priori.
O segundo ponto levantado encontra-se no início do quinto parágrafo. A discussão se fundamenta na idéia de que aqueles indiferentes quanto às questões da razão seriam indiferentes a si mesmos, tendo em vista a existência do sujeito se pautar justamente nela. Logo, ao ser indiferente às questões suscitadas pela razão, mesmo adotando uma linguagem menos rigorosa para isso, o indiferentismo acaba sendo não-indiferente, na medida em que tais representações, afirmativas ou negativas sobre a importância de tais questões, acabam sendo questões sobre a questão da razão em si.

domingo, julho 16, 2006

Liberdade e determinismo I

Por Nicolas Piocoppi

Os dois textos a seguir são observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Côrtes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.

O tema “liberdade” que foi discutido no último estudo pode ser também entendido como uma relação de causa e efeito quando se pensa na liberdade de vontade e na liberdade da ação. Para a liberdade da vontade pensa-se, obviamente, em uma vontade livre de qualquer “determinação” anterior a seu surgimento – da vontade – o que é certamente complicado de se pensar, pois nossos desejos estão entrelaçados com “n” determinações dispostas no meio externo. Parece, de fato, que o meio externo é verdadeiramente aquilo que “determina” a vontade. Se morássemos em um lugar de breves dimensões – o que não deixa de ser verdade – desde o nosso nascimento, e nunca conhecêssemos nada “diferente” do local, não teríamos vontade de ir aonde não conhecemos e se não conhecemos tal coisa poder-se-ia dizer que é como se tal coisa não existisse. Há também a problemática das leis da natureza que determinam nossas rotinas e nosso modo de viver e, além disso, também determinam o que somos hoje. Se você vai à loja de sapatos e, ao analisar cada modelo de sapato acaba por ficar em dúvida entre um e outro, e digamos que um seja de cor verde e o outro de cor branca, certamente a sua escolha será para aquele que “agrade mais a sua vista” – ou o bolso dependendo do caso – e esse “agradar” certamente é o que “gera a vontade” de levar tal produto. Porém, nossos gostos são determinados por “n” fatores, sejam os fatores sociais como a moda, sejam outros fatores tradicionais familiares. Quer dizer, até mesmo fatores genéticos imperam em nossos gostos - como os da cor, tamanho, forma ou cheiro de cada um.

Por outro lado, a liberdade é também uma questão metafísica; se admitíssemos a idéia de Deus, ou deuses, fatalmente nos perguntaríamos se Deus conhece o futuro – como Santo Agostinho em seu tempo se perguntou. Se admitirmos que sim, teremos de arcar com a problemática de que toda ação e toda liberdade que se comete é já pré-destinada a ocorrer e, dessa forma, o livre-arbítrio tornar-se-ia apenas uma expressão alegórica encontrada nos livros religiosos. Se perguntarmos se Deus conhece o futuro e encontrarmos nas escrituras uma resposta para tal questão, se a resposta for positiva, talvez devêssemos perguntar: qual é a validade de toda a história nela contida? Pois certamente poderíamos considerar todas as ações e discursos proferidos no determinado livro, vazios e sem sentido.

sábado, julho 15, 2006

Liberdade e determinismo I I

Por Nicolas Piocoppi

Também com os gregos, nos tempos do “nascimento de sua tragédia”, o destino fora um tema bastante discutido como nos mostra o clássico grego Édipo Rei escrito por Sófocles em torno do século IV a.C. Nessa obra, Laio, o rei de Tebas, é advertido pelo oráculo de Delfos sobre o trágico acontecimento de que seu filho iria matá-lo e, em seguida, casaria com sua mulher. Diante desse mau presságio, Laio tenta matar o filho Édipo quando este é recém nascido pregando seus pés e largando-o numa estrada afastada do seu reino. Anos mais tarde, ao retornar para Tebas sem saber que era a cidade onde nasceu e quem é seu pai, Édipo, em uma briga com o próprio pai acaba por matá-lo e, mais tarde, casa-se com sua mãe, também sem saber quem era esta. Neste exemplo de Édipo a liberdade da vontade parece ser completamente possível ao passo que a liberdade da ação não, pois o destino, que era representado como um deus, imperava entre humanos e em suas relações diárias e não só entre humanos, mas também sobre os deuses e até mesmo sobre o próprio Zeus – Deus dos deuses na mitologia grega. Portanto todos eles poderiam livremente sentir vontade para qualquer coisa, mas suas ações eram todas pré-destinadas.

Contudo, seria a idéia de destino tal qual os gregos pensavam de fato uma “má” observação acerca das coisas? Se pensarmos na natureza e analisarmos a idéia da grande explosão – big bang – tudo no universo outrora fora um ponto infinitamente pequeno e de densidade infinitamente grande que quando explodiu lançou todas as peças do quebra-cabeça no espaço-tempo. Newton se admitisse a idéia de começo dos tempos e das coisas, certamente diria que uma ação efetuada no passado como, por exemplo, impulsionar uma corda esticada e com isso produzir uma ondulação na mesma, certamente essa ação se refletiria em todos os “pontos” do futuro que, nesse caso, seria o mesmo que uma pessoa que estivesse do outro lado da ponta da corda percebesse a ondulação na corda tempos depois. É claro, a lei de Newton que diz que “para toda ação existe uma reação de igual ou maior intensidade” descreve um pensamento inteiramente determinista, o que não é completamente aceito na atual ciência da natureza. Com o advento dos princípios da mecânica quântica a idéia que se tem das coisas é que se alguém efetuar um impulso na mesma corda citada anteriormente, não necessariamente alguém do outro lado receberá a ondulação provocada inicialmente e, assim, tudo tornar-se-ia uma questão probabilística. O que nos remete de certo modo às idéias de David Hume. Neste caso seria possível, pois, driblar as “imposições” do primeiro e “extraordinário” acontecimento. Mas aí, como diz uma personagem de um filme chamado “Waking Life”, teríamos de nos perguntar se a liberdade consiste em um cálculo probabilístico de acontecimentos. Talvez, se se pensar em um determinismo na óptica newtoniana, seja mais possível conceber a idéia de liberdade, ainda que haja todo o determinismo a agir sobre cada um, ou todo o destino.

Conhecimento em Hume e Kant

Por Nicolas Piocoppi

O texto a seguir consiste em observações elaboradas a partir do encontro do Grupo de Estudos sobre Kant, coordenado pela professora Marília Cortes de Ferraz, ocorrido em 25/06/2006.

Podemos afirmar que, quando pensamos nos conceitos “causa e efeito”, nossa mente cria um certo círculo vicioso de modo quase imperceptível. Para todo efeito existe uma causa e toda causa gera um efeito ─ o que significa que ambos os termos estão intimamente ligados um com outro. Porém qual seria esta ligação? Fatalmente Hume perguntaria ao sujeito quando este afirmasse a idéia da causa sobre o efeito observado. No exemplo da bola de bilhar Hume pergunta se a noção de impulso já está contida no simples movimentar da bola de bilhar sobre a mesa, e se dissermos que sim, que já está, fatalmente caberia indagar o que é que nos leva a afirmar tal coisa. Responder-se-ia, talvez: “ora a bola de bilhar precisa de um impulso para que possa se movimentar”, todavia esquece-se da possibilidade da mesa estar “torta” e haver uma certa inclinação de tantos graus de modo que cause o “movimentar da bola” ou, ainda, como disse Lebrun no texto “Hume e a astúcia de Kant”; “você poderá, vencido pelo cansaço, invocar a sua experiência passada e a de todos os homens” para justificar a idéia de impulso sobre a bola. Do mesmo modo pergunta-se se a cena que descreve uma explosão de uma casa contém já a idéia de bomba ou atentado. Hume diz que não, pois há tantas possibilidades de explosão quanto se pode imaginar e a de bomba é apenas uma delas. Desta forma, como é notório, a ciência em geral é praticamente reduzida à mera crença, pois trabalharia com as mesmas afirmações e o que diferenciaria uma simples crença de uma “crença científica” é que a ciência iria testar mais vezes o mesmo objeto antes de atribuir tal crença.
Kant ao descrever a idéia de um conhecimento sintético a priori parece retirar a ciência destes “maus lençóis” a que o ceticismo humeano a havia colocado e, portanto, perguntar-se-ia; é possível determinar a priori uma ligação de causa e efeito entre dois acontecimentos? Certamente que ao escrever um romance o sujeito que o escreve tem todo o conhecimento acerca das relações espaciais, cronológicas (condições físicas do ambiente em geral), psicológicas, etc, que as respectivas personagens da trama toda possuem. Deste modo qualquer relação de causa e efeito dita por este escritor sobre o romance tem completa valia, pois é ele quem determina todos os acontecimentos no mesmo. De forma análoga eu posso afirmar que um certo número “y” é igual a outro número “p” mais outro número “f” multiplicado por “x” e desta forma eu obtenho uma função simplória do primeiro grau de forma “y = p+ f.x”. A partir deste momento que estabeleço regras para a obtenção de y eu indico as relações necessárias para que se obtenha o mesmo – que nesse caso depende das incógnitas “f”, “x” e “p”. Como é uma função simples de uma única variável apenas, portanto, uma das três incógnitas citadas poderá ser entendida como sendo uma variável. Supõe-se que x seja a variável; “y” imediatamente torna-se uma “função” dessa variável x. Portanto, qualquer valor futuro de “x” acarretará imediatamente um efeito que neste caso será o de “dar valor a y”.
Deste modo, parece ser completamente possível que exista uma “ligação” entre “idéias” oriundas das observações acerca de dado objeto e assim é possível conhecer, por exemplo, a intensidade e dimensões de um campo elétrico, ou gravitacional ou eletromagnético a agir em determinado meio por simples questões de “causa e efeito” que têm a ver com as propriedades dos objetos que estejam a ser estudados.

terça-feira, julho 11, 2006

Ainda sobre a ordem e o caos


Caro Diego

Receio que nosso acordo não seja tão grande quanto você pensa. Gostaria de insistir num ponto. Você afirma que “ao menos não existe um caos tamanho que possibilite o surgimento de matéria”. Essa, a meu ver, é uma afirmação temerária, pois, na verdade, podemos afirmar apenas que não temos a experiência de ver a matéria surgir de tamanho caos, e não de que ele, de fato, não exista. Temos sim a experiência das transformações da matéria, mas a origem desta permanece oculta às nossas percepções. Não entendo por que você considera o argumento da subjetividade humana válido, mas, ao mesmo tempo, abominável em relação às leis físicas e químicas. Não estou segura, mas parece-me que a física quântica já admite a possibilidade de que não haja imparcialidade do sujeito em relação aos movimentos das partículas atômicas. Também não vejo como se possa demonstrar que se partirmos do pressuposto de que em tudo há subjetividade humana deveríamos declarar um caos absoluto. Ora, subjetividade não é igual a caos. Ao contrário, do modo como a subjetividade foi por mim expressa, pode-se dizer que ela tem uma estrutura própria de ordenação dos materiais apreendidos. A questão seria: é o universo que possui ordem ou é nossa subjetividade que o ordena de modo a torná-lo o mais compreensível possível?

Bem-me-quer, mal-me-quer


Querido Aguinaldo

Penso que a discussão promovida, de fato, causa um grande impacto nas noções comuns de bem e mal, precisamente no ponto que você mesmo toca. Ora, na medida em que se assume a tese de que a origem do mundo e a ordem que nele pode ser observada provêm apenas de um princípio gerador e ordenador intrínseco à própria matéria, poder-se-ia prescindir da crença na existência de uma divindade ordenadora que deu origem e imprime movimento a essa imensa máquina chamada mundo. Certamente isso estremeceria as bases da moralidade, tal como concebida de um ponto de vista religioso, uma vez que a tese de que a moral está fundamentada em princípios religiosos é muito mais difundida e bem aceita do que a tese contrária. Aqueles que acreditam que nossas noções de bem e mal são, tanto quanto nós mesmos, criadas por Deus e que, portanto, a moralidade é ditada por Deus, provavelmente concordariam com o personagem de Dostoievski. Mas eu, embora não possa afirmar como verdadeira a hipótese da matéria, não penso que é preciso acreditar em Deus e crer na imortalidade da alma para ter motivos para agir moralmente. A meu ver não é preciso mergulhar em águas teológicas para fundamentar a moralidade, pois nossos juízos morais, para que sejam válidos, não pressupõem necessariamente padrões teológicos de bem e mal. Eles podem repousar simplesmente em nossos naturais sentimentos de aprovação ou desaprovação experimentados diante de certas ações, comportamentos e inclinações. Também não vejo a necessidade de pressupor um mundo pós-morte, no qual a alma sobreviveria, para agirmos moralmente. Podemos ter razões suficientes para agir moralmente nessa vida mesmo, como por exemplo, o desejo de uma convivência pacífica ou uma consciência tranqüila, mesmo que dessa vida nada possa restar no futuro.