sábado, julho 30, 2016

Canção da Partida



Pousa de leve
Inda que um breve
Momento, a tua mão de neve
Sobre meu triste coração
Ainda é cedo…
Guarda o segredo
E pousa leve, como a medo,
Sobre minha alma a tua mão.
Como é que na alma
Pousa uma palma
De mão e como é que a acalma
De toda a dor que não tem fim?
Não sei sabê-lo.
No meu cabelo,
Ao menos, pousa, com desvelo,
Tua mão leve, de marfim.
Que é a vida? Nada.
A sorte? Estrada
Que leva só a alma enganada
Por onde vai e onde não quer…
Que é a alma? Um sono?
Ser? O abandono
De ser, e as folhas que no outono
O ouvido sente anoitecer…

[Fernando Pessoa. In: Poesia 1918-1930. Assírio & Alvim, 2005]

sexta-feira, julho 15, 2016

Anonimato

Caro anônimo, é minha atenção que você quer? Então, aproveite...



Quem é você para dizer qualquer coisa a respeito do que eu devo ou não fazer agora ou em qualquer tempo? Você não sabe de nada, my dear, absolutamente nada, a não ser o que você pesca e presume fuçando a vida dos outros pelos blogs e redes sociais. Por que não me envia teus comentários diretamente em meu email, em teu próprio nome? Tem medo de quê? De que eu te meta um processo? Larga de ser covarde!

Ao ler o que eu escrevo, fofo, você não consegue distinguir o que é realidade e o que é ficção. Não conhece a minha capacidade de confundir os sinais, jogar com ambiguidades, inventar e inverter personagens e situações, servir-me de estratégias literárias e recursos retóricos. Você não tem acesso ao que penso e sinto, tampouco à minha vida real e atual. Tem que se contentar com tua imaginação paranoica. Qualquer dado que você tenha é público, baby (coisa de facebook e blog). Minha vida real e privada não te pertence.

Qual o propósito de teus comentários “anônimos”? Não me esqueceu? Tá com saudades, 'amore' rs? Por que te interessa tanto meu blog? Aliás, por que você lê o meu blog? Por que te interessa saber o que gosto ou deixo de gostar? Por que te preocupas com o que sinto, o que guardo em meu coração ou faço da minha vida? Ora, por que você não me esquece?

Sabe de nada, inocente...


domingo, julho 03, 2016

Entorpecida


"Foi no teatro que conheci John e descobri o poder de uma voz. Ela fluiu para mim como notas de órgão, fazendo-me vibrar. Quando ele repetiu meu nome e errou a pronúncia, soou como uma carícia. Era a voz mais grave e encorpada que eu já tinha ouvido. [...] Ele seguiu falando, olhando para mim, mas eu não estava ouvindo. [...] Cada vez que ele falava, eu me sentia caindo em uma espiral vertiginosa, caindo nas malhas de uma voz maravilhosa. Era uma verdadeira droga."

[Nin, Anaïs | Delta de Vênus | p. 68-69]

quarta-feira, junho 29, 2016

Do abismo do desconsolo

Torturado, Amadeus se perguntava: - Como ela podia ter brincado com ele daquele jeito? Ter-lhe escrito que o coração dela era dele? Ter-lhe colocado no céu ao despertar-lhe as mais doces esperanças para, depois, lançá-lo ao abismo sem fundo do desconsolo? Não! Amadeus não podia compreender por que ela havia virado as costas para a paz, a serenidade, a sabedoria e o contentamento espiritual que ele lhe proporcionara por tantos anos. Não podia compreender por que ela jogava ao mar a vela que a levava longe, colocando-se, assim, à mercê das tempestades hedonistas que paralisariam sua alma aprisionada às demandas brutas de seu belo corpo. Era como se ela tivesse virado o rosto para seu próprio rosto. Sem o saber, iludida, afastando-se dele, afastava-se de si mesma, enterrando, assim, a possibilidade de sua alma receber o alimento que a mantinha governante de sua própria vida ─ a mais bela das vidas, o mais refrescante dos sopros. 

Dilacerado, Amadeus desejou que ela estivesse morta. Mas ela estava viva. Então, ele a matou em seu peito.



quinta-feira, junho 23, 2016

Imagética



[Petals From My Roots]



[The Grand Finale]

Brooke Shaden | Fine Art Photography | Galeria de Arte AFK 
www.arteafk.com


quarta-feira, junho 22, 2016

Nas teias do tempo


Já ouvi muita MPB na vida. Assim como muita música clássica, rock'n'roll, blues, soul, black music, jazz e tango (talvez eu tenha esquecido um ou outro gênero nessa lista). Mas já há algum tempo, em torno de uns 15 anos, a MPB em minha vida ficou um pouco de lado. Passei a ouvir mais outros gêneros que aprecio, embora algumas, ocasionalmente, ainda ouvisse. Mais ou menos entre 1994-1999, sempre ouvia uns dois ou três LPs que tenho da Nana Caymmi. Fiquei muitos anos sem ouvi-la. Mas no ano passado, quando comecei a viajar entre Londrina e Chapecó, quase todos os meses, durante os oito que duraram esse vai e vem, baixei as músicas que mais gosto (e nas melhores versões) e gravei um CD pra ouvir na estrada.

Imagino que tenha muita gente (talvez mais nessa geração mais jovem) que nem a conhece e, se viesse a conhecê-la, provavelmente acharia que ela é melíflua (palavrinha que adoro) demais. A maioria de suas canções (ao menos as que mais gosto) são cantadas numa espécie de lamento: falam do amor, da saudade, da dor e da amizade. Falam também do tempo, do vento, da solidão e da esperança. E, ainda, das mágoas, da ternura, da distância e do vazio. Além do talento e da interpretação da Nana, da voz doce e melancólica, o que me encanta em seus cantos é a poesia.

Entre seus compositores... Dorival Caymmi (seu pai), Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Aldir Blanc e Dolores Duran, alguns destes em parceria com outros mais. Todos grandes poetas.  Destaco aqui minhas preferidas, não necessariamente nessa ordem. Mais abaixo, destaco uma bem apropriada para saudar "a little sad day" de inverno 14 graus.

1. Olha o tempo passando
2. Resposta ao tempo
3. Não me culpe
4. Castigo
5. Por causa de você
6. O que é que eu faço
7. Ternura antiga
8. Se é por falta de adeus
9. Pela rua
10. Noite de paz


https://youtu.be/1sYSsbW44O8



[Pic: Forget about the past - by Phil Mc Kay]

quinta-feira, junho 16, 2016

Gramaticalmente incorreto

Long time ago... fiquei pasma ao ver a quantidade de erros de português numa única prova de um aluno de filosofia. Aluno universitário, diga-se de passagem, e não mais do primeiro ano. Não resisti e fiz uma lista.

interese ....................................... [interesse]
pocibilidade .................................   [possibilidade]
pensace ....................................... [pensasse]
pudesem ...................................... [pudessem]
poscível ....................................... [possível]
realizalo....................................... [realizá-lo]
ajudala ........................................ [ajudá-la]
prejuisos ...................................... [prejuízos]
impucionada ................................   [impulsionada]
nem um ....................................... [no lugar de nenhum]
aucilio ........................................ [auxílio]
travecia ...................................... [travessia]
cituações ..................................... [situações]
vise ........................................... [visse]
boua .......................................... [boa]
gostase ....................................... [gostasse]

A primeira pergunta que fiz a mim mesma foi: como será que ele chegou até aqui? Interessante é que o raciocínio dele até que era bom, razoavelmente articulado, revelando que havia compreendido satisfatoriamente o conteúdo. Lamentei que ele escrevesse tão mal. Dei-lhe um puxão de orelha educado, de modo a não ferir a sua autoestima. Apontei todos os erros e fiz um breve discurso a respeito do quanto era importante, em diversos aspectos, que ele escrevesse corretamente. Disse-lhe brincando:

- Imagine você escrevendo uma carta de amor com vistas a conquistar o coração de uma mulher bem instruída. Provavelmente ela declinaria de você rs. 

Sabem o que ele respondeu? 

- Ah, professora, mas eu já sou casado... (tive que rir).


Bom, é claro que alguém poderia defender a tese segundo a qual o importante é se fazer entender. Ok, fique à vontade. Defenda o que quiser. Eu não vou assinar embaixo mesmo...

domingo, junho 12, 2016

Prisoner

 Chained in necropolis of your memories


"the experience is a brutal teacher"
[Jack Lewis in Shadowlands]

[Sculpture by (Sir) Richard Westmacott in Liverpool Museum]

terça-feira, maio 31, 2016

Saudade




Magoa-me a saudade do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda em mim
os animais que atormentam o meu sono.

[out/1979]

Mia Couto
in: Raiz de Orvalho e Outros Poemas


domingo, maio 22, 2016

Vida, amor, valor e morte


Dia calmo, chuvoso, cinza, frio, manso e melancólico. Havia escrito algo que emergiu, de repente, em minha mente, enquanto tomava meu longo e lento banho quente (poderia ter se tornado um poema, mas não). Assim que saí e me enrolei na toalha, ainda com as mãos úmidas, peguei o celular e, para que meus pensamentos não se perdessem, derramei-os rapidamente no aplicativo Day One. Mais tarde, na hora em que eu ia enviar o esboço para meu email, num minuto de bobeira, sem querer, apaguei-o inteirinho (e não há nesse aplicativo nenhuma alternativa do tipo CTRL Z do Word que possa recuperá-lo). Lá se foram meus pensamentos que não voltam mais, ao menos do modo natural e espontâneo com o qual eu os havia escrito.

No banho, eu pensava sobre a morte ─ um dos temas filosoficamente mais interessantes. Quanto mais vivo e estudo, quanto mais o tempo passa (ou eu passo por ele), mais penso sobre a morte, embora eu a tenha pensado desde que me entendo por gente (como se diz por aí). Porém, antes d'eu começar a estudar filosofia, era um pensar diferente: mais leve, mais solto, digamos, mais descompromissado e menos constante. Com o natural e implacável avanço da idade, o estudo da filosofia, o acúmulo de experiências na vida e a literatura, a morte passou a ocupar mais insistentemente (e de maneira mais profunda e sistematizada) minhas reflexões. Quero dizer, quanto mais o inexorável ciclo da existência me aproxima da morte, mais penso sobre a vida ─ sua natural acompanhante ─ e no valor dos valores que elegi para a minha vida.

[Amore et Mortem. Roberto Ferri]

Mutatis mutandis, esse tema é o fio condutor da novela A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, que entra no assunto aqui porque me lembrei de um comentário dessa obra feito por Alain de Botton em seu livro Desejo de Status (com essa inflexão, perdi o fio da meada e vou acabar escrevendo tudo de modo muito diferente do que havia escrito. Anyway...)

Quem já leu a novela de Tolstói sabe que ela versa sobre a agonia e sofrimento de um respeitável e bem sucedido juiz que, ao saber-se acometido de uma grave doença, aos 45 anos, vê-se diante do abismo da morte. Ao dar de cara com a morte, Ivan passa a reavaliar todo o seu passado, "sua criação, sua educação e carreira" e, aos poucos, chega à desgraçada e infeliz conclusão de que viveu toda a sua vida “motivado pelo desejo de parecer importante aos olhos dos outros”, e que “seus próprios interesses e sua sensibilidade foram sacrificados para impressionar as pessoas que, só agora ele vê, não deram a mínima para ele" (Botton, p.211). "Os prazeres que Ivan Ilitch obteve com o trabalho eram os do orgulho; os prazeres que obteve com a sociedade eram os da vaidade..." (Botton, p.210).

"[...] A sensação de ter desperdiçado sua curta vida é composta pelo reconhecimento de que era somente de seu status que as pessoas gostavam, não de seu eu verdadeiro e vulnerável. Ele foi respeitado por ser juiz, por ser um pai e chefe de família rico, mas com esses ativos prestes a desaparecer, em agonia e medo, ele não poderia contar com o amor de ninguém” (Botton, p.211-212) ─ tudo o que ele mais precisava.

O comentário de Botton ilustra sua tese de que a causa mais primária e profunda do desejo de status (enquanto valor e importância que temos aos olhos do mundo), intrínseco à natureza humana, é o desejo de ser amado ─ um desejo maior do que o de possuir dinheiro, fama e influência. Quer dizer, todo desejo de status que, segundo Botton, naturalmente possuímos, tem sua fonte primária no simples desejo de ser amado. De uma perspectiva filosófica e histórica (eu diria também psicológica), Botton apresenta algumas teses acerca das causas da obsessão contemporânea por status, e sugere, posteriormente, algumas soluções (que vou chamar aqui de pílulas filosóficas) que poderiam nos propiciar uma existência mais plena e significativa do que aquela que busca prestígio, fama e renome.

Ao rememorar os comentários de Botton sobre a obra de Tolstói, eu pensava no valor de todas essas coisas e, especialmente, no valor de certas pessoas em minha vida ─ aquelas que contribuíram para que ela se tornasse melhor, mais rica, exuberante e plena de significado. Pensava também no quanto o caminhar implacável para a morte (apesar de toda jovialidade de espírito, forma e movimentos que ainda habita o meu ser) faz com que eu reavalie o valor de todos os valores que nutri e nutro hoje em minha vida.

Mas o texto que eu havia escrito era completamente diferente. Mais inspirado, solto e saltitante. Também não fazia referências às obras supracitadas. A leitura delas foi apenas o ponto de partida. Na verdade, eu começava assim: ei, você aí, meu querido leitor, tão longe e tão perto, antes que seja tarde, deixe-me perguntar: o que torna tua vida mais inspirada e plena de significado? O que a faz valer a pena? O que é que contribui verdadeiramente para que ela viceje? O que a torna mais garrida? Quem, verdadeiramente, se importaria com a tua morte? E por aí eu ia... e eu mesma respondia: tens quase tudo que queres. Falta-te pouco, muito pouco. Mas esse pouco significa muito.

Tais pensamentos nada mais eram, pois, do que um diálogo sobre a vida, o amor e a morte  ─  bem como o valor de todos esses valores ─ travado entre o meu eu lírico e o meu leitor igualmente lírico (ou, se se quiser, meu interlocutor imaginário), enquanto tomava um longo e lento banho quente.

domingo, maio 15, 2016

Lamento


A areia jaz sob meus pés
o relógio decompõe o tempo
frio
lento

já não há mais palavras
meus lábios estão mudos
apenas gemem
febricitantes

no silêncio da rocha
um ferimento
o barco afundou no cais
vento.

......................................
[marília côrtes / 2016]

terça-feira, maio 10, 2016

Herética


                               que deus me perdoe a heresia, 
                               e os moralistas de plantão também,
                               mas não resisti à ousadia,
                               tão divina e tão mundana, 
                               tão sagrada e tão profana.

                               .........................................

[marília côrtes / 2016]



Lambertz 2012 calendar
photo by Jose Manuel Ferrater Paz Vega

domingo, abril 24, 2016

Por sua causa


"Minha esquiva e linda Elena, estou em Paris de novo, por sua causa. Não pude esquecê-la. Tentei. Ao se dar por inteira, você também me tomou inteira e completamente. Você vai me ver? Você não recuou e se retraiu além de meu alcance para sempre? Eu mereço, mas não faça isso comigo, você estará assassinando um amor profundo, aprofundado pela luta dele contra você. Estou em Paris..."

[Anaïs Nin. Delta de Vênus, p. 128]



terça-feira, abril 19, 2016

Hume e João Paulo Monteiro

Before yesterday, meu orientador de doutorado (uma figura sui generis) passed away. Fui sua última orientanda. Na época, a convite de meu colega e amigo Jaimir Conte, escrevi uma resenha sobre a primeira edição brasileira de seu livro 'Hume e a Epistemologia' (revisão do também meu colega e amigo Frederico Diehl). 


Tive também o prazer de trazê-lo a Londrina para uma conferência na UEL, cujo evento foi promovido pelo Departamento de Filosofia; Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea; e Especialização em Filosofia Política e Jurídica.

Em homenagem a ele, deixo aqui 'mon adieu affectueux' e o link de acesso à resenha: 



domingo, abril 10, 2016

Beleza e melancolia


Eis abaixo um exemplo do que Hume chama de "delicadeza do gosto" [delicacy of taste]: uma sensibilidade apurada para a beleza e para a deformidade nas ações, livros, obras de arte, ciências, etc... Refiro-me aqui, especialmente, à fusão entre pintura, música e poesia que o vídeo apresenta.

"Nada é tão benéfico ao temperamento quanto o estudo das belezas, seja da poesia, da eloquência, da música ou da pintura. Estas proporcionam uma certa elegância de sentimento estranha ao resto da humanidade. As emoções que elas excitam são suaves e ternas. Elas libertam a mente das pressões dos negócios e interesses; estimulam a reflexão; predispõem o espírito à tranquilidade; e produzem uma agradável melancolia que, de todas as disposições da mente, é a mais adequada ao amor e à amizade" (Essays I. Of the delicacy of taste and passion, #6).

Then, dear reader, para tornar teu domingo, tua vida e teu gosto mais delicados e sensíveis, take a look ... and... 


Don't explain


Edward Hopper & Nina Simone



quarta-feira, abril 06, 2016

Olvido


Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.

A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.

O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos.

Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...


[Camilo Pessanha | in 'Clepsidra' ]



                                            

quinta-feira, março 31, 2016

O filósofo perdido no homem


Para não dizerem que eu só falo de amor (rsr), ao mexer hoje em meus arquivos, encontrei a seguinte crítica de La Bruyère [1645-1696] ao estoicismo. Diz ele:

"O estoicismo é um divertimento do espírito e uma ideia semelhante à da República de Platão. Os estoicos inventaram que se podia rir na pobreza; que se podia ser insensível às injúrias, à ingratidão, à perda dos bens como à dos amigos e parentes; que a morte devia ser olhada friamente, como coisa que não deve alegrar nem entristecer; que o prazer e a dor não nos venceriam; sentir o ferro e o fogo dilacerando ou queimando o corpo, sem exalar um suspiro, nem verter lágrimas; a esse fantasma de virtude e de constância assim imaginado, aprouve-lhes dar o nome de sábio. Deixaram aos homens todos os defeitos que nele encontraram e quase não modificaram nenhuma de suas fraquezas. Em vez de fazer dos vícios pinturas horríveis ou ridículas que lhe servissem para corrigi-lo, mostraram-lhe o perfil de uma perfeição e de um heroísmo de que ele é incapaz e exortaram-no assim a realizar o impossível. Desse modo o sábio, que não o é, ou que é somente imaginário, julga-se naturalmente superior a todos os acontecimentos e a todos os males; nem a gota mais dolorosa nem a cólica mais aguda poderiam lhe arrancar uma queixa; o céu e a terra podem desabar sem que consigam arrastá-lo em sua queda e ele haveria de permanecer firme sobre as ruínas do universo, enquanto o homem que perdeu realmente seu sentido exaspera, grita, se desespera, escancara os olhos e perde a respiração só por um cão perdido ou por uma porcelana feita em pedaços" (La Bruyère, Jean de. Caracteres ou costumes deste século. Do homem, §3. p.177-178). 

Anotei essa passagem porque quando a li me lembrei de algumas críticas de Hume que vêm ao encontro das de La Bruyère, embora não se possa dizer que Hume não seria simpático a, ao menos, algumas teses estoicas, o que aqui não vem ao caso.

No contexto da problemática relação entre a divindade e a existência do mal no mundo, Hume [1711-1776], na Investigação sobre o entendimento humano, ao tratar do tema da liberdade e necessidade, antecipa algumas objeções que podem ser levantadas contra a teoria que acabara de apresentar. Uma delas, de caráter religioso, emerge da conclusão inevitável que se segue a essa teoria, qual seja, a de que ou as ações humanas não são criminosas, ou, se forem, é a divindade, e não o homem, responsável por elas - o que comprometeria, no mínimo, os atributos da perfeição e suprema benevolência divinas. Uma dessas objeções, eu dizia, defende que “após um rigoroso exame de todos os fenômenos da natureza, pode-se concluir que o todo, considerado como um sistema único, está em cada período de sua existência, ordenado com perfeita benevolência, e que a máxima felicidade possível resultará, ao final, para todas as criaturas, sem a menor mistura de mal ou miséria no sentido positivo ou absoluto” (IEH 8.2.§34).

No entanto, Hume observa que, dessa ampla perspectiva, filósofos, entre os quais os estoicos, extraíram, em meio a todas as aflições, tópicos consolatórios que se revelaram completamente ineficientes. Eles tentavam mostrar a seus discípulos que os seus sofrimentos eram, ao fim e ao cabo, bens para o universo. Porém, Hume adverte-nos de que "embora essas considerações sejam agradáveis e sublimes, logo se revelam fracas e ineficazes na prática. Certamente iríamos antes irritar que apaziguar um homem que sofre as dores torturantes da gota ao louvarmos a retidão das leis gerais que produziram os humores malignos em seu corpo e os conduziram, através de canais apropriados, aos tendões e nervos onde agora provocam aqueles agudos tormentos" (IEH 8.2.§34). 

É provável, segundo Hume, que a adoção de um tal panorama possa, por um momento, aprazer a imaginação de uma mente especulativa que não se encontre em situação de desconforto e insegurança, mas não pode habitar constantemente a índole de um homem, mesmo que este não esteja perturbado por dores ou sofrimentos. E, evidentemente, será ainda menos constante a adoção de tais amplas e remotas perspectivas quando o homem estiver acometido por intensas dores e infortúnios (cf. IEH 8.2.§34).

Eis aí, pois, o ponto no qual "o filósofo se encontra perdido no homem" (cf. Essays. O Cético, nota ao § 51).


sexta-feira, março 25, 2016

Flutuações anímicas


O encontro havia sido marcado e o assunto anunciado. No exato momento em que ia tocar a campainha, a porta se abriu de repente. Olharam-se, de modo oblíquo, antes que um sorriso contido cintilasse involuntariamente em seus rostos. Ela entrou como um vulto. Sua alma adiantou-se ao corpo, tamanha a ansiedade. 

Com a respiração oprimida e o coração descompassado, passou em rápida revista a disposição daquela sala, cujos objetos lhe eram tão familiares. O pequeno sofá eternamente desconfortável. A enorme quantidade de livros, caixas e papéis espalhados pelo chão, mesa e prateleiras.  O móvel de bebidas destiladas. O abat-jour que não funcionava há tempos, assim como o velho aparelho de som igualmente inutilizado a ocupar o espaço, testemunhando, entre outras coisas, a longa história daquela união que constantemente desafiava o improvável. Notou a falta do belo tapete no qual, há mais de 15 anos, rolaram pela primeira vez. O lustre sobre a mesa que, sozinho, de vez em quando, bruxuleava rapidamente, e tantos outros objetos tão bem conhecidos, dentre os quais aqueles que evidenciavam a paixão dele pelo seu glorioso time de futebol.

Após sua alma retornar ao corpo, atravessou a sala como uma flecha. Não deu um beijo nele, um abraço, nada. Disse apenas oi. E sentou-se no sofá. Ele, por sua vez, puxou uma cadeira posicionando-se na diagonal. Sentindo-se incomodada, ela se virou de frente para ele e tirou os sapatos, colocando seus pequenos pés no pequeno e desconfortável sofá. 

Um silêncio opressor pesou sobre eles. Naquele instante, face to face, teve a mesma sensação de Humbert Humbert descrita por Nabokov em sua obra-prima Lolita: o pulso a marcar, num minuto, quarenta pulsações, no outro, cem.

Alguns meses antes, ela esteve madrugadas inteiras a escrever torrencialmente. Ao expressar suas flutuações anímicas diante dos sinais confusos que ele passara a transmitir após o primeiro reencontro, depois da última separação, os dedos crepitavam nos papéis. 

Replicadas à exaustão, propusera a si própria mil questões seguidas de mil respostas diferentes para cada uma. Ordenava-as, desordenava-as, reordenava-as, ruminando toda aquela parafernália de sentimentos, impressões e ideias que se sucediam em sua mente, na tentativa de concebê-las tão claras e distintas quanto as verdades matemáticas ─ uma tarefa inglória, por certo. De qualquer modo, era preciso começar a falar tudo que naquele momento estrangulava-lhe a garganta. Estava resoluta em não mais voltar. E era mister que fosse direta e reta. Porém, na imperiosa presença e argumentação dele, e diante de olhares tão íntimos, suas convicções se afrouxavam, suas dúvidas voltavam a lhe atormentar, e o espelho de sua mente, tantas vezes polido pela reflexão, embaçava novamente devolvendo-lhe a angústia da incompreensão.

Queria entender por que, afinal, ele resolvera quebrar o silêncio terminal que havia decretado três meses antes, depois de alguns reencontros e trocas de cartas que mais trouxeram dor do que propriamente alegria e prazer a ambos, dado o tempo dilatado de separação, no qual um havia aprendido a viver sem o outro, e em virtude do acúmulo de mágoas, rancores, remorsos e arrependimentos que passaram a habitar seus corações indelevelmente feridos? 

Após seis horas de conversas entremeadas por acusações recíprocas e alguns instantes sublimes, nos quais a intimidade e cumplicidade voltaram a reinar, chegaram à conclusão de que a questão não era mais se um havia aprendido a viver sem o outro, mas se a vida de ambos seria melhor, mais rica, prazerosa, promissora e feliz, com ou sem o outro.




quarta-feira, março 23, 2016

Le merveilleux




"Cada viagem despertava nela a mesma curiosidade e esperança que se sente antes da cortina se abrir no teatro, a mesma ansiedade e expectativa alvoroçantes. 
[...] 

Seus anseios eram vagos e poéticos. Se fosse brutalmente questionada sobre o que estava esperando, poderia ter respondido:
'Le merveilleux.'"

 

NIN, Anaïs. Delta de Vênus; histórias eróticas. Tradução de Lúcia Brito. - Porto Alegre: L&PM, 2015, p.107.

[photo by Paulo Nozolino]

quinta-feira, março 10, 2016

Momento Porteño


Eles chegam ao hotel en la calle Esmeralda. Pegam a chave do quarto e entram no pequeno e antigo elevador. Entra com eles também um senhor de uns 58 anos, tradicionalmente trajado, um pouco baixo e gordo, com um pacote de supermercado nas mãos. Esse senhor desconhecido não consegue tirar os olhos dela. E parece perder o fôlego ao medi-la, indisfarçadamente, de cima a baixo. 

Ela fica ligeiramente constrangida (bem ligeiramente, pois não costumava ficar assim ao ser admirada, ao contrário, sentia-se, em geral, muito confortável com isso) e se aproxima um pouco mais do namorado, como quem diz para o cara: - olha, eu estou acompanhada! 

Nessa altura, o namorado, em silêncio, só observa. O camarada não resiste e diz a ele: muito bonita sua namorada! 

O rapaz, senhor de si e da situação, agradece esboçando um sorriso discreto e educado. Ela apenas sorri. O desconhecido não se contém. Num movimento espontâneo (e certamente temerário) tira uma garrafa de vinho do pacote e oferece-o, gentilmente, a ela. 

Well, não escapa ao casal a percepção de que seria menos arriscado se o cara tivesse oferecido a garrafa ao namorado, e não a ela. Mas, enfim, meio sem chance de recusar, dado o clima cortês no qual o episódio se dava, ela toma o vinho em suas mãos e agradece com um olhar e sorriso acanhados. O namorado, com a reserva de um gato, também sorri. Não fala nada. Mas pensa: - quê atrevimento! 

Eles descem do elevador no mesmo andar e se despedem daquele senhor. Entram no quarto um pouco desconsertados com aquela cena inusitada. Olham-se e riem. Ela aguarda, sem saber muito bem o que dizer, o que o namorado dirá. Ele respira fundo, olha bem nos olhos dela, dá um sorriso descontraído e, beijando-lhe as mãos, diz: 


- "Ele te admirou. E eu admirar-me-ia se ele não te admirasse, se ele fosse capaz de permanecer indiferente à tua beleza, charm e presença. Pois se ele é realmente um homem sensível, não poderia deixar-te passar despercebida..."



[Photo by Jonathan Carroll]

quarta-feira, março 02, 2016

Se...


            Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta
            uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
            e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

           Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
           das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
           mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
           porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
           a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

          o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
          [...] – longe de ti, o corpo não faz
          senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
          as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
          espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
          Se me abraçares, não partas.


[ Maria do Rosário Pedreira | O Canto do Vento nos Ciprestes | Gótica | 2007 ]

sábado, fevereiro 13, 2016

That's the point

Eis aí algo em que eu acredito.
Quem é do métier sabe...


Trabalho e tédio. ─ Buscar trabalho pelo salário ─ nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito: ─ é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer [...].


[Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, Livro I, Aforismo 42, p. 85].

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

A voz da divina Loucura


Com a palavra, a Loucura:


"Sou difamada diariamente pelos homens, estes seres que estão acostumados a ferir minha reputação e conheço muito bem quanto soa mal o meu nome aos ouvidos dos mais tolos, mas me orgulho em vos dizer que esta Loucura que estais assistindo é a única que pode alegrar a vida dos deuses e dos mortais. A comprovação disso está na incontrolável alegria que brilhou nos olhos de todos quando eu surgi sublime, diante deste abundante palco" (p.17).



Pow! Acho essa abertura do Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, um desbunde. O livro é bem louco rsr, interessante e polêmico. Nele, é a Loucura quem vos fala. Ela está ali, personificada na voz de uma deusa que, como ela mesma diz, basta a sua "nobre presença para conseguir aquilo que vigorosos oradores jamais alcançariam com um fastidioso e meditado discurso para expulsar de vossa alma... o tédio" (p.18). 

Extremamente irônica, a obra é uma sátira à sociedade dos séculos XV e XVI - um discurso pilhérico proferido pela própria Moria (e, note-se, esse detalhe é importante, a Loucura é feminina - é mulher). Esta, por usa vez, ridiculariza a sabedoria, os sistemas, os costumes, as crenças e os homens, incluído-se, aí, os acadêmicos, soberanos e papas. Ela deseja mostrar que tudo que diz é a cristalina verdade. Não há, na Loucura, nenhuma falsa modéstia. Ao contrário, numa roupagem excêntrica, trata-se de um auto-elogio, de uma auto-celebração, afinal, como ela mesma diz: "quem poderá fazer a minha pintura com mais veracidade do que eu mesma" (p.19)? Ela diz tudo que lhe vem à boca, sem papas na língua. E se regozija tremendamente com isso (p.20). 

"Adeus, pois, ilustres e caros amigos! Aplaudi, vivei, bebei, ó muito nobres iniciados nos segredos da Loucura" (p.191). 


Foi mesmo um prazer insano.

The grand finale
William Henry Barribal


(Rotterdam, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa. São Paulo: Sapienza, 2005).

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Silêncio eloquente

VI

Por mais que se fale ou pense ou
escreva, eis o veredicto:
sobre o que não há de ser dito
deve-se guardar silêncio.
Ser, não-ser, devir, dasein,
ser-pra-morte, ser-no-mundo:
Valei-me, são Wittgenstein,
neste brejo escuro e fundo
sede minha ponte pênsil,
escutai o meu não-grito:
pois quando não há o que ser dito
deve-se guardar silêncio.

[Paulo Henriques Britto | Sete peças acadêmicas | Tarde | 2007]


 kasimira miller by maggie west

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

O último suspiro

Lembrei-me que uma vez li, ouvi ou vi num filme (de fato não sei onde nem exatamente quando) um epitáfio escrito assim: 

Excuse my dust! 

Achei engraçado. Fiquei com aquela frase na cabeça, curiosa, imaginando quem a teria escrito. Não tinha a menor ideia de quem era. Achei que a tinha visto num filme do Woody Allen (mas não tinha certeza). Ao menos é bem a cara dele: esse estilo de tirar sarro das próprias desgraças e também das alheias. Ele é mesmo um mestre do bom humor  do humor sarcástico, intelectualizado, corrosivo, meio nefasto and... Enfim, eu gosto desse estilo. 

Pois bem, fustigada pela curiosidade, resolvi jogar a frase no Google (ai, como é fácil hoje em dia querer saber alguma coisa). Coloquei lá: Excuse my dust! E descobri que a frase é de ninguém mais ninguém menos que a espirituosa e extravagante Dorothy Parker. Na época, eu ainda não a conhecia (excuse my ignorance, please). 



Li algumas coisas bem interessantes sobre ela e segui um link que me levou a um Ensaio intitulado O que eles disseram antes do último suspiro. Um texto divertido, de puro entretenimento mesmo, gentilmente cedido pelo autor para o site Digestivo Cultural, mas que foi originalmente publicado no "Caderno2", de O Estado de São Paulo, em 15 de junho de 1996 (ou seja, long time ago). (e eu já escrevi esse post há uns três anos. Sim sim, ele estava engavetado).

Ali, o autor Sérgio Augusto apresenta o que algumas eminentes personalidades disseram antes do último suspiro. Ele conta, por exemplo, que o poeta inglês John Keats, embora tenha sucumbido à tuberculose na presença de uma testemunha (o pintor Joseph Severn) disse: "'Vou morrer naturalmente. Não se assuste. Graças a Deus chegou a minha hora’, tendo ao fundo uma sonata de Brahms". Segundo Augusto, "John Keats será sempre lembrado pela inscrição que sugeriu para a sua tumba: 'Sinto as flores crescendo em cima de mim'" (achei belo, meio engraçado e nefasto ao mesmo tempo). 

Já George Bernard Shaw, "ranzinza como ele só, irritou-se com a enfermeira que se esfalfava para mantê-lo vivo: ‘Irmã, você está tentando me manter vivo como uma peça de antiguidade, mas eu já acabei, cheguei ao fim, estou morrendo.’ E morreu mesmo. Com uma antiga idade, 94 anos.”

Por sua vez, “o teatrólogo e grande frasista da Broadway Wilson Mizner [nunca tinha ouvido falar, excuse my ignorance again], ao sair do coma, ainda teve cabeça para dar um fora no padre que tentava convencê-lo dos benefícios da confissão: ‘Por que me abrir com você se já falei com o seu patrão?’”

Há, no Ensaio, alusões aos últimos suspiros de Oscar Wilde, Goethe, Rousseau, Hegel, Stanislau Ponte Preta, Assis Chateaubriand, Voltaire, Diderot, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tolstoi, Platão, Sócrates e outros mais.

Mas estava eu lá lendo e me divertindo quando, no meio do caminho, tropecei numa pedra. Augusto diz que Sócrates “revelou-se um moribundo tão pragmático quanto P.T. Barnum" (até então, mais um ilustre desconhecido para mim). Segundo o autor, Sócrates, "antes de baixar sepultura, pediu a Cristo que saldasse uma dívida para ele”. 

Ah? Helooooo!!! Será que li bem? Como assim? Sócrates pediu a Cristo? (mas como poderia se morreu em 399 antes de Cristo?). Não conheço as fontes de Augusto, mas conheço a frase de Sócrates. Ela está aqui ao meu lado, no Fédon de Platão. As últimas palavras de Sócrates foram: “Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida” (p.132). Ops, quer dizer que Críton, de repente, tornou-se Cristo? Ora, certamente o autor não cometeria esse anacronismo tão crasso. Só pode ser um erro de digitação (perdoemo-lo, pois).

Well, o Ensaio termina ressuscitando “a mais divertida de todas as despedidas desta vida: Protagonista: o trêfego José do Patrocínio Filho, finado em 1929. Quando estava nas últimas, arruinado por drogas e biritas, sem apetite para nada, seu médico apelou para um alimento especial: leite humano. Ao ver a dificuldade com que a enfermeira tirava o leite dos belos e fartos seios de uma doadora profissional, para depositá-lo numa minúscula colher, Zequinha do Patrocínio arregalou os olhos e sugeriu: ‘Doutor, não é melhor eu mamar’? E em seguida foi mamar no além”... há há há.


Good bye...

segunda-feira, janeiro 25, 2016

Ossos do Ofício


[Man Ray. Anatomies, 1929]


                        O que se pensa não é o que se canta.
                        Difícil sustentar um raciocínio
                        com a rima atravessada na garganta.
                        
                        [...]


[Paulo Henrique Britto. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007].

segunda-feira, janeiro 04, 2016

The bath


Há tempos guardei essa foto em meus arquivos. Volta e meia olhava pra ela e me perguntava: mas por quê? Por que guardei essa foto? Ora bolas, porque achei bonita. Não há nenhum mistério nisso. Nenhuma explicação profunda ou abstrusa, como dizem os filósofos. 

Agradam-me, simplesmente, a beleza e a circunspecção da moça. Sua pose, suas luvinhas pretas, suas pulseiras e seu cigarro na mão esquerda; a mão direita apoiada no queixo, uma certa aridez na paisagem desfocada ao fundo, silenciosa; os fartos cabelos loiros presos no coque, o discreto brinquinho na orelha direita, os braços fortes, a tatuagem, o olhar de soslaio, o fato de estar nua, de costas, a contemplar tal paisagem, talvez o horizonte perdido, o nada, ou mesmo a si mesma. Não se sabe. Não se sabe o que ela vê para além dos limites da foto em branco, preto, e seus diversos tons de cinza.

O título desta foto, de Alexander Malchev, é The Bath. Porém, por mais que eu tente, não consigo ver água nessa banheira. Se ela está a tomar um banho, deve ser, ou ao menos parece ser, um banho de espera: aliás, um belo banho de espera, diga-se de passagem. 

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Sorry


Ela acorda cedo, desce a escada e avista uma aranha. Tira rapidinho o chinelo e... paaaaaá nela! Depois, com ar de mulher corajosa, conta pra filha: 
- Tive que matar uma aranha hoje... 
A filha olha os restos mortais da defunta e diz:
- Ahhh mãe... não era. Era um sirizinho preto. 
A mãe, surpresa, exclama: 
- Ai que dóooo! um filhotinho. Putz, tava sem óculos...