sábado, julho 01, 2017

O poeta pergunta a seu amor...

             
               "[...]
             
                Não viste pelo ar transparente
               uma dália de penas e alegrias
               que te mandou meu coração quente?"


surreal digital paintings 
by aykut aydoğdu


F. García Lorca | Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit | Tradução de William Agel de Mello | SP | MEDIAfashion | 2012 | p.27

domingo, junho 25, 2017

Canto do amor impossível


Meu amor impossível
eu sou, na dor que me avassala,
o transeunte solitário perdido na tormenta.

O vento ulula, a chuva açoita, o raio estala,
e não há uma porta amiga,
um cálido refúgio
que me acolha e aqueça,
que me distraia e console
do rigor da tormenta.

O único refúgio serias tu,
e tu estás para além da muralha intransponível
que marca os limites do possível.

[ Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Inventa 2014 | p. 126 ]


segunda-feira, junho 12, 2017

A espera do silêncio


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio




[ Mia Couto | Amei-te Sem Saberes | In: Raiz de Orvalho e Outros Poemas | Editorial Caminho | Lisboa | 1999 ]


quinta-feira, junho 01, 2017

Frágil e incerta


Há pouco, ao me levantar da cadeira na qual estudava, levei um tombo ridículo (como em geral são os tombos). Virei-me rapidamente para ir até a sala buscar meu celular e tropecei feio no adorável cão da casa que, por sua vez, descansava silenciosamente logo atrás da cadeira. Chegou ali sem que eu, absorta, o tivesse percebido. Ele é meio cor de creme, o piso da casa é cor de creme e até eu sou meio cor de creme. Diante desse cenário de cores e tons praticamente indistintos, não vi nada na minha frente, afora, após o tombo, o chão na cara, uma escuridão momentânea, seguida de algumas estrelas piscando. Caí dura, de corpo inteiro no chão, feito bloco de pedra, pois o silente e vigilante companheiro ─ que é grande e alto ─ me passou uma rasteira. Levantou-se rapidíssimo deslocando meus dois pés do chão ao mesmo tempo. Sem qualquer apoio, a queda foi praticamente livre. Digo praticamente porque consegui amortizá-la um pouco com as duas mãos. As veias de meus pulsos saltaram grossas e roxas. Meus ossos gritaram. 

Doeu pacas!!! Cheguei a tocar o nariz e a testa no chão. Junto a essa cena tragicômica, senti uma pontada nas escápulas, no pescoço, e uma forte dor no peito. Ninguém assistiu ao espetáculo, a não ser o próprio Bóris ─ doce cão, amigo, querido, e cheio de expressão nos olhos. Sem ninguém para me acudir no momento, fiquei ali por um tempo, estatelada, gemendo muitos ais. Aos poucos, fui me levantando. Toda trêmula e doída.

Pensei: tive muita sorte. Se eu tivesse caído de modo um pouco mais desajeitado, as consequências poderiam ter sido desastrosas. Eu poderia ter quebrado o nariz, ou o osso da fronte, um ou outro ou ambos os braços, ou uma clavícula, os pulsos, ou mesmo o pescoço ─ um pensamento trágico nunca pode faltar em se tratando de moi...

Ah... como a vida é frágil e incerta! Eu poderia ter me quebrado toda. Um tombinho de nada (na verdade, um tombão ridículo!) e tudo que eu programei para a semana que vem, ou mesmo para o resto de minha vida, seria revirado, alterado ou afundado.

[Boris: cheio de expressão nos olhos]


E por falar em vida frágil e incerta, a gente ouve falar daquelas pessoas que morrem num tombo besta porque caíram de mau jeito. Pensei: ainda que eu esteja agora toda dolorida, com hematomas nos dois pulsos, caí de bom jeito, assim como capotei de bom jeito na famosa estrada da morte, em outubro de 2016, a mais ou menos 100 km de Curitiba. Nessa capotada, que de cômica não teve nada (uma clássica rodada no óleo de uma pista sob garoa), também tive muita sorte. Saí praticamente indene. Não fiz nenhum corte, não verti nenhuma gota de sangue, não quebrei um osso sequer. Ganhei apenas alguns hematomas abaixo dos joelhos, nas costelas e na clavícula esquerda, além de diversos incômodos práticos e dores pelo corpo todo (como se tivesse levado uma surra). Mal acreditei que na hora do acidente não fiquei nem tonta e saí andando, embora estupefata, imediatamente após o carro parar embicado numa vala do canteiro que divide as pistas. Mas, para a sorte do meu destino, "esse fantasma sincronizador" (como diz Humbert Humbert em Lolita), com as rodas no chão. Para não dizer que não perdi nada, perdi alguns materiais impressos de estudos (que foram parar na lama), um brinco da orelha esquerda, meu Celtinha "bala" ─ tão leve, rodado e cheio de spirit ─ e mais algumas ilusões.

.............................................
[marília côrtes / 2017]

sexta-feira, maio 26, 2017

Diálogos sobre a religião natural


"No caso dos raciocínios teológicos [...] 
somos como forasteiros numa terra estranha,
aos quais tudo parece suspeito" (D 1 § 10: 37).

[ William Blake | O primeiro dia |1794 ]

Os Diálogos Sobre a Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e publicados em 1779, constituem-se num dos mais importantes e influentes textos filosóficos de Hume, bem como num dos mais belos e engenhosos exemplos de diálogo filosófico. E embora a obra seja voltada para a temática da filosofia da religião, ela é uma contribuição de primeira grandeza para investigações filosóficas mais gerais como, por exemplo, metafísica, teorias do conhecimento, e também para a própria filosofia moral ou ciência da natureza humana que Hume pretendeu fundar. Nesse sentido, o texto dos Diálogos é um clássico filosófico amplamente reconhecido que figura entre as obras mestras de Hume.


Acesso ao cronograma do evento em http://filosofia.ufsc.br/

I'll be there...


quarta-feira, maio 24, 2017

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste.


Carlos Drummond de Andrade | 'A Um Ausente' | In: Farewell | Poesia Completa | Editora Nova Aguilar | Rio de Janeiro | 2007



Qualquer ser humano que conhece o amor e a dor da perda de um amor, ou de um amigo, sentir-se-ia, creio eu, profundamente tocado por esse belíssimo e penetrante poema. Mas nem todos, talvez, procurassem saber a trágica história que ele conta. A quem interessar possa, deixo aqui o link que a conta, por Marcelo Bortoloti:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1659927-a-homossexualidade-na-vida-e-na-obra-de-carlos-drummond-de-andrade.shtml


quarta-feira, maio 17, 2017

Dia Internacional contra a Homofobia




"[...]  Mesmo coberto de lama, eu te louvarei; dos abismos mais profundos, clamarei por ti. Na minha solidão estarás comigo. [...] O que a sabedoria representa para o filósofo, o que Deus representa para o santo, tu és para mim. Manter-te na minha alma, tal é o objetivo dessa dor que os homens chamam de vida. Ó meu amor, que eu amo acima de todas as coisas, narciso branco no campo agreste, pensa na dura tarefa que te compete, tarefa que só o amor pode tornar mais leve. Mas não te entristeças por isso, antes sê feliz por ter enchido de amor imortal a alma de um homem que agora chora no inferno, mas leva o céu no coração. Eu te amo, eu te amo, meu coração é uma rosa que teu amor fez florescer, minha vida é deserto arejado pela brisa deliciosa do teu hálito e cujas fontes frescas são teus olhos; a marca de teus pezinhos cria vales de sombra para mim, o aroma de teus cabelos é como a mirra; por onde passas, exalas o perfume das acácias.

Ama-me sempre, ama-me sempre. Foste o amor supremo, o amor perfeito da minha vida; não pode haver outro.

[...] 

Ó mais doce dos meninos, mais amado dos amores, minha alma busca a tua, minha vida é tua vida e em todo o mundo de dor e prazer, és meu ideal de admiração e alegria." 

[ De Oscar Wilde para Lorde Alfred Douglas | 1895 ]


[ Cartas de amor de homens notáveis | Editado por Ursula Doyle | Tradução de Doralice Lima | Rio de Janeiro | BestSeller | 2010 | p.140-141 ]

terça-feira, maio 09, 2017

Ausência


"Antes, tu estavas. Agora, tu não estás mais. O agora é um agora sem ti. Lá fora, tão mansamente cai a chuva. Mas é uma chuva sem ti, e não importa quão mansamente ela caia, não importa nem mesmo que seja ela ou não a chuva, porque ela, assim como todas as outras coisas, são coisas sem ti. E eu mesmo – eu respiro sem ti, meu coração pulsa sem ti em algum lugar fora do lugar do coração, eu me olho no espelho e verifico que sou uma face sem ti, meus olhos sem ti são dois buracos ocos sem serventia, já que a única serventia que eles tinham era olhar-te e agora, sem ti, eles miram estupidamente o vazio. Não me encontro alegre nem triste. Alegria e tristeza eram somente possíveis por ti, ou em teu louvor. Agora que te foste, não há razão alguma pela qual possa eu alegrar-me ou entristecer-me. Há apenas esse apático e despovoado e monótono agora sem ti e, dentro dele, lágrimas que verto sem razão."


[ Ygor Raduy | Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes ]




art by Mantha Tsialiou 

sexta-feira, maio 05, 2017

Onde não vive o adeus




"Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.

Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença."


Hilda Hilst | Dez Chamamentos ao Amigo | Poema X | In: Obra Poética Reunida | 1950-1996 

domingo, abril 30, 2017

Dispersa na imensidão


O confiteor do artista


Como são prementes os dias de outono! Ah! Prementes a ponto de machucar! Pois há certas sensações deliciosas cuja indefinição não exclui a intensidade; e não há nada mais pungente que a ponta do infinito.

Que delícia indizível ter o olhar disperso na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, inocência incomparável do azul! A vela de uma pequena embarcação que vibra no horizonte, e que pelo tamanho diminuto e isolamento imita minha existência irremediável, melodia monótona do marulho; todas essas coisas pensam através de mim, ou eu penso através delas (pois, na desmesura do devaneio, o eu se perde depressa!); essas coisas pensam, eu digo, mas musicalmente e de forma pitoresca, sem argúcias, sem silogismo, sem deduções.

Em todo o caso, esses pensamentos, saiam eles de mim ou se lancem das coisas, cedo se tornam intensos. A energia que há na volúpia cria um mal-estar e um suspense positivos. Meus nervos retesados não proporcionam senão sensações gritantes e dolorosas.

E eis que a vastidão do céu me oprime, sua translucidez me exaspera. A falta de sensibilidade do mar e o caráter imutável do espetáculo me revoltam... Ah! Deve-se sofrer eternamente, ou eternamente fugir do belo? Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, larga-me! Chega de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo no qual o artista grita de susto antes de ser vencido. 

Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  pp.17-18

[ by Hanna of Hanna & Hedvig ]


Well, ao pesquisar o significado da palavra "confiteor", encontrei também o poema na língua original. Antes tivesse ficado quieta, pois isso foi suficiente para eu querer modificar, em ao menos alguns pontos, a tradução do Zer. Acho que eu não traduziria, por exemplo, "pénétrantes" por "prementes". Tampouco "pénétrantes jusqu’à la douleur" por "Prementes a ponto de machucar", mas, talvez, "Penetrantes até a dor" ... literalmente, enfin, traduzir exige que façamos escolhas. E nem sempre fazemos as melhores. As dúvidas nos atormentam, as decisões aussi. Ganha-se aqui, perde-se ali.

- Ah, mas por que me ocupar disso agora? 


Le Confiteor de l'Artiste


"Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes ! Ah ! pénétrantes jusqu’à la douleur ! car il est de certaines sensations délicieuses dont le vague n’exclut pas l’intensité ; et il n’est pas de pointe plus acérée que celle de l’Infini.

Grand délice que celui de noyer son regard dans l’immensité du ciel et de la mer ! Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur ! une petite voile frissonnante à l’horizon, et qui par sa petitesse et son isolement imite mon irrémédiable existence, mélodie monotone de la houle, toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite !) ; elles pensent, dis-je, mais musicalement et pittoresquement, sans arguties, sans syllogismes, sans déductions.

Toutefois, ces pensées, qu’elles sortent de moi ou s’élancent des choses, deviennent bientôt trop intenses. L’énergie dans la volupté crée un malaise et une souffrance positive. Mes nerfs trop tendus ne donnent plus que des vibrations criardes et douloureuses.

Et maintenant la profondeur du ciel me consterne ; sa limpidité m’exaspère. L’insensibilité de la mer, l’immuabilité du spectacle me révoltent… Ah ! faut-il éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau ? Nature, enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse, laisse-moi ! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil ! L’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu."



quinta-feira, abril 27, 2017

Dito e feito


"Dali em diante o esforço do amor deles foi para derrotar aquela frieza que jazia adormecida dentro dela e que, com uma palavra, uma pequena mágoa, uma dúvida, podia vir à tona para destruir a posse de um pelo outro" ( Anaïs Nin | Delta de Vênus | p.135-136 ).


quinta-feira, abril 20, 2017

VI Encontro Hume - Chamada para Trabalhos


VI ENCONTRO HUME

Belo Horizonte, 21 a 25 de Agosto de 2017

Local: FAFICH - UFMG



A Comissão Organizadora do VI Encontro Hume convida os estudantes de pós-graduação, professores e pesquisadores da filosofia de Hume para submissão de trabalhos sobre Hume e seus interlocutores. 

Datas e local do evento: 

O VI Encontro Hume ocorrerá entre os dias 21 e 25 de Agosto de 2017 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH - da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG 

Sobre os resumos:

Os interessados deverão submeter um resumo de até 500 palavras em arquivo Word ou similar (fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5) para o e-mail: encontros.hume@hotmail.com. O resumo, com a devida apresentação do problema e as linhas gerais do argumento que se pretende desenvolver, deverá ser intitulado e incluir até 5 palavras-chaves.  No ato da submissão do resumo os autores deverão enviar por e-mail os seguintes dados: 

Nome completo: 
Endereço eletrônico:
Endereço e telefone: 
Título do trabalho: 
Instituição de origem e titulação:


Data final para submissões de propostas de trabalhos

24 de Junho de 2017


A aceitação do resumo possibilita ao proponente a apresentação oral de comunicação no evento, conforme programação a ser divulgada. O tempo para cada comunicação será de 30 min, com 10 min para a discussão do trabalho (total: 40 min). Após a realização do evento haverá entrega de certificado para os apresentadores de comunicação e ouvintes devidamente inscritos.

As datas para o pagamento das inscrições, programação e demais informações necessárias para a realização do VI Encontro Hume serão repassadas em breve, por meio de uma nova publicação e email. 

A notificação sobre a aceitação de cada trabalho será enviada exclusivamente por e-mail até o dia 15 de Julho de 2017. Inscrevam seus trabalhos e aguardem-nos!

Comissão Organizadora

Lívia Guimarães (UFMG)
Marília Côrtes de Ferraz (UFSC)
Hugo Arruda (UFMG)
Pedro Vianna Faria (UFMG)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Anice Lima (UFMG)
Wendel de Holanda (UFMG)
Vinícius Amaral (UFMG)


Comissão Científica

Pedro Paulo Pimenta (USP) 
Maria Isabel Limongi (UFPr)
Jaimir Conte (UFSC)
Marcos Ribeiro Balieiro (UFS)
Marcos César Seneda (UFU)
Andrea Cachel (UEL)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)


Organização da mesa em homenagem ao 
Professor João Paulo Monteiro 

Andrea Cachel (UEL)
Anice Lima (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)

Coordenação Geral

Lívia Guimarães (UFMG)


Apoio

Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


quarta-feira, abril 19, 2017

Borboletices




No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. [...] A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

 Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão,  uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,  me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: «Este é provavelmente o inventor das borboletas». A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.


Machado de Assis | A borboleta preta | Memórias Póstumas de Brás Cubas | In: Obra Completa | Rio de Janeiro | Editora Nova Aguilar | 1994 | Capítulo XXXI | p.42-43

[ art | Flora Borsi ]

sábado, abril 08, 2017

Aspiração


"Aspiro a um repouso absoluto e a uma noite contínua. Poeta das loucas voluptuosidades do vinho e do ópio, não tenho outra sede a não ser a de um licor desconhecido na Terra e que nem mesmo a farmacopeia celeste poderia proporcionar-me; um licor que não é feito nem de vitalidade, nem de morte, nem de excitação, nem de nada. Nada saber, nada ensinar, nada querer, nada sentir, dormir e sempre dormir, tal é atualmente a minha única aspiração. Aspiração infame e desanimadora, porém sincera."

[Baudelaire 1867 | Proyectos de prólogos para "Flores do Mal" | Buenos Aires| 1944 | p.74 ]

[ Egon Schiele | 1890-1918 ]


sexta-feira, março 31, 2017

Amor

[ Vénus et Eros 1810 | Charles Paul Landon | 1760-1826 ]

"Se, ao menos, de leve tocar-te, ou nem isso, apenas tangenciar-te, se ao menos, num ínfimo instante, apossar-me de ti, aprisionar-te, encarcerar-te, ou nem isso, apenas de leve roçar-te, ou nem isso, apenas pressentir-te, predizer-te, prefigurar-te – ou quem sabe poder amaciar a tua dor, proteger-te, guardar-te, encerrar-te em uma cúpula onde mal algum possa alcançar-te, onde nada jamais possa ferir-te ou magoar-te, ali onde permaneçamos colados e calados, alados e intocados, ali onde permaneças tu comigo e eu permaneça contigo, sempre e sempre e sempre e sempre." 

[ Ygor Raduy | Amor | in: Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes ]

sexta-feira, março 17, 2017

Rima


a tristeza
tem sua beleza
e ainda por cima
rima


[ Homeward Bound | by Catrin Welz-Stein ]

quarta-feira, março 01, 2017

Me and my notebooks


Uma concepção peculiar do que vem a ser produtivo.
Alguns entenderão.
Outros não!

I don't care...


quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Um hemisfério numa cabeleira




Deixa-me respirar por um bom tempo, por um bom tempo, o odor dos seus cabelos, neles mergulhar meu rosto, como um homem sedento mergulha o seu numa fonte. Deixe-me agitá-los com a mão como lenço perfumado, a fim de evocar lembranças na atmosfera.

Se você soubesse quantas coisas eu vejo, quantas coisas eu sinto, quantas coisas seus cabelos me dão a entender! Minha alma viaja levada por esse perfume como a de outros homens viaja pela música.

Em sua cabeleira cabe todo um sonho, em que abundam velas e mastros, imensos oceanos cujas correntes me levam a regiões de um clima deleitante, onde o espaço é mais azul e profundo, e a atmosfera é perfumada de frutos, folhas e pele humana.

No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto que fervilha de canções melancólicas, de homens vigorosos de todas as nacionalidades, de embarcações de todas as formas, cuja arquitetura sutil e complicada se recorta sob um céu imenso em que se instala o calor eterno.

Acariciando sua cabeleira, recupero os langores de longas horas passadas sobre um divã, na cabine de um belo navio, embalado pelo balanço imperceptível do mar no porto, entre vasos de flores e botijas refrescantes.

Na fogueira de sua cabeleira, respiro o cheiro do tabaco, misturado a ópio e açúcar, na noite de sua cabeleira, vejo resplandecer o infinito azul tropical; nas praias aveludadas de sua cabeleira, me inebrio de odores mesclados de alcatrão, almíscar e óleo de coco.

Deixe-me morder por um bom tempo essas tranças morenas e pesadas. Ao mordiscar esses cabelos elásticos e rebeldes, sinto como se experimentasse lembranças.




Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  p.57-58

quarta-feira, fevereiro 15, 2017

Na infinita dispersão do meu ser


             Pergunta-me
             se ainda és o meu fogo
             se acendes ainda
             o minuto de cinza
             se despertas
             a ave magoada
             que se queda
             na árvore do meu sangue

             Pergunta-me
             se o vento não traz nada
             se o vento tudo arrasta
             se na quietude do lago
             repousaram a fúria
             e o tropel de mil cavalos

            Pergunta-me
            se te voltei a encontrar
            de todas as vezes que me detive
            junto das pontes enevoadas
            e se eras tu
            quem eu via
            na infinita dispersão do meu ser
            se eras tu
            que reunias pedaços do meu poema
            reconstruindo
            a folha rasgada
            na minha mão descrente

            Qualquer coisa
            pergunta-me qualquer coisa
            uma tolice
            um mistério indecifrável
            simplesmente
            para que eu saiba
            que queres ainda saber
            para que mesmo sem te responder
            saibas o que te quero dizer"




Mia Couto  | Pergunta-me | Raiz de Orvalho e Outros Poemas  
Editorial Caminho | Lisboa | 1999

domingo, fevereiro 12, 2017

Êxtase musical II



"Nesses instantes em que ressoamos no espaço e o espaço ressoa em nós, nesses momentos de torrente sonora, de posse integral do mundo, só posso me perguntar por que não serei eu todo esse mundo. Ninguém experimentou com intensidade, com uma louca e incomparável intensidade, o sentimento musical da existência, a menos que tenha tido o desejo dessa absoluta exclusividade, a menos que tenha sido possuído de um irremediável imperialismo metafísico, quando desejara a ruptura de todas as fronteiras que separam o mundo do eu."




"O estado musical associa, no indivíduo, o egoísmo absoluto com a maior das generosidades. Queres ser só tu, mas não por um orgulho mesquinho, mas por uma suprema vontade de unidade, pela ruptura das barreiras da individuação, não no sentido de desaparição do indivíduo, mas de desaparição das condições limitativas impostas pela existência deste mundo. Quem não tenha tido a sensação da desaparição do mundo, como realidade limitativa, objetiva e separada, quem não tenha tido a sensação de absorver o mundo durante seus êxtases musicais, suas trepidações e vibrações, nunca entenderá o significado dessa vivência na qual tudo se reduz a uma universalidade sonora, contínua, ascensional, que evolui para o alto em um agradável caos. E o que é esse estado musical senão um agradável caos cuja vertigem é igual à beatitude e suas ondulações iguais a arrebatamentos?"


Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco 2014 | p.8

quarta-feira, fevereiro 08, 2017

Súplica ao Vento


Livra-me, Senhor, desse grande ódio, do ódio do qual brotam os mundos. Acalma o agressivo tremor de meu corpo e afrouxa meus maxilares apertados. Faz com que desapareça esse ponto negro que se acende em mim e se estende por todos os meus membros, fazendo nascer da infinita negrura de meu ódio uma mortífera chama das brasas.


Livra-me dos mundos nascidos do ódio, salva-me da negra infinitude sob a qual morrem meus céus. Acende um raio de luz nesta noite e que saiam as estrelas perdidas na densa névoa de minha alma. Mostra-me o caminho para mim mesmo, abre-me uma senda em minha espessura. Desce em mim com o sol e dá início a meu mundo.


Cioran, Emil  | O Livro das Ilusões | Tradução de José Thomaz Brum | Rio de Janeiro | Rocco | 2004 | p.104

imagem | KwangHo Shin | Untitled 27 | 2013

domingo, fevereiro 05, 2017

Tears




"Deitado, ele sorri desajeitado e seus olhos brilham. Ela sentiu todo o seu amor subir à garganta e as lágrimas aos olhos. Ela se lançou sobre seus lábios, desmanchou em lágrimas entre seus rostos. Ela chorava em sua boca e ele mordia em seus lábios salgados toda a amargura de seu amor."

Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.55-56

quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Vento




Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros




[ Título: Santa Clara | Iracema Macedo |  Invenção de Eurídice | Panorama da Palavra | 2004 ]

domingo, janeiro 29, 2017

Êxtase musical


“Sinto que perco matéria, que caem minhas resistências físicas e que me dissolvo em harmonias e ascensões de melodias interiores. Uma sensação difusa e um sentimento inefável me reduzem a uma indeterminada soma de vibrações, de ressonâncias íntimas e de envolventes sonoridades.

Tudo o que acreditei ter em mim de singular, isolado em uma solidão material, fixado em uma consistência física e determinado por uma estrutura rígida, parece ter se transformado em um ritmo de sedutora fascinação e imperceptível fluidez. Como poderia descrever com palavras o modo como crescem as melodias, como vibra todo meu corpo integrado em uma universalidade de vibrações, evoluindo em fascinantes sinuosidades, em meio a um encanto de aérea irrealidade? Nos momentos de musicalidade interior, perdi a atração de minha pesada materialidade, perdi a substância mineral, essa petrificação que me ata a uma fatalidade cósmica, para atirar-me em um espaço de miragens...”


[ Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco |2014 | p.7 ]


quinta-feira, janeiro 26, 2017

Curiosity


Dia desses uma amiga publicou no facebook um dos belos Cantos dos Cantares de Ezra Pound. Lembrei-me que tenho um livro dele desde 1987. Fui buscá-lo na prateleira, abri e reli toda a introdução de Augusto de Campos - um estudo breve, mas cuidadoso da vida e obra de Pound - e mais alguns poemas, cantos e cartas publicados nessa edição.

Uma das coisas que li nessa pequena introdução e que me chamou a atenção, já há 30 anos, foi que, em suas últimas entrevistas, ao ser questionado se teria algum conselho a dar aos jovens poetas e qual a qualidade que os incitaria a cultivar, Pound respondeu: "creio que o jovem poeta deve ter uma curiosidade ininterrupta. Não há literatura sem curiosidade. Quando a curiosidade do escritor morre, ele está perdido - ele poderá fazer não importa qual acrobacia, mas nada escreverá de vivo se a sua curiosidade estiver morta." 

Augusto de Campos completa que "tudo isso Pound resumiu numa breve anotação: 'curiosity - advice to the young - curiosity.'"


[ Ezra Pound | Canto 120 | Poesia | Traduções de Augusto, Haroldo de Campos, Décio Pgnatari, J.L. Grünewald, Mário Faustino | São Paulo | Hucitec | 1985 | p.39 ]











quarta-feira, janeiro 25, 2017

Irrespirante






nesse luar incerto
a noite respira ofegante
a escuridão está imóvel
as ruínas
sufocantes


sexta-feira, janeiro 20, 2017

Poema da despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,
escrevo.


[ Mia Couto | Raiz de orvalho e outros poemas | Portugal | 2014 ]




sábado, janeiro 07, 2017

O eterno silêncio




SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Antonio Cicero | 'Sair' | A Cidade e os Livros | Editora Record | Rio de Janeiro | 2002 | p.77.


"... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... o eterno silêncio... sobre todas as coisas..."

Encontrei esse belo poema de Antonio Cicero num site de literatura que não me lembro qual. Fui conferir, agora, a autenticidade dele e o encontrei publicado no blog do próprio autor que, aliás, eu não conhecia (o blog, não o autor). Há, nesse blog, um desdobramento dessa publicação motivado por um comentário que serve como pretexto para uma reflexão que discorda do conteúdo do poema. Achei esquisito discordar do conteúdo de um poema, but... o rapaz acaba levantando questões interessantes. 

Antônio Cícero dá um show nas respostas, ainda que diga "não me sinto capaz de explicar um poema meu". Ele acaba sim, num certo sentido, explicando o poema ao responder as perguntas do rapaz. E faz isso muito bem (embora o poema não carecesse propriamente de explicação). Responde às questões com excelentes perguntas, suposições, interpretações possíveis e um raciocínio que me parece impecável. A discussão versa sobre o clássico tema da existência e natureza divinas, bem como sobre aquilo que ficou conhecido (seja na filosofia, na teologia ou na filosofia da religião) como o “problema do mal” — tema sobre o qual passei debruçada uns bons anos da minha vida. Há outros comentários ali, mas a discussão para a qual eu chamo a atenção é entre Lucas Nicolato e Antônio Cícero. Estou com um pouco de preguiça de reconstruir a discussão. Então, se tiver curiosidade, take a look: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/08/sair.html.


quinta-feira, janeiro 05, 2017

O corpo de um poema


  [photo by Cristina Otero]


                     olho muito tempo o corpo de um poema
                     até perder de vista o que não seja corpo
                     e sentir separado dentre os dentes
                     um filete de sangue
                     nas gengivas


                    [Ana Cristina César | A teus pés | Brasiliense | 1984]

                         

terça-feira, janeiro 03, 2017

L'amour



Daquelas coisas que a gente lê e não sabe bem por que elas nos tocam...

"Essa singular vaidade do homem que se deixa e quer crer que aspira a uma verdade quando o que ele pede a esse mundo é um amor."

(Albert Camus | Cadernos | 1937-39 | A desmedida na medida | São Paulo | Hedra | 2014 | p.44)