sábado, fevereiro 13, 2010

Bendita curiosidade!

“There are many questions in philosophy to which no satisfactory answer has yet been given. But the question of the nature of the gods is the darkest and most difficult of all…. So various and so contradictory are the opinions of the most learned men on this matter as to persuade one of the truth of the saying that philosophy is the child of ignorance…” (Cicero The Nature of the Gods, Book I).

Well… essas são as palavras de abertura da obra acima citada. Citei em inglês porque dentre as traduções que tenho aqui, a portuguesa e a francesa, é a que me soa mais agradável aos ouvidos. E eu tenho uma relação afetiva com os meus ouvidos.

Chega a ser estranho eu dizer isso porque a língua inglesa por muito tempo enroscou em meus ouvidos. A necessidade sempre urgente de entendê-la, devido à quantidade de textos que tinha e tenho de ler nessa língua, causava-me um verdadeiro desconforto. Eu tive que aprendê-la na necessidade, numa espécie de casamento com os textos e os dicionários.

Em geral, sempre louvei a língua francesa, pela beleza sonora, a agradável melodia, e pela familiaridade e facilidade com que aprendi a lê-la. E ela continua a soar de modo muito agradável, mas acho que li tantos textos em inglês ultimamente (tomei um verdadeiro porre no bom sentido) dessa língua, que agora ela se tornou tão familiar que posso mesmo dizer que me deleito ao lê-la e ouvi-la. E isso, é claro, não tem nada a ver com qualquer desconsideração a respeito de minha amada língua-mãe. Essa é minha, e é mãe! 

Mas voltemos à citação.

Meu propósito em apresentar essa passagem de Cícero diz respeito à pergunta que faço a mim mesma todos os dias quando me debruço sobre o tema da Religião Natural em geral e, por implicação, o tópico tão delicado da natureza dos deuses.

Se, como diz Cícero, a “questão da natureza dos deuses é a mais obscura e a mais difícil de todas”, pergunto: onde eu estava com a cabeça quando resolvi mergulhar nesse pântano? Bem sei que ela estava no lugar certo, exatamente em cima do meu pescoço. Ademais, como diz Hume na voz de Panfilo ─ narrador dos Diálogos sobre a Religião Natural,

“estas questões sempre foram objeto de disputas entre os homens e, relativamente a elas, a razão humana jamais chegou a alguma conclusão segura. Apesar disso, trata-se de questões de tão grande interesse que somos incapazes de refrear nossa incansável curiosidade sobre elas, mesmo que nossas pesquisas mais acuradas não tenham produzido até agora senão dúvidas, incertezas e contradições” (DRN, introdução, p.5). Sendo assim, sinto-me justificada em meu interesse.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Pensando no chuveiro


Toda vez que vou tomar banho penso como é bom pensar debaixo do chuveiro. Percebo que ali meus pensamentos pululam... e fluem... parecem acompanhar a intensidade, o calor agradável e o fluxo da água.

Pena que ainda não inventaram um laptop à prova d’água, nem uma cadernetinha, um caderninho, um bloquinho, putz, qualquer coisa sobre a qual eu pudesse escrever sem precisar sair de lá, pois muitos dos meus pensamentos acabam escorrendo pelo ralo. Uma pena! Lá se foram...

Que ninguém me dê a ideia, please, de levar um mp3 para gravá-los. Já adianto que não seria a mesma coisa...

domingo, dezembro 13, 2009

A Filosofia, Deus e o Diabo

Se Hume está certo em afirmar que nossas crenças religiosas têm por base fatores psicológicos, tais como o medo e a esperança, e que tais fatores fazem parte da compleição do ser humano, eu, sendo uma dessas criaturas ditas humanas, devo também, de algum modo, ser suscetível a elas. Mas, notem, please, para Hume, os primeiros princípios religiosos não surgem de um instinto original ou de uma impressão primária da natureza. Eles devem ser secundários... e quem quiser entender isso terá de recorrer à História Natural da Religião, obra na qual Hume trata do assunto. Se eu me detiver aqui não chegarei aonde quero.

Ora, ora...
Isso não significa que eu possa afirmar (ou mesmo acredite) que Deus existe na realidade, mas que, de algum modo, e a despeito de sua alegada existência, ao menos tenho a ideia dele, ou, digamos assim, eu penso nele. Acho que nunca pensei tanto em Deus como quando comecei a estudar filosofia (e  comecei já na iminência de completar 37 anos). Confesso que demorei um pouquinho para entender por que Deus (a sua existência, a sua natureza ou, simplesmente, a ideia que temos dele) se constitui num dos grandes problemas filosóficos. Deus, até então, era para mim um ser cuja possibilidade ou não de existir não fazia exatamente parte de meus escrutínios, embora, às vezes, e de algum modo, ele se apresentasse à minha mente sobretudo nas horas de culpa, sofrimento, medo e esperança, como diz Hume.

Bom, nem sempre o Deus que se apresentava à minha mente era esse Deus monoteísta cristão. Tanto que por oito anos, os oito imediatamente anteriores aos meus 37, fui budista. E antes, "meditante", e antes, digamos, “procurante”.

Hoje, quanto mais penso em Deus (independentemente de se ele existe ou não), mais tenho a certeza de que sua suposta natureza, atributos e planos permanecem incertos e ocultos, e que Hume me parece estar certo quando diz que estas são questões indecidíveis, apesar de serem perfeitamente concebíveis pela mente.

É tese de Hume também que se a ideia de Deus é concebida pela mente, sua existência é possível, mas também, por diversas razões, pouquíssimo provável (tese que também não vou tratar aqui). Levanto esse assunto não para discutir filosoficamente essas questões (acho que uns diriam aqui: ainda bem! outros: ah, que pena!). Levanto o assunto para contar uma história.

Lembro-me vividamente de uma noite (acho que eu tinha mais ou menos uns 6 ou 7 anos) em que minha avó fez um discurso de que filha malcriada, especialmente com a mãe, o pai, ou mesmo a avó (e eu havia praticado um ato malcriado qualquer, na verdade, acho que tinha apenas sido desobediente), cometia um grandessíssimo pecado e, muito provavelmente (só que ela discursava com um ar de muito certamente), iria, quando morresse, pagar meus pecados ardendo no mármore do inferno.

Minha avó descrevia o diabo com chifres, rabo comprido, pele grossa e carbonizada, enormes asas de morcego, olhos fulminantes e cara de besta-fera que baba maldade e se delicia com ela: a maldade escorre pela boca e ele lambe de volta pra não deixar escapar nem um pouquinho. Tudo isso, claro, num cenário vermelho fogo repleto de almas penadas, típico de um inferno.

Depois ela descrevia Deus com aqueles atributos tradicionais de suprema benevolência, onisciência, onipresença e onipotência, com ar sereno e cara de bonzinho. Deus me olhava do alto daquele céu azul plácido e tranquilo. Mas notem: Deus estava bravo comigo e me recriminava.

Nosssa! Chorei a noite inteira morrendo de medo dos castigos do inferno. E olhem que eu tinha feito apenas uma bobagenzinha, tanto que nem me lembro que “pecado horroroso” era esse que havia cometido. Eu me contorcia e chorava mergulhada em culpa, arrependimento e medo. Acho mesmo que fiquei doente. Suplicava perdão àquela figura esplêndida, na esperança de escapar do inferno. E prometia que dali pra frente eu seria a menina mais boazinha e obediente do mundo (é claro que nunca cumpri essa promessa rs). Ai que angústia! Que tortura! Que pesadelo tive naquela noite (se é que dormi de fato! na verdade, acho que fiquei in delirium tremens).

Bom, minha fase cristã não durou muito. Minhas dúvidas em relação a Deus, ao cristianismo e às religiões em geral, aumentavam conforme eu crescia, até que hoje, bem mais esclarecida, penso: ainda bem que cresci e comecei a estudar filosofia ─ uma maneira (que também não vou explicar aqui) de escapar desses tormentos e superstições.

Hoje cometo lá meus pecadinhos (já que não sou perfeita), mas não tenho pesadelos com Deus e o Diabo. Basta, para que eu me redima das faltas que cometo, que minha consciência moral me acuse, seja esta ditada pela minha razão ou pelos sentimentos naturais de ser simplesmente e demasiada humana.

quarta-feira, novembro 11, 2009

Vaidade das vaidades: uma paixão vital


Hoje resolvi fazer aquela brincadeira de abrir um livro numa página qualquer para saber o que ele teria a me dizer de interessante, e que eu pudesse fazer comentários, de preferência, também, interessantes rs. Isso foi às 7:00 hs da manhã, quando me preparava para ir à academia cuidar um pouco, se Platão estiver certo, do cárcere da minha alma. Ora, se tenho de manter minha alma durante toda a minha vida num cárcere, que seja, então, num cárcere bem cuidado e agradável de se habitar.

Escolhi abrir o livro das citações de Eduardo Gianetti, já que ali se encontram boas e interessantes citações, especialmente, de filósofos e literatos. Perguntei a mim mesma: o que este belo e bom livro tem a me dizer right now? Abri, assim, ao acaso, na página 226, capítulo III.8 sobre “Ética pessoal: vícios, virtudes, valores”, intitulado, Vanitas Vanitatum, et Omnia Vanitas (Vaidade das vaidades, tudo é vaidade). Aliás, devo confessar, sem cerimônia, um título muito apropriado à ocasião, à minha própria pessoa e, conforme a opinião da maioria das mais eminentes figuras deste mundo, muito apropriado a qualquer pessoa; poder-se-ia mesmo dizer: a vaidade é própria da natureza humana.

É claro que ela deve variar em grau ou intensidade de pessoa para pessoa, mas, ao fim e ao cabo, o que eles dizem é que somos todos seres vaidosos (je suis d’accord). E isso, pelo que se vê, ocorre tanto pelo bem quanto pelo mal. Porém, em geral, fala-se da vaidade como algo muito negativo, uma guerra entre egos obesos (sabe-se que o desejo de admiração, reconhecimento e glória, quando levado ao exagero, transforma-se num dos sete pecados capitais). Todos se vangloriam de perceber a vaidade nos outros, mas quase ninguém a percebe em si próprio (o que não é o meu caso: percebo nos outros e em mim própria haha). Embora possamos mesmo constatar a existência de uma verdadeira guerra de vaidades entre as pessoas, num sentido negativo, por outro lado, penso que a vaidade, numa certa medida e, de preferência, na medida certa (quem sabe qual é?) é uma característica positiva da nossa natureza: uma paixão vital!


Ao que tudo indica, Malebranche (La recherche de la verité) concordaria comigo (rs, na verdade, eu é que concordo, em parte, com ele), pois eis o que o eminente padre diz: “Os homens não estão cientes do calor que emana de seu coração, embora ele dê vida e movimento a todas as outras partes do seu corpo. [...] O mesmo se dá com a vaidade: ela é tão natural para o homem que ele não a percebe. E, embora seja isso que dê, por assim dizer, vida e movimento à maioria dos seus pensamentos e desígnios, isso ocorre de um modo que é imperceptível para o sujeito”. Bom, eu diria quase imperceptível, tanto que na sequência Malebranche usa o termo ‘suficientemente’. “[...] Os homens não percebem suficientemente que é a vaidade que dá ímpeto à maioria de suas ações” (p.224). Não sei se na sequência da obra Malebranche depreciará o valor da vaidade (pois a citação se encerra aí), mas, a partir do que foi dito acima, pode-se reconhecer que a vaidade é, no mínimo, um elemento essencial em nossa vida.

La Rochefoucauld (Maxims), por sua vez, ao que parece, também concebe de modo positivo a presença da vaidade em nossa natureza quando afirma: “a virtude não iria longe se a vaidade não lhe fizesse companhia” e que “se alguma vez chegamos a admitir as nossas deficiências, fazemos isso por vaidade” (p.226).

Adam Smith (The theory of moral sentiments) segue mais ou menos a mesma linha quando assinala: “o desejo de obter a estima e a admiração de outras pessoas, quando se dá por meio de qualidades e talentos que são objetos naturais e apropriados da estima e da admiração, é o amor real da verdadeira glória; uma paixão que, se não é a melhor da natureza humana, está certamente entre as melhores. A vaidade é com freqüência nada mais que a tentativa de usurpar prematuramente essa glória antes que seja devida. Embora seu filho, antes dos vinte e cinco anos, não passe de um pretensioso, não desespere, por isso, de que ele se torne, antes de chegar aos quarenta, um homem sábio e valoroso, com real aptidão para todos os talentos e virtudes em relação aos quais não passa, no presente, de um vazio e exibido dissimulador. O grande segredo da educação reside em direcionar a vaidade para os objetos apropriados” (p.232-233).

Hugh Blair (On the proper estimate of human life) pensa que “embora todos os homens estejam de acordo sobre a doutrina geral da vaidade do mundo, tal é a sedução do amor-próprio que, não obstante, quase todos se vangloriam de que o seu próprio caso é uma exceção à regra comum” (p.224).

Na linha dessas reflexões, Nietzsche (Human, all too human), talvez o mais assumido vaidoso de todos os vaidosos, aquele que explica, em Ecce Homo, por que ele é tão sábio, tão inteligente e por que escreve livros tão bons, dá a velha e habitual alfinetada: “Aquele que nega possuir vaidade normalmente a possui de forma tão brutal que instintivamente ele fecha os olhos diante dela para não se ver obrigado a desprezar a si mesmo” (p.226).

Carlos Drummond de Andrade (Passeios da ilha), por seu turno, fala de si próprio do seguinte modo: “por muito que examine a minha vaidade, não lhe vejo o mesmo tom desagradável da dos outros. O que é uma vaidade suplementar” (p.224).

Já Hume abre sua autobiografia “My Own Life” escrevendo: “é difícil para um homem falar por muito tempo de si mesmo sem vaidade, portanto serei breve” (p.233).

Para encerrar, deixo aqui as palavras de Pascal (Pensées) a respeito do assunto:

“A vaidade está tão arraigada no coração do homem que um soldado, o ajudante de um soldado, um cozinheiro, um porteiro, todos vivem a se gabar e a procurar admiradores, e mesmo os filósofos [eu diria que, em geral, principalmente os filósofos] desejam tê-los. E aqueles que escrevem contra a vaidade desejam ter a glória de escrever bem; e aqueles que leem o que estes escreveram desejam a glória de ter lido isso; e eu, que escrevo este ataque à vaidade, talvez alimente também o mesmo anseio de glória: e talvez também os que leem isto” (colchetes meus, p.228).


(Citações extraídas de GIANETTI, Eduardo. O livro das citações: um breviário de ideias replicantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [cap. III8]. As páginas referem-se às citações encontradas no livro de Gianetti, e não às encontradas nas obras dos autores citados).

sábado, novembro 07, 2009

Sobre filosofia



Há um ano, precisamente entre os dias 27 e 31 de outubro de 2008, aconteceu na UNIOESTE o XIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea, assim como neste ano, entre 26 e 30 de outubro, ocorreu o XIV. Na época do XIII eu era ainda professora de lá, e, por conta disso, além de participar do simpósio como apresentadora de trabalho, logo após, fui convidada por alguns alunos meus do primeiro ano de filosofia, responsáveis também pelo programa "Latrina" da Kula Radioweb Universitária , a dar uma entrevista sobre filosofia.

Bom, por mais que eu estude filosofia nunca acho fácil falar sobre ela (a gente sempre acaba dizendo algumas besteiras), ainda mais assim, numa rádio, onde há uma transmissão pública, em maior escala, da minha voz, de minhas ideias, opiniões e conhecimentos. De qualquer modo, encarei o desafio e lá fui eu. Antes de ir é claro que pedi que eles me dessem ao menos algumas dicas sobre as questões que iriam fazer. Assim, eu teria ao menos uma ideia do terreno em que iria pisar.

As questões eram basicamente as seguintes: o que é filosofia? o que me levou a fazer filosofia? por que escolhi estudar especialmente o filósofo escocês David Hume? qual a importância do simpósio para a universidade, para os alunos e demais participantes? e por que a discussão filosófica é importante nos simpósios, congressos, encontros, universidades e escolas?

Pensei um pouco sobre elas e achei que uma certa ordem me ajudaria a seguir um raciocínio X. Combinamos, então, a ordem das perguntas, mas na hora H a entrevistadora, no calor de um certo e natural nervosismo, inverteu a ordem. E é claro que isso já bagunçou um pouco o meu coreto, mas não o suficiente para eu perder totalmente o rebolado. Achei até que foi bom, assim a entrevista se deu de modo mais espontâneo.

Minha idea era transcrevê-la aqui, mas como estou quase sempre correndo atrás do tempo para que ele não me engula, e a entrevista tem 21' e 10", resolvi, já que a Rádio é Web e está disponível na internet, passar o link a quem possa interessar. Adianto que ali, quase como sempre, deixei de dizer algumas coisas que deveria ter dito, deixei de precisar pontos importantes; e disse coisas também que, talvez, não devesse, ou ao menos não disse do modo como gostaria de ter dito, o que acho perfeitamente normal numa situação como essa, em que por mais tranquilo que alguém possa ficar, uma certa taquirritmia sempre ocorre, o sangue esquenta, o pensamento escapa, as palavras faltam, a língua enrola, enfim... rola um certo descompasso entre o que pensamos, dizemos e gostaríamos de ter dito.

Quanto ao nome do programa, Latrina, não me perguntem por que ele tem esse nome tão sui generis, pois eu mesma ainda não entendi. Aliás, na verdade, eles não me explicaram naquele dia, estávamos com o tempo contado, e, depois, acabei calando a pergunta. Várias vezes pensei em perguntar, mas sempre acontecia alguma coisa que fazia com que eu deixasse pra lá. Agora, ao ouvir novamente a entrevista, fiquei com vontade de saber. Vou perguntar e depois eu conto, tá?

Eis o link: é só acessar e fazer o download!


quarta-feira, outubro 14, 2009

Hume and Burke na UFMG



Grupo Hume Convida

Dario Perinetti

(Université du Québec à Montréal)

Local: Sala 4094 – Fafich/UFMG

Data: 21 e 22 de Outubro - Horário: 9:30

Com as palestras

Dia 21: Hume’s sceptical solutions to sceptical problems


Dia 22: Hume and Burke on aesthetic judgment

(As palestras serão realizadas em Espanhol e Inglês)

Promoção: Grupo Hume UFMG/CNPQ


Apoio: Programa de Pós Graduação em Filosofia

Departamento de Filosofia

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH/UFMG

sexta-feira, outubro 09, 2009

Observações memoráveis



Gente! O Rio de Janeiro continua lindo... e isso é incrível, pois é uma terra de muitos contrastes (talvez por isso ele seja lindo, mas não só por isso). Ele é lindo, embora, logo na chegada, tenhamos que passar por um extenso caminho poluído com muito lixo e odores fétidos. E isso é lamentável, não dá pra deixar de perceber e, num certo sentido, sentir-se indignado. Vale perguntar: cadê o responsável, melhor, os responsáveis por esse desleixo com o lixo?

Mas eis que senão quando (?)... aos poucos, começamos a adentrar nas maravilhas dessa cidade que não é à toa que seja conhecida como “a” cidade maravilhosa, cheia de encantos mil. As maravilhas vêm primeiro à distância, por meio do porte das rochas que se impõem, lá de longe, aos nossos olhos. Depois, aquela natureza abundante e desbundante, que brota desavergonhada e imponentemente no meio dos espaços transitados, habitados e desabitados. Um verdadeiro espanto!

Podemos observar de tudo um pouco e, em alguns casos, de tudo muito. Muita gente bonita, aliás, linda, e muita gente feia também, aliás... (desculpem-me, mas não acredito que tenha alguém nesse mundo que não enxergue que existe uma diferença entre o belo e o feio, a despeito das diferenças nas apreciações que os seres humanos fazem).

Mas o Rio de Janeiro continua lindo. Do lixo chegamos ao luxo, da velharia das construções quatrocentonas com suas paredes e pisos revestidos de mármores e granitos à contemporaneidade iluminada e plastificada em meio a um trânsito caótico e colorido. Os sotaques arraxxxxxxtados, as figuras mais bizarras, as cores, o brega, o chic, o sofisticado, o tosco, o glamour e a simplicidade: quanta diversidade! As rochas são magníficas, de tirar o fôlego. A vegetação nem se fala, impossível não pasmar com ela. A lagoa, o mar, ah... o mar, nem é preciso dizer... "no mar estava escrita uma cidade". É preciso lê-la, e vivê-la.

E pra completar, além de todas as maravilhas que o Rio oferece, tive o prazer de sentar-me ao lado da estátua “o pensador de Copacabana”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, e ficar ali, na mesma pose que ele, a pensar e observar tanta vida. Confesso que por pouco não enlouqueci e bati um papo com ele rsrs. 


Carlos Drummond de Andrade, " No mar estava escrita uma cidade."

quarta-feira, setembro 23, 2009

Relíquia de Amor

Toda vez que faço arrumações em meu quarto – que agora virou quarto de estudos ─ acabo revendo cartas e papéis que há muito estavam guardados ali. Sempre encontro umas coisinhas interessantes... relíquias, eu diria, que marcaram a minha vida.

Abri uma gaveta e encontrei hoje, pela milésima vez em tantos anos que guardei daqui pra lá e de lá pra cá, um livrinho pequenininho (desculpem-me a redundância, leiam como pura ênfase no tamanhinho dele), de capa dura, intitulado Amor Total.

Este Amor Total é, na verdade, um pequeno soneto de Vinicius de Moraes que, neste caso, apresenta-se numa edição ilustrada (com flores, folhas, pássaros e borboletas coloridas) por Joan Berg - Editora Record.

Eis o soneto:

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

(Vinicius de Moraes)


Bom, este soneto ganhei de presente de um outro poeta.

Ao abrir o livro, encontrei uma dedicatória assim:

Marília:
Mostra teu desenho do amanhã
(por certo colorido e em paz)
que eu assisto:
raiando o dia colorido
como teu desenho vivo.

Ao final, depois do soneto, mais algumas palavras daquele que me presenteou:

Nossa vida
um dia despertará
em uma imensa primavera

Sei esperar
sem precisar dormir
o vôo da andorinha
que me foge
como você

mas estou aqui
te esperando
como quem nunca separou

(Antônio Thadeu Wojciechowski, em 23/07/80).

[Agui... não precisa ficar com ciúmes, pois nosso amor já mudou de folhas, pétalas e plumagens, mas continua (um) presente!!!].

sexta-feira, setembro 04, 2009

Lucidamente insano



Hoje acordei com vontade de escrever sobre literatura. Na verdade isso não aconteceu só hoje. Volta e meia eu acordo assim, mas acabo entretida em outros compromissos. Lembrei-me que a alguns posts abaixo, À Lolita eterna refletida em meu sangue, prometi que um dia ainda transcreveria mais algumas partes dessa obra que considero um deleite para os amantes, assim como eu, das belas palavras. Eis-me aqui, agora, para cumprir minha promessa (senão ficarei desacreditada rs).

Bom, é claro que não me refiro a belas palavras vazias, ou, digamos assim, pobres de significados. Palavras podem ser sonoramente belas, mas triviais, pouco ou quase nada significativas. Estas não me interessam. Quando falo em belas palavras refiro-me àquelas que nos invadem cortantes, no meio do peito e por todos os lados; palavras que suscitam idéias que te arrebatam e te arrebentam. Belas porque profundas, belas ainda que trágicas. Lolita tem esse poder: suscita idéias grávidas de significados dilacerantes.

Numa determinada altura do livro, quase ao final, o personagem Humbert Humbert diz que seu “pulso marcava, num minuto, quarenta pulsações, no outro, cem”. Gostei dessa idéia. Fiquei a pensar: que descompasso! Que aflição, que desequilíbrio, que mal-estar deve causar essa sensação (como se eu já não a tivesse sentido). Imaginei-me assim, analogamente, com um de meus pulsos aceleradíssimo, disparado, batendo cem vezes por minuto, e o outro slow motion, pesado, quase parando: a paixão corroendo, "as veias a doer" (p.19) e a procurar "uma presença sedativa" (p.33).

É claro que você pode sentir-se assim sendo afetado de diversas maneiras, como, por exemplo, quando encontramos, de repente, alguém por quem estamos velada e irresistivelmente apaixonados (na adolescência acontece muito, nos adolescentes tardios também rs, e por que não nos adultos?), e ficamos tímidos, não sabemos como nos comportar, perdemos a espontaneidade, temos medo ou vergonha de que a pessoa descubra ou perceba, receamos revelar nossa paixão (quem já se viu violentamente apaixonado desse modo sabe do que estou falando).

Mas esse não é o contexto no qual Humbert Humbert descreve o ritmo descompassado de sua pulsação. Ele já havia perdido Lolita, já havia se rasgado, enlouquecido: seu coração já se tornara “um órgão histérico”. Humbert procurava Lolita, de modo doente, incansável, obsessivo. Num certo dia, Humbert recebera uma carta de Lolita comunicando-lhe que havia se casado, que iria ter um bebê, e que passava por tristezas e dificuldades. Dolly pedia-lhe dinheiro. Humbert investigara o endereço, ensaiara a morte violenta do marido (Mr. Richard F. Schiller), e fora atrás dela.


“Não me foi possível ─ ai de mim! ─ conservar no estômago a primeira refeição, mas considerei essa indisposição física apenas um contratempo trivial, limpei a boca com um lenço de tecido fino e diáfano tirado de dentro do punho e, tendo como coração um bloco de gelo, uma pílula na língua e a morte inapelável no bolso traseiro da calça, meti-me elegantemente numa cabina telefônica em Coalmont e disquei para o único Schiller existente na velha lista destroçada” (p.366-367).

Após rastrear o endereço, Humbert atinge o seu “cinzento objetivo”. Ao chegar à casa de Lo, sofrido, “velho e frágil”, permanece imóvel ali em frente, sentado em seu velho sedan azul, durante vários minutos. Este é precisamente o momento do descompasso de seus pulsos.

Depois de vê-la “fraca e imensamente grávida [...] as faces, pálidas e sardentas, estavam fundas” (p.368-369), Humbert pergunta-lhe, rosnando, com a mão no bolso, se seu marido estava em casa. Enquanto isso a olha e pensa: “Não podia matá-la, claro, como alguns pensaram. Eu a amava, os senhores compreendem. Era amor à primeira vista, à última vista e a todas as outras vistas, sempre” (p.369).

Muita coisa se passara neste encontro triste, tenso, terno e dramático ao mesmo tempo, até que Humbert lhe entregasse o dinheiro. Ele conhecera Dick, o marido, e percebera que não estava à procura daquele homem. Não foi ele quem roubou Lolita. A cena, cheia de detalhes, se desenrola até que, antes de ir embora, Humbert, com aquele "tumor oculto da paixão inenarrável" (p. 80), tenta convencer Lolita a ir com ele: - “Lolita ─ disse-lhe eu ─ [...] Daqui até aquele velho carro... há uma distância de vinte, vinte e cinco passos. É uma distância muito curta. Dê agora esses vinte e cinco passos. Agora. Neste momento. Venha assim como você está. E viveremos felizes para sempre” (p.380). Lolita recusa. Questiona se ele só lhes dará o dinheiro que necessitam se ela for a um motel com ele. - Não, responde Humbert. Ele pensa:

“Ela compreendeu tudo errado: ─ quero que você deixe esse seu Dick incidental, bem como este buraco medonho, e venha viver comigo, e morrer comigo, e ‘tudo’ comigo. [...] Pense bem Lolita”. De qualquer modo, porém, mesmo que você se recuse receberá o seu ... trousseau” (p. 381)."Entreguei-lhe um envelope contendo quatrocentos dólares em dinheiro, além de um cheque de três mil e seiscentos dólares. Cautelosa, incerta, recebeu meu petit cadeau ─ e, então, sua testa se tornou de um belo cor-de-rosa. [...] Cobri o rosto com a mão e rompi nas lágrimas mais ardentes que jamais derramei. Senti que elas me escorriam por entre os dedos e pelo queixo, que me queimavam ─ e meu nariz se entupiu, e eu não podia parar, e ela, então, tocou em meu punho (p.381).

- Morrerei, se você tocar em mim ─ disse-lhe. ─ Você sabe que não irá comigo. Não há nenhuma esperança de que você vá? Diga-me apenas isso” (p.381).

E ela diz não! Depois de algumas justificativas dela e um diálogo sofrido, ele faz mais uma tentativa.

“- Uma última palavra – disse-lhe, em meu cuidadoso e horrível inglês. – Você está absolutamente certa de que... não amanhã, nem depois de amanhã, por certo, mas... bem, de que um dia, qualquer dia, não voltará para minha companhia? Criarei um Deus novo em folha e, com gritos penetrantes, elevarei a Ele o meu agradecimento, se você me der uma microscópica esperança (p.383)”. Ah... uma microscópica esperança! Era tudo o que ele precisava. Mas... - Não – respondeu Lolita sorrindo. Não!

"Adeus! - cantou ela, o meu doce, imortal e morto amor americano. Sim, porque ela está morta e é imortal" [...] "Vi-me, em seguida, dirigindo o carro em meio do chuvisqueiro do dia agonizante, com os limpadores do pára-brisa a funcionar com toda rapidez, mas incapazes de competir com as minhas lágrimas” (p.384).

Dali em diante, Humbert dirige-se a seu grand final. Mas antes, com aquela fascinante estética verbal que, por si só, fala pela pena de Nabokov, passa por mais algumas de suas miseráveis lembranças. Eis algumas delas:

“Guardo ainda outras lembranças enevoadas que se desdobram agora em monstros de dor desprovidos de membros. [...] eu nada conhecia acerca da mente de minha querida e que, era bem possível, atrás daqueles horríveis lugares-comuns juvenis, havia nela um jardim e um crepúsculo, e o portal de um palácio ─ vagas e adoráveis regiões que me eram lúcida e absolutamente proibidas, em meus andrajos poluídos e miseráveis convulsões, pois eu, não raro, percebia que, vivendo como vivíamos, ela e eu, num mundo completamente mau, nos sentíamos estranhamente constrangidos sempre que procurávamos discutir [...]. Ela costumava revestir sua vulnerabilidade de um ar de fastio e impertinência vulgar, enquanto que eu, empregando em meus comentários, desesperadamente impessoais, um tom de voz tão artificial que me eriçava os pêlos, provocava em minha ouvinte tais explosões de grosseria que tornavam impossível o prosseguimento da conversa, minha pobre e magoada criança” (p.388-389)!

“Eu a amava, Lolita. Eu era um monstro pentápode, mas amava-a. Era uma criatura desprezível, bruta, torpe e tudo o mais, mais je t’aimais, je t’aimais. [...] Lembro-me de certos momentos ─ chamemo-los geleiras do paraíso ─ em que, depois de saciar-me dela... após esforços fabulosos, insanos, que me deixavam bambo e listrado de azul, eu a tomava nos braços, afinal, com um mudo gemido de ternura humana (sua pele brilhava à luz do gás neon vinda, através das frestas dos estores, do pátio da estalagem, seus cílios fuliginosos embaciavam-se, os olhos cor de cascalho eram mais vagos do que nunca... enquanto o mundo todo não era senão uma pequena paciente ainda mergulhada na confusão de um anestésico, após uma grande operação) e a ternura se transformava em vergonha e desespero e eu embalava a minha leve e solitária Lolita em meus braços de mármore, e gemia em seus cálidos cabelos, e acariciava-a a esmo, e pedia-lhe, mudamente, que me abençoasse e, no auge dessa agoniada e generosa ternura humana (com a minha alma verdadeiramente dependurada de seu corpo nu, e prestes a arrepender-se), súbito, ironicamente, horrorosamente, a luxúria tornava a nascer e... ‘Oh, não!’, exclamava Lolita com um suspiro dirigido ao céu. E, num momento, a ternura e o azul ─ tudo se despedaçava” (p.389-390).

(NABOKOV, Vladimir. Lolita. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1981).

domingo, agosto 30, 2009

Programação I Encontro Hume (IUPERJ)

Segue abaixo a programação do I Encontro Hume que acontecerá nos dias 02 e 03 de outubro/2009, no IUPERJ


02 outubro - Sexta feira

09:00 - 10:00 Abertura com Renato Lessa
10:30 - 11:00 Mário Sérgio da Conceição Oliveira Junior (UFPA)
Hume e a Condição Estética
11:00 - 11:30 Rafael Fernandes Barros de Souza (UNICAMP)
Da uniformidade de gosto
11:30 - 12:00 Julio Andrade Paulo (UFMG)
A beleza e a virtude no Tratado da Natureza Humana
12:00 - 12:30 Debate
12:30 – 14:00 Almoço
14:00 – 14:30 Marília Côrtes de Ferraz (USP-FAPESP)
Hume e a crença na vontade livre
14:30 – 15:00 Giovani Mendonça Lunardi (UFRGS) A distinção entre “sentir” (to feel) e experimentar” (to experience) na filosofia moral de Hume
15:00 – 15:30 Marcos Ribeiro Balieiro (USP)
Sociabilidade e progresso em David Hume15:30 – 16:00 Debate
16:00 – 16:30 Café
16:30 – 17:00 Thais Cristina Cordeiro (IUPERJ)
A moral demonstrativa em Locke: uma leitura segundo Hume
17:00 – 17:30 Luís Alves Falcão (IUPERJ)
Os fundamentos da Economia Política em David Hume: a Economia como Ciência Moral
17:30 – 18:00 André Luiz de Jesus Rodrigues (IUPERJ)
As fragilidades do real: O regime de contingência em Montaigne, Hume e Montesquieu
18:00 – 18:30 Debate

03 outubro - Sábado

08:00 – 08:30 Rogério Soares Mascarenhas (UFBA)
O Estatuto da Ficção no Tratado da Natureza Humana
08:30 – 09:00 Diogo Bogéa (UERJ-FFP)
David Hume e o sujeito como ficção
09:00 – 09:30 Andreh Sabino Ribeiro (UFCE)
Hume, Sócrates Baconiano
09:30 – 10:00 Debate
10:00 – 10:30 Café
10:30 – 11:00 André Luiz Olivier da Silva (UNISINOS)
O ceticismo de Hume desde uma perspectiva naturalista
11:00 – 11:30 Anice Lima de Araújo (UFMG)
Hume e o Naturalismo
11:30 – 12:00 Andrea Cachel (USP-IFPR)
Idéias abstratas em Hume: o simples e a relação
12:00 – 12:30 Debate
12:30 – 14:00 Almoço
14:00 – 14:30 Matheus Batista dos Reis (UFMG)
Uma análise sobre as diferenças entre os sistemas filosóficos de David Hume, Thomas Reid e James Beattie
14:30 – 15:00 André Vinícius Dias Senra (UFRJ – HCTE)
Crítica Fenomenológica de Husserl ao Empirismo de Hume
15:00 – 15:30 Bernardo Bianchi Barata Ribeiro (IUPERJ)
Algumas afinidades entre Spinoza e Hume
15:30 – 16:00 Cesar Kiraly (IUPERJ-PUC-RIO)
Hume e Nelson Goodman: sobre a causalidade e a ausência de por quê
16:00 – 16:30 Debate
16:30 – 17:00 Café
17:00 – 18:00 Encerramento com Lívia Guimarães
18:00 - Reunião

sábado, agosto 29, 2009

Hume e a crença na vontade livre

Na seção VIII da Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume observa que “mais da metade dos raciocínios humanos” estão baseados em expectativas “acompanhadas de maiores ou menores graus de certeza” (IEH VIII i 20: 122) sobre como os seres humanos se comportarão em determinadas circunstâncias. Tais expectativas, de acordo com sua teoria, estão fundadas na observação e experiência passadas da uniformidade e regularidade de seus comportamentos. Hume argumenta também que é possível perceber que, embora criemos expectativas em relação ao comportamento dos homens e esperemos que eles ajam de acordo com elas, quando consideramos a nós mesmos, a escolha da ação nos parece livre. Quer dizer, quando somos nós que agimos, para cada ação que praticamos, sentimos que somos livres ─ o que não constitui propriamente um problema para Hume, haja vista ele, ao admitir que possuímos liberdade da ação, esposar a tese de que nós de fato somos livres. Mas o fato de nos sentirmos portadores de uma vontade livre é problemático, à medida que Hume não admite a liberdade da vontade. Segundo Hume, temos uma “falsa sensação ou experiência aparente de liberdade ou indiferença [...] em muitas de nossas ações” (IEH VIII i 22 nota: 125). Ele afirma: “Sentimos que nossas ações estão sujeitas à nossa vontade na maioria das ocasiões, e imaginamos que sentimos que a vontade, ela própria, não está submetida a nada” (IEH VIII i 22 nota: 126), isto é, sentimo-nos livres da determinação natural ou da necessidade. Ora, por que isso acontece? Por que do ponto de vista do observador sentimos a necessidade das ações e do ponto de vista do agente não a sentimos, ao contrário, sentimos que nossa vontade é livre? Hume é enfático ao afirmar que “os atos da vontade decorrem da necessidade” (T 2.3.1.15: 441) e que quem nega isso não sabe o que diz. Ao constatar que os homens resistem a esse princípio, o autor reflete sobre quais seriam as razões que fazem com que toda a humanidade tenha tamanha relutância em expressar verbalmente a admissão da doutrina da necessidade, tanto na prática quanto nos raciocínios e, ao mesmo tempo, demonstre tamanha inclinação para defender a da liberdade. Com base nisso, pretendo expor e analisar as razões que, segundo Hume, levam os homens a assumirem a crença na vontade livre.

domingo, julho 12, 2009

I Encontro Hume

Nos dias 02 e 03 de outubro de 2009 ocorrerá o
I Encontro Hume no IUPERJ. Poderão enviar resumos, alunos de Graduação e Pós-Graduação que desenvolvem seus estudos em David Hume. O resumo deverá ser enviado até o dia 15 de agosto de 2009 para o email: encontrohume@gmail.com contendo os seguintes dados:

Nome:
Instituição:
Orientador:
Título do trabalho:
Resumo: 


A seleção dos participantes será realizada mediante a avaliação do resumo da comunicação que deverá conter de 200 a 500 palavras e explicitar o percurso argumentativo e os principais conceitos que serão desenvolvidos na apresentação. Cada comunicação terá a duração máxima de 30 minutos. As mesas serão organizadas de modo a promover o diálogo entre os participantes e destes com a audiência. Ao fim das apresentações dos integrantes de cada mesa, haverá um período destinado ao debate.

No dia 30 de agosto serão divulgados os nomes dos participantes do Encontro e no dia 15 de setembro será divulgada a programação oficial do evento. Demais informações poderão ser obtidas através do blogs:
http://www.grupohume.blogspot.com/
http://www.estudoshumeanos.com/
ou do e-mail: encontrohume@gmail.com

quarta-feira, maio 20, 2009

À Lolita eterna refletida em meu sangue...





“Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA. Era LO, apenas LO, pela manhã, com suas meias curtas e seu um metro e quarenta e oito centímetros de altura. Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita.” 

Ah... isso é simplesmente lindo. Curioso é que expressa um amor criminoso. E o mais curioso ainda é que, se assim não fosse, não haveria Lolita (ou a Confissão de um Viúvo de Cor Branca), a obra-prima do escritor russo Vladimir Nabokov.

Essa é uma obra que ao mesmo tempo em que causa repugnância moral, curiosidade científica (por se tratar da história de amor de um “pervertido”), arranca suspiros e enternece corações em virtude não só de sua beleza literária, mas também pela compaixão que desperta no leitor quando este percebe a tragicidade de um amor que, além de obsessivo e devorador, é moral e juridicamente condenável. O protagonista Humbert-Humbert, um homem já bastante maduro, acalenta (talvez fosse melhor dizer sofre de) predileções eróticas inusuais. Ele se apaixona por sua enteada de 12 anos Dolores Haze, “em seus braços sempre Lolita”.

Quando li este trágico romance não resisti a extrair algumas belas frases e parágrafos, idéias e expressões geniais, e anotar tudo num caderninho (uma seleção, I confess, bem difícil).

Escrito numa linguagem elegante e sofisticada, o romance soa como música para ouvidos refinados: eis aí uma verdadeira obra da arte de confessar de maneira desesperada e, ao que tudo indica, honesta, uma paixão criminosa.

Não pretendo aqui, ao menos por enquanto, fazer apreciações morais sobre o romance (embora eu reconheça que ele é um prato saboroso pra isso). Tampouco discutir as diferentes interpretações de seus leitores e versões dos filmes de Stanley Kubrick ou Adrian Lyne. Minha intenção é tão-somente salientar seu valor literário transcrevendo alguns trechos desses que alteram nossa respiração.

“...olhai [pois] este emaranhado de espinhos”. 

Paradoxalmente, eu diria, esse belo emaranhado de espinhos.

“De repente, estávamos louca, desajeitada, desavergonhada e angustiosamente apaixonados um pelo outro; irremediavelmente, deveria eu acrescentar, pois aquele frenesi de posse mútua só poderia ter sido aplacado se verdadeiramente assimilássemos e nos embebêssemos de cada partícula da alma e da carne do outro... Ali, sobre a areia macia..., ficávamos estendidos durante toda a manhã, num petrificado paroxismo de desejo... [Humbert ao falar de Annabel, precursora de Lolita, que morreu de tifo ainda púbere].


Destaco aqui não só a beleza desse trecho, como também a riqueza semântica concentrada na palavra paroxismo que, por sua vez, significa “espasmo agudo ou convulsão; momento de maior intensidade de uma dor ou de um acesso; recorrência ou intensificação súbita dos sintomas de uma afecção, estertores de um agonizante; vascas”. Pergunto: quem é que ainda não se viu num tal paroxismo de desejo? 


“Folheio sem cessar estas miseráveis lembranças...”

“Quando tento analisar meus próprios anseios, motivos, atos, etc., rendo-me a uma espécie de imaginação retrospectiva que alimenta minha faculdade analítica com alternativas ilimitadas e que faz com que cada caminho imaginado se bifurque e se aparte sem cessar em meio da complexa e enlouquecedora perspectiva de meu passado. Estou convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita começou com Annabel”.


“Suas pernas, suas encantadoras e nervosas pernas, não estavam muito próximas uma da outra e quando minha mão localizou o que eu buscava, uma expressão sonhadora e estranha, meio de prazer, meio de dor, estampou-se sobre aqueles traços infantis. [...] enquanto eu, com uma generosidade que estava pronta a oferecer-lhe tudo - meu coração, minha garganta, minhas entranhas - lhe dava para segurar, com sua mão desajeitada, o cetro de minha paixão” [sobre o primeiro e malogrado encontro a sós com Annabel].

“Desejo, agora, apresentar a seguinte idéia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets. Notar-se-á que substituí os termos espaciais por termos de tempo. De fato, gostaria que o leitor visse ‘nove’ e ‘catorze’ como constituindo os limites – as praias cintilantes e os róseos rochedos – de uma ilha encantada e assombrada por essas minhas nymphets e cercada por vasto e brumoso mar. São todas as meninas, entre esses limites de idade, nymphets? Claro que não. Do contrário, nós que conhecemos esse segredo, nós, os viajeiros solitários, os nympholets, teríamos há muito enlouquecido. Tampouco a beleza serve para se formar qualquer juízo a respeito; e a vulgaridade, ou pelo menos o que uma determinada comunidade assim o classifica, não confere, necessariamente, certas características misteriosas, a graça tresloucada, o charme indefinível, astuto, insidioso, que despedaça almas e que distingue a nymphets de certas de suas coevas que dependem, de modo incomparavelmente maior, do mundo espacial dos fenômenos síncronos do que daquela intangível ilha de tempo extasiante em que Lolita brinca com as que lhe são semelhantes”.



“É preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha (oh, como a gente tem de se aviltar e ocultar-se!), para se discernir imediatamente, mediante sinais inefáveis - o contorno ligeiramente felino de um osso malar, a esbeltez de um membro pubescente, bem como os outros indícios que o desespero, a vergonha e as lágrimas me impedem de enumerar -, o fatal diabrete entre as crianças saudáveis. Ela, a nymphet, passa despercebida entre as demais, sem que tenha, ela própria, consciência de seu fantástico poder”.

Bom, por questões de espaço e tempo devo agora encerrar por aqui, mas tem mais, muito mais. Pretendo, aos poucos, transcrever mais algumas partes que considero um deleite para os amantes das belas combinações de palavras.


domingo, maio 03, 2009

Uma pitada de irreverência


Quando eu era pequena (e boazinha) e mesmo adolescente (e rebeldíssima) sempre fui ótima aluna (percebe-se que não acalento falsas modéstias rsrs). Depois, quando entrei na faculdade, continuei a ser boa aluna, mas era cada vez mais indisciplinada. Se eu não gostava ou não concordava com algo, toda a minha petulância vinha à tona. Aos 17 anos (1979), quando terminei o colegial, resolvi sair de casa depois de uma briga com meu pai. Na verdade, eu queria sair muito antes, logo que me tornei rebelde (aos 12 anos) e achava que sabia o que queria . Eu tinha ânsia de viver com liberdade, mas meu pai era extremamente repressor. Nesses três anos que vivi fora de casa até entrar na faculdade, só eu sei as poucas e boas (na verdade são muitas e boas) que aprontei até voltar pra casa, claro, depois de levar uns bons tombos e aqueles tapas que a vida dá. Resolvi tentar ser normal (não sabia que isso seria tão difícil) e entrar na faculdade como toda boa moça bem educada. Tinha, então, exatamente 20 anos.

No final de 2008, ao fazer uma bela limpa em minha casa, armários e maleiros, encontrei muitos cacarecos e coisas que guardava há anos. Uma dessas tantas coisas foi uma monografia (que hoje eu a qualifico de um tanto irreverente) que me vi obrigada a fazer para a disciplina de biblioteconomia, quando cursava o 2º. Período (primeiro ano) de Comunicação Social na Universidade Estadual de Londrina. Entrei no curso em 1982, disposta a ser jornalista, e saí em 1984, ou seja, não concluí o curso (vê-se que minha disposição se arrefeceu com o passar dos anos: jornalismo não era a minha praia).

Bom, quando a professora solicitou, sem me dar qualquer tema específico, que eu fizesse uma monografia para a tal disciplina, querendo apenas que a monografia correspondesse às normas formais exigidas, eu fiquei a pensar: sobre o que vou escrever? Na verdade eu não imaginava qualquer conteúdo apropriado (e monografia soava como um "palavrão"). Naquela fase da minha vida eu era uma hedonista incorrigível (hoje sou uma hedonista corrigível rsrsr). Embora gostasse de ler, estudar, e tivesse muita vontade de escrever não sabia ainda bem o quê, eu queria mesmo era namorar, e só pensava em satisfazer meus desejos. Esse seria o tema mais apropriado à ocasião, mas minha autocensura não permitia que eu me expusesse assim. Resolvi, então, escrever a http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/04/monografia-do-pensamento-no-exato.html que se segue logo abaixo (encontrei-a escrita à mão, em forma de rascunho, num papel já bem amarelado pelos 27 anos em que ficou guardada numa caixa de cartas e outros papéis).

domingo, abril 26, 2009

Monografia do Pensamento no Exato Momento do Ato




MONOGRAFIA DO PENSAMENTO
NO EXATO MOMENTO
DO ATO

Sob a
orientação do tempo

Resumo

A disciplina I BIB 129 solicita uma monografia para poder avaliar a distribuição da forma dentro dos padrões que a UEL determinou. Para isso, apenas escrevo o que penso procurando encaixá-lo nas normas exigidas.

Introdução

Imagino que minha professora está lendo e não entendendo muito bem o que estou escrevendo. Então, sinto a necessidade de explicar, já que tenho a perfeita consciência de que o tema esperado não tem nada a ver com isso aqui. Mas como o tema que deveria ser abordado não estará terminado até o prazo exigido para a entrega, imaginei que poderia montar uma monografia com algum outro tema, pois a disciplina exige analisar apenas a sua forma. O conteúdo a ser avaliado não pertence a ela [ao objetivo da disciplina]. Portanto, improviso um.


I. Paro, penso e escrevo

É extremamente gratificante sentir a necessidade de escrever sem ter um objetivo predeterminado que não seja o escrever. Sem querer, a gente pára e pensa: o que vou escrever? Daí a gente percebe... mas por que tenho que pensar no que vou escrever se já estou escrevendo? E o que é melhor ainda. Escrevendo porque estou pensando que quero escrever. Só isso.

Mas só? (penso) (escrevo)
Só!
Por quê? (penso) (escrevo)
Porque devo escrever.
Mas por quê? (penso) (escrevo)
Ora, porque tenho que distribuir palavras que no todo tomem a forma de uma monografia.
Mas por quê?

Porque eu curso o II período de Comunicação Social e nele está incluída uma disciplina que ensina muitas coisas referentes à bibliotecoMANIA, entre as quais, inclusive, fazer monografias.
Como foi ensinado, o sistema exige que se avalie o aprendizado. E eu me comprometi a mostrar o que aprendi. Por isso tento escrever livremente para preencher o espaço, ou seja, dar a forma exigida. Pois é, nessa de escrever o que penso, pensei: preencher o espaço: o que significa isso? Pode ser tanta coisa... Como? por exemplo?

Preencher o espaço vivendo a vida.
Preencher o espaço existindo simplesmente
Preencher o espaço comunicando algo.
Preencher o espaço pensando...
E por que não, escrevendo, simplesmente?

É, realmente nada está a me impedir. Nem o (pré)conceito que faço, ao imaginar o que minha professora está pensando. Imagino que ela está surpresa, pois tudo que não é esperado surpreende! Oh...! Imagino que ela pode não considerar esta monografia e, ao mesmo tempo, que pode perfeitamente, desde que isto esteja tomando a forma de uma. Ainda não sei se está. Penso que devo dar uma olhadinha no manual para conferir. Só que constatei que no momento não tenho o manual à mão, e como pretendo continuar a aproveitar o tempo que está me orientando a fazê-la, arriscarei continuando a escrever.

Lembro-me que a mais simples das mais simples monografias exige que se anuncie o assunto resumidamente, introduza-o depois que se define o tema e, posteriormente, tem-se que apresentá-lo e discuti-lo, a partir de um determinado ângulo para, finalmente, fazer uma análise crítica conclusiva do tema tratado.

Pois é, onde parei?
Acho que parei na apresentação. Devo, portanto, determinar o ângulo a partir do qual estou vendo. Tento olhar agora, não a partir do ângulo, mas para o ângulo a partir do qual estou vendo.
O que vejo?
Vejo que meu ângulo só está determinado pelo tempo no qual me proponho a escrever.
Que tempo?
O tempo que passa me fazendo pensar para escrever.
No caso não poderia ser pensar “e” escrever?
Não, porque no momento penso só “para” escrever.
Depois que penso isso, naturalmente começo a analisar o que escrevi para poder criticar e concluir.

II. Análise crítica do pensamento colocado

Ao analisar os pensamentos acima descritos, verifico que está sendo apresentada uma proposta de poder cumprir uma exigência de forma, que não necessariamente preencha as tais solicitadas. Não se pode negar que esta forma é nova. E tudo que é novo pode ser bem ou mal aceito. Pois é, pelo que foi apresentado, vê-se que quem escreve está tentando dar um nó em quem está lendo.
Como é possível cumprir exigências sem cumprir exigências?
Como é a própria pensadora que escreve, infelizmente, não se pode fazer nada para ela parar com isso.
Isso o quê?
Isso de tentar cumprir sem cumprir?
Ué, mas não era impossível?
Diz-se que sim. Mas a pensadora insiste em tentar.
Nessa, ela só está escrevendo e enrolando. De qualquer forma, tudo o que foi escrito pode não ser aceito, mas é impossível negar: não se pode apagar. Tomara que o escrito chegue lá.
Onde?
Lá... naquele lugar que tem forma de monografia.

III. Conclusão

De tudo o que foi pensado só posso concluir que pensar para escrever livremente faz com que a mente se torne mais livre... 

FIM

Pergunto: onde é que eu estava com a cabeça? Sinceramente não me lembro o resultado... se entreguei o trabalho, se ele foi aceito, se tive uma boa nota. Mas não importa, o que importa é que agora eu me divirto lendo e lembrando disso.

terça-feira, abril 21, 2009

Apetite de viver e vontade de potência

Caro Aguinaldo, obrigada pelo comentário... sempre provocador!!! E já que rendeu interpretações diversas, resolvi publicar minha resposta nesse outro post.

Não acho que você interpretou mal. Mas sim de uma perspectiva unilateral. Acredito que o desespero pode ser entendido negativamente e associado à ausência de esperança, como algo que retira o amor de viver, como você falou. Mas também pode ser associado à esperança desesperada de vida, ou desespero de viver, de amar, de desejar e de ser feliz.

Posso dizer que fiz a associação que você fez em raríssimas situações em minha vida. O que me chamou a atenção na frase de Camus (e que me fez concordar com ele, por entendê-la a partir da minha vida, e não da dele) é a perspectiva, bem ao gosto nietzscheano (sorry rs), da Vontade de Potência, e, às vezes, mas só quando estou pessimista, ao gosto schopenhaueriano. No caso de Schopenhauer, refiro-me àquela vontade de vida insaciável, autofágica, sem direção e fim que nos leva a pendular do tédio à necessidade numa insatisfação desesperada. É um apetite desordenado, um desespero, mas não no sentido que geralmente eu entendo.

Meus desesperos não foram e não são raros, mas são desesperos que, em geral, aumentam o meu apetite de viver. Por isso simpatizo-me mais com a teoria nietzscheana (e aqui não quero entrar no mérito ou demérito de se Nietzsche é filósofo, poeta, bufão, louco ou dinamite) da Vontade de Potência, segundo a qual viveríamos (desesperadamente, a meu ver, se o quantum de vontade de potência for grande e forte) para ultrapassar limites, vencer desafios, culpas e ressentimentos – um auto superar-se, mas não naquele sentido piegas que a gente vive criticando rs.

Sendo mais radical, penso num desespero de poder vencer a morte. Não só a grande morte, no caso de a vida estar em risco, devido a uma doença fatal, um acidente grave, uma catástrofe, tragédia, ou apenas uma depressão profunda que, no extremo, te leve ao suicídio; como as pequenas mortes que vivemos em vida, ou seja, toda e qualquer perda que nos custe caro - como a de um amor, por exemplo.

Antes de associar desespero à falta de esperança, associo-o à esperança desesperada de superar (ou não ter que passar por) tudo isso aí que eu falei. É a idéia do náufrago que diante da consciência da morte iminente, agonizante, agarra-se a uma palha (ou tábua) na esperança de permanecer vivo: é desespero, mas é desespero de vida, de amor pela vida e por si próprio.

Você mesmo já me falou em algumas situações: nossa! como você ama a vida! não se desespere! Numa dessas vezes eu estava mesmo desesperada... e de medo! Voltávamos de Passo Fundo e na estrada despencou aquela chuva torrencial que tornou a viagem extremamente tensa e perigosa. Não enxergávamos um palmo adiante do nariz, não dava pra parar nos acostamentos, verdadeiras correntezas se formavam nas baixadas e curvas.

Enquanto isso, do outro lado do Estado do Paraná, minhas filhas mais novas também estavam na estrada, voltando de São Paulo com o pai, e eu, ali, com aquele espírito terrivelmente trágico, sofria desesperadamente com a idéia de que eles poderiam estar numa mesma (ou pior) situação, e que, portanto, alguma tragédia poderia ocorrer, fosse com eles ou conosco. O que me restava? Uma esperança desesperada de ultrapassar tudo aquilo e viver (apesar de tudo, pra mim, la vita è bella rsrs).

Quero (e acho que todo mundo quer) viver bem, feliz, com satisfação e prazer. Mas você sabe... não me agrada viver mornamente (não que eu goste de passar pela situação acima descrita). Como sou imperfeita, transbordo pelas tampas e peco, naturalmente, e na maioria das vezes, pelo excesso: excesso de intensidade rsrs. É isso que faz com que eu me identifique com o apetite desordenado, desespero e amor de viver de que Camus fala. Tá certo que com a experiência consegui ordenar melhor esse meu apetite, mas ainda faço muita desordem nessa vida hehehe.

Um beijo.


domingo, abril 12, 2009

O apetite desordenado de viver


No prefácio que Albert Camus (1913-1960) escreve em O Avesso e o Direito, ele mesmo se refere à frase "Não há amor de viver sem desespero de viver", revelando que na época em que a escreveu (aos 22 anos), "não sabia a que ponto dizia a verdade" pois "não tinha atravessado, ainda, os tempos do verdadeiro desespero." A frase se encontra no ensaio Amor pela Vida.

É engraçado, a primeira vez que li essa frase (bom... eu já tinha 39 anos), meu coração disparou e nunca mais parou de disparar por ela.

Ela está duplamente grifada: no prefácio e no ensaio. Cada vez que a leio sinto-me profundamente tocada. Verdade ou não, ao rememorar meus 22 anos, lembrei-me que eu já havia experienciado sim, algumas vezes (e não poucas), o verdadeiro desespero, não só já aos 22 anos, como a todos os que se seguiram e se seguiam...

Alguém poderia pensar agora: NOSSA! O que será que ela viveu tanto assim para falar em verdadeiro desespero? Eu diria, eu vivi muitas coisas que não vêm aqui ao caso (uma hora dessas eu conto... rs, em partes, é claro!). O ponto não é o quê (o quid), mas como eu vivi cada segundo dessa minha vida, com que intensidade: dúvidas, incompreensões, erros, euforias, alegrias, dores e dilemas morais, desejos, frustrações, medo, amor, ódio, algumas dores físicas... ah... como briguei comigo e com o mundo, como quis que o universo se ajustasse aos meus desejos, como chorei, como virei do avesso, como tentei me endireitar (em algumas coisas eu consegui haha), como ri, como me regozijei, como me desesperei!

Camus diz que estes tempos chegaram e conseguiram destruir tudo nele, "exceto, justamente, o apetite desordenado de viver." Eis outra frase que me arrebata, pois isso nada mais é do que paixão, um tema que eu persigo e que me persegue: esse apetite desordenado de viver.

Camus revela ainda sofrer dessa paixão, "ao mesmo tempo fecunda e destrutiva, que explode até nas páginas mais sombrias de O Avesso e o Direito". Ele fala em "ardor esfomeado", no que a vida tem de melhor e pior. Isso me faz lembrar o amor fati de que Nietzsche fala, de seu reclame à retomada do espírito trágico. Depois, Camus cita Stendhal: "Mas a minha alma é um fogo que sofre se não arde."

Os ensaios reunidos em O Avesso e o Direito foram escritos entre 1935 e 1936 e publicados em 1937, na Argélia, em tiragem muito reduzida. A edição foi rapidamente esgotada e Camus se recusou a reimprimi-la por 20 anos. Quem quiser saber por que terá de ler o prefácio que o autor adicionou à sua reedição. Só o prefácio já vale a obra. E a obra... ah... a obra, você terá de ler também. E acho que não é preciso dizer por que...