“Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA. Era LO, apenas LO, pela manhã, com suas meias curtas e seu um metro e quarenta e oito centímetros de altura. Era Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era Dolores quando assinava o nome. Mas, em meus braços, era sempre Lolita.”
Ah... isso é simplesmente lindo. Curioso é que expressa um amor criminoso. E o mais curioso ainda é que, se assim não fosse, não haveria Lolita (ou a Confissão de um Viúvo de Cor Branca), a obra-prima do escritor russo Vladimir Nabokov.
Essa é uma obra que ao mesmo tempo em que causa repugnância moral, curiosidade científica (por se tratar da história de amor de um “pervertido”), arranca suspiros e enternece corações em virtude não só de sua beleza literária, mas também pela compaixão que desperta no leitor quando este percebe a tragicidade de um amor que, além de obsessivo e devorador, é moral e juridicamente condenável. O protagonista Humbert-Humbert, um homem já bastante maduro, acalenta (talvez fosse melhor dizer sofre de) predileções eróticas inusuais. Ele se apaixona por sua enteada de 12 anos Dolores Haze, “em seus braços sempre Lolita”.
Quando li este trágico romance não resisti a extrair algumas belas frases e parágrafos, idéias e expressões geniais, e anotar tudo num caderninho (uma seleção, I confess, bem difícil).
Escrito numa linguagem elegante e sofisticada, o romance soa como música para ouvidos refinados: eis aí uma verdadeira obra da arte de confessar de maneira desesperada e, ao que tudo indica, honesta, uma paixão criminosa.
Não pretendo aqui, ao menos por enquanto, fazer apreciações morais sobre o romance (embora eu reconheça que ele é um prato saboroso pra isso). Tampouco discutir as diferentes interpretações de seus leitores e versões dos filmes de Stanley Kubrick ou Adrian Lyne. Minha intenção é tão-somente salientar seu valor literário transcrevendo alguns trechos desses que alteram nossa respiração.
“...olhai [pois] este emaranhado de espinhos”.
Paradoxalmente, eu diria, esse belo emaranhado de espinhos.
“De repente, estávamos louca, desajeitada, desavergonhada e angustiosamente apaixonados um pelo outro; irremediavelmente, deveria eu acrescentar, pois aquele frenesi de posse mútua só poderia ter sido aplacado se verdadeiramente assimilássemos e nos embebêssemos de cada partícula da alma e da carne do outro... Ali, sobre a areia macia..., ficávamos estendidos durante toda a manhã, num petrificado paroxismo de desejo... [Humbert ao falar de Annabel, precursora de Lolita, que morreu de tifo ainda púbere].
Destaco aqui não só a beleza desse trecho, como também a riqueza semântica concentrada na palavra paroxismo que, por sua vez, significa “espasmo agudo ou convulsão; momento de maior intensidade de uma dor ou de um acesso; recorrência ou intensificação súbita dos sintomas de uma afecção, estertores de um agonizante; vascas”. Pergunto: quem é que ainda não se viu num tal paroxismo de desejo?
“Folheio sem cessar estas miseráveis lembranças...”
“Quando tento analisar meus próprios anseios, motivos, atos, etc., rendo-me a uma espécie de imaginação retrospectiva que alimenta minha faculdade analítica com alternativas ilimitadas e que faz com que cada caminho imaginado se bifurque e se aparte sem cessar em meio da complexa e enlouquecedora perspectiva de meu passado. Estou convencido, porém, de que, de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita começou com Annabel”.
“Suas pernas, suas encantadoras e nervosas pernas, não estavam muito próximas uma da outra e quando minha mão localizou o que eu buscava, uma expressão sonhadora e estranha, meio de prazer, meio de dor, estampou-se sobre aqueles traços infantis. [...] enquanto eu, com uma generosidade que estava pronta a oferecer-lhe tudo - meu coração, minha garganta, minhas entranhas - lhe dava para segurar, com sua mão desajeitada, o cetro de minha paixão” [sobre o primeiro e malogrado encontro a sós com Annabel].
“Desejo, agora, apresentar a seguinte idéia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas ‘nínfica’ (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets. Notar-se-á que substituí os termos espaciais por termos de tempo. De fato, gostaria que o leitor visse ‘nove’ e ‘catorze’ como constituindo os limites – as praias cintilantes e os róseos rochedos – de uma ilha encantada e assombrada por essas minhas nymphets e cercada por vasto e brumoso mar. São todas as meninas, entre esses limites de idade, nymphets? Claro que não. Do contrário, nós que conhecemos esse segredo, nós, os viajeiros solitários, os nympholets, teríamos há muito enlouquecido. Tampouco a beleza serve para se formar qualquer juízo a respeito; e a vulgaridade, ou pelo menos o que uma determinada comunidade assim o classifica, não confere, necessariamente, certas características misteriosas, a graça tresloucada, o charme indefinível, astuto, insidioso, que despedaça almas e que distingue a nymphets de certas de suas coevas que dependem, de modo incomparavelmente maior, do mundo espacial dos fenômenos síncronos do que daquela intangível ilha de tempo extasiante em que Lolita brinca com as que lhe são semelhantes”.
“É preciso que seja um artista e um louco, uma criatura de infinita melancolia, com um borbulhar de veneno ardente no lombo e uma chama supervoluptuosa a arder permanentemente na delicada espinha (oh, como a gente tem de se aviltar e ocultar-se!), para se discernir imediatamente, mediante sinais inefáveis - o contorno ligeiramente felino de um osso malar, a esbeltez de um membro pubescente, bem como os outros indícios que o desespero, a vergonha e as lágrimas me impedem de enumerar -, o fatal diabrete entre as crianças saudáveis. Ela, a nymphet, passa despercebida entre as demais, sem que tenha, ela própria, consciência de seu fantástico poder”.
Bom, por questões de espaço e tempo devo agora encerrar por aqui, mas tem mais, muito mais. Pretendo, aos poucos, transcrever mais algumas partes que considero um deleite para os amantes das belas combinações de palavras.
5 comentários:
Marília.
Que coisa linda! Essas combinações de palavras. Essas imagens. Eu também gosto de Lolita. Oh, que coisa, hein. Quanta afinidade nos objetos de gosto. Mas, como nossas línguas são deferentes, diferentes são as sensações. Eu tenho menos sensibilidade para a estética verbal de Nabokov. Encanta-me a patologia moral de Humbert. Claro que preciso das palavras de Nabokov para entender um pouco o que pode se passar na alma de alguém consumido por tamanha paixão. Deixo aqui um trecho (também adoro colecionar passagens).
“Ah, leitor, não me olhe com esse ar zangado, de modo algum quero dar a impressão de que não fui feliz. O leitor precisa entender que, como senhor e servo de uma ninfeta, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, além da felicidade. Pois que não há na terra prazer que se compare ao de acarinhar uma ninfeta. É hors-conours esse prazer, pertence a outra classe, a outra esfera de sensibilidade. Apesar de nossas brigas, apesar de sua má-criação, apesar das exigências e caretas que ela fazia, sem falar na sua vulgaridade, no perigo e na horrível desesperança de tudo aquilo, eu ainda residia no paraíso de minha escolha, um paraíso cujo céu tinha a cor das chamas do inferno, mas inda assim um paraíso”.
O inferno no paraíso. O paraíso infernal. Ou seria: o paraíso no inferno? O inferno paradisíaco?
Beijos.
Agui.
Esse trecho é mesmo de babar nos pés. Obrigada por me lembrar dele!
Bom... também me encanta a patologia moral de Humbert, mas essa exige mais tempo pra elaborar comentários. Como meu tempo anda escasso (não vale me chamar de preguiçosa rsrsr), deixo a fascinante estética verbal de Nabokov falar por si só. Ele tem o dom de dizer coisas horríveis (e trágicas) de modo belo, e nem precisamos falar agora daquela ironia sutil e requintada que volta e meia lhe escorre pelos cantos da boca. Veja só um pequeníssimo exemplo de algo trágico e, paradoxalmente, belo.
“Eis aqui, pois, a minha história. [...] Ela contém fragmentos de medula – e sangue, e belas e brilhantes moscas azuis”.
bjos
Na inatingível ilha, o zumbido. Finíssimo. São moscas. E a medula embebida em sangue.
Oh, delicada espinha!
A arder. A arder. A arder.
Ah... esqueci de dizer, dearest. Destaquei mais algumas passagens aqui : http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/09/lucidamente-insano-em-lolita.html. 😘
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