sábado, setembro 02, 2006

Postulados da razão pura prática


Curso Introdução ao pensamento de Kant
Profª. Marília Côrtes de Ferraz
Relatório do encontro de 19 de agosto de 2006
Por Espinosa

No encontro de 19 de agosto de 2006, foram discutidos os seguintes pontos:
1. Leitura e discussão do relatório do encontro de 15 de julho de 2006, elaborado por Carlos Nadalim.
2. Digressão sobre como ler textos filosóficos
3. Esclarecimento sobre dúvida do último encontro acerca da relação entre transcendental e experiência
4. Esclarecimentos gerais sobre o papel das idéias de Deus, alma e liberdade na filosofia kantiana.

■ 1) Foram feitas algumas observações corretivas ao relatório. Estas observações foram pontuais. Foi salientado pela professora Marília a excelente qualidade do texto redigido por Carlos Nadalim.
■ 2) Argumentou-se que devemos ler os autores de filosofia como se eles estivessem querendo dizer o que disseram. Apenas quando esse método de leitura não prosperar, estamos autorizados a recorrer a interpretações que levem em conta elementos subjacentes ao que o texto registra. Um autor como Kant permite tranqüilamente que pratiquemos, em geral, a leitura de suas obras supondo que o que ele escreveu era o que ele queria de fato dizer. Autores que se servem, por exemplo, de alegorias e ironias com freqüência devem ser lidos com mais cuidado, talvez se justificando, nesse caso, o recurso a uma interpretação que não se prenda apenas ao que o texto diz. Destacam-se, entre esses autores, Platão e Hume.
■ 3) Na CRP Kant afirma:
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori (CRP B 25. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Assim, pode-se dizer que a experiência tem como apoio metafísico o transcendental (o termo metafísico é usado aqui no seu sentido crítico, não dogmático ou tradicional). Não há experiência sem princípios do entendimento e formas puras da intuição. Vale citar uma ilustrativa passagem dos Prolegômenos:
A palavra transcendental [...] não significa o que ultrapassa a experiência, mas o que a precede (a priori), para mais nada determinado a não ser tornar possível o conhecimento da experiência. Quando tais conceitos ultrapassam a experiência, então seu uso é transcendente, distinto do imanente, isto é, o uso limitado à experiência” (Proleg. p. 93, n. 31. Tradução de Tânia Maria Bernkopf. Os Pensadores, 1980).
■ 4) Antes de esclarecer o papel das idéia de Deus, alma e liberdade, foi assinalado preliminarmente que é um equívoco pensar que as três críticas de Kant respondem, respectivamente, aos problemas do conhecimento, moralidade e estética. É um erro, pois a CRP não trata apenas do conhecimento e CFJ não trata apenas da estética. Argumentou-se que as três idéias dizem respeito aos postulados da razão pura prática e, em especial, Deus e imortalidade da alma funcionam como requisitos conceituais para se pensar no conceito de sumo bem, que é a conjunção necessária entre virtude e felicidade. Essa tese é questionável e alguns problemas foram levantados. Como podemos pensar em felicidade para um ser não sensível, como se supõe devam ser as almas? Deus e alma não funcionariam, no fundo, como móbiles da ação, tendo em vista o desejo de felicidade acalentado por todos os seres humanos? Sobre esse segundo problema foi citada uma passagem da CRP B 841-42 em que Kant parece de fato sucumbir a uma moral heterônoma. Vale citar a passagem.
É necessário que todo o curso de nossa vida seja subordinado a máximas morais; por outro lado, é simultaneamente impossível que isto aconteça se a razão não conectar com a lei moral, a qual é uma simples idéia, uma causa eficiente que determine ao comportamento conforme àquela lei um êxito exatamente correspondente aos nossos fins supremos, seja nesta vida, seja numa outra. Portanto, sem um Deus e sem um mundo por ora invisível para nós, porém esperado, as magníficas idéias da moralidade são, é certo, objetos de aprovação e admiração, mas não molas propulsoras (aber nicht Triebfedern) de propósitos e de ações, pois não preenchem integralmente o fim que é natural a cada ente racional e que é determinado a priori, e tornado necessário, por aquela mesma razão pura (CRP B 840-841. Tradução Valério Rohden. Os Pensadores. 1980).
Foi alertado, porém, que esse ponto de vista foi abandonado por Kant na Fundamentação com a tese da autonomia da vontade. Para o Kant da moral autenticamente crítica – que parece não ser o caso do Cânon da CRP – a lei moral não é apenas o princípio de conhecimento, mas também princípio de execução, isto é, móbil das ações morais. Sublinhe-se que a lei moral é o único e suficiente móbil da ação moral.
Com respeito à primeira questão, isto é, como pensar em felicidade – que é um componente do sumo bem – para seres não físicos, como se presume devem ser as almas, o grupo não chegou a nenhuma conclusão positiva. Pareceu a todos que Kant deveria ter se explicado melhor.

9 comentários:

Unknown disse...

Olá, Marília, como vai?
Parabéns pelo blog. Você e o Aguinaldo realmente são bons nisso, heim? Eu adorei a imagem de Salvador Dali logo abaixo (meu pintor favorito, mas sou bem ignorante e esta nem conhecia). Também me identifiquei muito com o que você escreveu sobre literatura. Ocorre o mesmo comigo. É uma paixão, mas, desde que comecei a estudar filosofia e graças à correria do dia-a-dia, acabou ficando em segundo plano, pelo que lamento.
Sobre os textos do grupo de estudos, acho fantástico! Uma pena não dar tempo de ler tudo. Neste acima, em especial, chamou-me a atenção o comentário sobre Kant ser um autor a quem se deve interpretar como se estivesse querendo dizer o que disse. Eu entendo o ponto, principalmente, pela comparação com Platão. Na verdade, em geral, eu acho que nem devemos procurar saber o que o autor quis dizer, mas nos atermos apenas ao que está dito, para não cairmos em um exercício de adivinhação psicológica. No entanto, o que mais me fascina em Kant, especialmente na Crítica da Razão Pura, que é minha grande paixão, é justamente a "licença", digamos assim, que Kant nos dá para dizermos... eu não diria, o que ele queria dizer, mas o que ele devia ter dito. Eu afirmaria categoricamente que a Crítica não se sustenta se tudo for levado ao pé da letra. O exemplo mais claro do que digo é o "objeto transcendental" na edição A. Eu listei todas as passagens em que o conceito é citado. Na maior parte delas, ele é textualmente uma referência à coisa em si, mas, em ao menos duas delas, este sentido não é aplicável e, se fosse, a filosofia crítica conteria em seu coração uma doutrina pré-crítica. Daí que temos que nos lembrar do pedido de Kant para que compreendamos o que é a doutrina crítica e não nos atenhamos a uma confrontação de passagens que, pelo fato de terem sido escritas em discurso livre, podem acabar sendo contraditórias (cf. CRP, B xliv). Enfim, lendo a Crítica, necessariamente, a meu ver, teríamos que dizer então que certas passagens não representariam a posição refletida de Kant ou, nos termos do post acima, que Kant não quis dizer o que disse. Se extrapolarmos o âmbito de uma única obra então... o trabalho do intérprete se torna ainda mais interessante e desafiador. A compatibilidade entre a teoria do juízo dos Prolegômenos e o § 19 da Dedução Transcendental é uma tarefa hérculea e eu ousaria dizer que um dos dois tem que ser abandonado. Aliás, há uma longa tradição hermenêutica, que vai de Kemp Smith a Allison, passando por Paton, que diz que os juízos de percepção foram apenas uma grande confusão de Kant. Estes são os autores que diriam que Kant não queria dizer o que disse nos Prolegômenos. Eu preferiria dizer que ele não queria dizer o que disse no §19, porque ele é internamente inconsistente. Compare-se ainda a terceira seção da Fundamentação com a doutrina do Facto da Razão. Enfim, não quero entrar em detalhes técnicos, mas apenas ilustrar o que digo. Kant é tão fascinante, justamente porque não pode ter querido dizer tudo o que disse. Daí que é uma filosofia que, mais do que ser interpretada, deve ser reconstruída. É uma filosofia que pede por outros filósofos! Bom, desculpe-me por ter escrito tanto. Ninguém manda ter um blog tão instigante.
Grande abraço,
Andréa

Aguinaldo Pavão disse...

Oi Andréa.
Peço licença para emitir uma opinião sobre um ponto do teu comentário. A meu ver, Kant pode sim ter dito tudo o que disse. Disso não se segue que ele deveria ter dito tudo o que disse. Precisamos assumir que Kant ao dizer “A”, tenha querido dizer “A”, para, a partir disso, afirmarmos, se for o caso, que ele deveria ter dito “B”. O que Kant disse, pois, é (uma espécie de presunção metodológica) o que ele queria dizer (mas não podemos sondar isso, pois como você fala devemos evitar adivinhações psicológicas, e pensar que ele quis dizer o que disse não tem nada a ver com adivinhação psicológica). O que ele DEVERIA dizer só tem sentido se ele disse o que queria dizer. O “deveria”, se entendo bem, é justamente o que nos permite julgar que Kant disse mais do que deveria dizer, ou disse menos, ou disse o que não deveria, ou se desdisse. Se eu afirmo para uma pessoa que o que ela disse não é que ela deveria dizer, devo estar supondo que ela não replicará dizendo: “pois justamente o que você reclama que eu deveria ter dito é o que eu quis dizer”. Se acontece isso, eu tenho de dizer: “eu não entendi bem o que você disse; você não deveria ter dito outra coisa, pois o que pensei que você deveria ter dito foi o que você quis dizer, somente eu não percebi”. Espero que você tenha dito o que queria dizer, pois, caso contrário, eu posso receber como resposta tua a alegação de que o que você escreveu não era o que você queria dizer. Agora, você pode argüir que eu não entendi o que você disse, mantendo que o que você disse era o que você queria dizer.
Aguinaldo

Anônimo disse...

Boa, Aguinaldo hahaha! Vamos ver se nos entendemos então. Eu penso que eu não tenha defendido que devemos dizer que Kant não quis dizer tudo que disse. Veja esta passagem do meu primeiro post: "a "licença", digamos assim, que Kant nos dá para dizermos... eu não diria, o que ele queria dizer, mas o que ele devia ter dito". Parece-me algo parecido com o que eu entendi da sua posição. Eu acho, enfim, que nós devíamos abolir o pressuposto hermenêutico de que o sentido é a intenção do autor e não falarmos mais em "queria dizer". O sentido está no texto, então não interessa tentar descobrir o que o autor estava tentando dizer para além ou aquém do que disse ou mesmo dizer que ele queria dizer o que de fato disse. O que é de interesse é se tudo pode ser mantido consistentemente e então vem ao caso a figura do "devia dizer", assim como também me parece decorrer dela que diríamos que ele não podia ter dito algo do que disse. Eu, por exemplo, defenderia que ele não poderia ter dito que todo juízo é objetivamente válido, como faz no §19 da Dedução. Mas não me interessa se ele quis dizer. Interessa-me que esteja dito.
Bom, tomara que eu tenha dito o que eu devia dizer e que você tenha entendido o mesmo que eu no que eu disse hehehe
Abraço!

Marília Côrtes disse...

Olá Andréa. Bom, se meu blog era instigante ficou mais ainda depois do seu comentário. Provocou uma discussão com um outro especialista no assunto: nosso querido Aguinaldo (mais meu do que seu, espero rsrsr). Tanto que fiquei até com medo de dizer alguma coisa. Vai que eu deveria dizer algo que não disse, ou diga mais do que deveria, ou diga o que na verdade não queria dizer... afinal, como intérprete de Kant, eu apenas engatinho.
Bem, espero ter acertado no que eu disse. Obrigada pelo comentário e desculpe a demora em me manifestar. Tive que pensar muito sobre o que eu queria (ou deveria) dizer (rsrsrsr).
Um abraço (e seja benvinda).
Marília

Marília Côrtes disse...

Agui... achei que deveria agradecer o seu comentário também. Sua participação é sempre provocante, um exercício para nossos neurônios. Beijo. Marília

Unknown disse...

Muito obrigada pela recepção, Marília! Você é sempre uma simpatia!
Grande abraço e bom feriadão!!

Aguinaldo Pavão disse...

Andréa, talvez nossa divergência não seja tão grande. Agrada-me ler a seguinte passagem do teu comentário: “Mas não me interessa se ele quis dizer. Interessa-me que esteja dito”. Aí está o ponto: em Kant o interesse é justamente pelo que está dito. Porém, se algum texto oferece fortes insinuações de que não pode ser lido como se o que estivesse ali escrito fosse o que o autor estava querendo dizer, não poderíamos assumir isso. Eu desafio você a interpretar os Diálogos sobre a Religião Natural de Hume, especialmente a parte XII, fixando teu interesse apenas no que está dito. Um grande abraço. Aguinaldo.

Unknown disse...

Ah, Aguinaldo, eu vou correr do seu desafio, até porque não conheço o texto (quero conhecê-lo um dia, mas, infelizmente, não poderá ser agora). Aliás, sem conhecer o texto, não sei se posso entender bem o que você disse. Eu estou pensando, corrija-me se estiver errada, em como interpretaríamos algo como uma ironia, por exemplo, dentro do princípio hermenêutico que rejeita categoricamente a idéia de que o sentido esteja na intenção do autor. Você não poderia, aparentemente, sequer classificar uma passagem como irônica, porque isto já seria necessariamente dizer que o autor disse uma coisa querendo dizer outra. Bom, a minha saída seria então dizer que você busca o sentido irônico, neste caso, no restante da outra, justamente na coerência do pensamento. Haveria então o que está dito literalmente e o que está dito implicitamente (uma vez que se leia o texto em questão à luz dos demais). Ainda não precisaríamos, assim, falar a sério no "quis dizer". O mesmo se aplica, creio eu, por exemplo, às passagens crípticas tão comuns ao texto de Kant. É procedimento usual de Kant condensar tanto um argumento que, pelo sentido literal, a tese não resta provada. Você então desenvolve este argumento à luz dos princípios de sua filosofia. Podemos, neste sentido, encontrar um comentário como o de Longuenesse, que estou lendo exatamente agora, "o que Kant quis dizer nesta frase críptica" (lembrei desta discussão enquanto lia), mas é só um modo de falar. Afinal, você busca o sentido que não é literal na passagem, não numa investigação psicológica das intenções do autor, mas sim na construção de um sentido para o todo. Penso então que eu defenderia uma posição hermenêutica em que o sentido do texto se dá em uma 'dialética' entre o todo e as partes da obra. Eu não me lembro qual foi o hermeneuta que defendeu esta tese, por isso não dou o devido crédito (não por pensar estar sendo original). Também se não me falha a memória, foi Agostinho quem defendeu a tese de que o sentido está na intenção do autor, inaugurando a ferramenta interpretativa do "quis dizer", não foi?

Marília Côrtes disse...

Eita... por acaso li hoje, mais uma vez (e 11 anos depois rs), esse post e comentários tão instigantes e divertidos e vi que eu deveria ter escrito: Andrea, seja bem-vinda... (nem havia reparado no tropeção em minha querida e amada língua 😱)