domingo, dezembro 20, 2015

O canto do desejo



Hora

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta — por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.

[Sophia de Mello Breyner Andresen]


5 comentários:

Patrícia Caetano disse...

"As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos"
É sobre a experiência de escrever que ela discorre? Lindo isso.

Marília Côrtes disse...

Oi Patt... acho que não. Minha intuição diz que o poema todo fala sobre a experiência de vida. Um marco, digamos, um momento importante (repleto de desejos e expectativas) entre um passado (que foi compreendido e que se deixa para trás), e um futuro repleto de novas (e, talvez, até mesmo velhas) possibilidades. Ao menos foi assim que o poema me leu:

“sinto que hoje novamente embarco para as grandes aventuras (...) e por isso marco nos meus sentidos a imagem desta hora (...) Ao longe, por mim, oiço chamando, a voz das coisas que eu sei amar (...) e de novo caminho para o mar".

A ideia que me vem à mente (e coração rs) é a de um ciclo de vida (que se repete), de algo que vai e vem (tal como o vai e vem das ondas do mar); uma experiência que a autora parece ter compreendido e que tem a ver com o amor, mas não necessariamente o amor de um homem ou de uma mulher, mas o amor de "coisas" que ela sabe amar (e sabemos que podemos amar muitas coisas).

A ideia de tempo e de retorno são marcantes. Logo no início ela fala "sinto que 'hoje novamente' embarco", e termina dizendo "e 'de novo' caminho para o mar".

Obrigada pela pergunta, ela me incitou a reler o poema mais algumas vezes... (e assim ele me releu mais algumas vezes também). Deu até vontade de fazer uma análise bem pontual. Quem sabe num outro momento, numa outra "hora" (aliás... título do poema)
beijos

Patrícia Caetano disse...

Oi, Marília!
Obrigada pela disposição em responder, eu também precisei reler algumas vezes e foi importante porque acabei me identificando muito com a sua interpretação, pelo meu próprio momento de vida. As situações de mudança ou mesmo de ruptura que enfrentamos nessa jornada chamada vida são fundamentais para galgar novas experiências (você não acha? rs) e isso veio de encontro a mim. Enfim, um belo poema mesmo. Obrigada por compartilhar! =)

Marília Côrtes disse...

D'accord, merci, bisous ;)

Marília Côrtes disse...

Corrigindo...
Ao longe, por mim, oiço chamando a voz das coisas que eu sei amar (sem a vírgula depois de chamando rsrsrs)