segunda-feira, julho 28, 2014

Ausência

Uma das oitenta "figuras" que Roland Barthes apresenta em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso é a ausência. Essa figura (seja qual for dentre as oitenta) é, como diz Barthes, "o enamorado em ação" (o sujeito universal apaixonado). Aquele que pode ser reconhecido no discurso que se passa. Discurso tecido de desejo, de lembrança, de saudade, de angústia, de espera, de cansaço, imaginário, loucura... e por aí vai... o enamorado(a) em ação, no poema Ausência, de Jorge Luís Borges:


[ by Jacob Sutton]

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

domingo, julho 27, 2014

Persuasão



"Ela tentou permanecer calma, deixar as coisas acontecerem, e procurou concentrar-se muito neste argumento de natureza racional: 'Com certeza, se houver uma afeição constante, nossos corações não tardarão a se compreender.'” 

(Anne Elliot, in Persuasão, de Jane Austin, p.261)
[photo by Uwe Steger]

sexta-feira, julho 25, 2014

Na brevidade do verso



CARPE DIEM

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

[Poema de Nuno Júdice] - [Arte: Untitled II by Fabian Perez]

quinta-feira, julho 24, 2014

quarta-feira, julho 23, 2014

Nas garras de um grito


Ella adorava tomar um longo e demorado banho quente. Muito quente. Podia ser de manhã, de noite, ou a qualquer hora. Ficava ali, debaixo do chuveiro, a deleitar-se naquela água corrente, ardente, a aquecer-lhe o corpo, a alma, o sangue e a imaginação, enquanto observava seus pensamentos escorrerem pelo ralo.  Friorenta como Ella era, tinha necessidade vital desses banhos.

Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.

Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.

Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.

Dentro de mim mora um grito. 
De noite, ele sai com suas garras, à caça 
de algo para amar!

Resolveu, então, tomar um banho gelado. 
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.

quarta-feira, julho 16, 2014

Por ti

Das páginas de meu Moleskine...


"[...] Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios. Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas. Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem".

[Pablo Neruda]

(ahh... o que seria de mim sem poesia..?)

quinta-feira, julho 03, 2014

Eros

"Quando fui preso ao doce começo
De uma doçura tão docemente doce...
(suave foi a flechada)"



Depois, ah, depois desse doce começo, depois dessa doçura tão docemente doce e dessa suave flechada, segue, Da maneira mais simples, um poema de Eugénio de Andrade.

"É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações."
.
.

Well: "Winter is coming soon!"
.

[Primeiro poema: Les Amours. Pierre de Ronsard, 1524-1585].
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[Painting: Young girl defending herself against Eros (1880), William-Adolphe Bouguereau, 1825-1905]