domingo, março 08, 2009

Ilusão, crença, esperança, paixão e auto-engano

Querido Aguinaldo

Obrigada pelo comentário em Felicidade e Ilusão . Você, como sempre, toca em pontos interessantes e fomentadores de discussões (isso dá um trabalho... rs). Não sei bem, mas me parece que nossas divergências em relação à ilusão se resumem a pontos de vista e associações de idéias ao termo.

Diferentemente do seu ponto de vista, tentei relacionar a felicidade e a ilusão de um ponto de vista objetivo, detendo-me mais na letra do que no espírito do que a Marquesa diz. Daí que eu não teria propriamente objeções a fazer, embora eu não possa deixar de me questionar sobre alguns pontos.

Fiquei a pensar nas associações que você fez. Primeiro associou o termo ilusão à ilusão de ótica, depois à crença, depois, quando falou do amor, à esperança e à paixão, e depois ainda, ao auto-engano (que nesse caso podemos apenas chamar de um “mecanismo inconsciente constitutivo de nossa natureza”). Curioso.

Você pergunta: “Se afirmo que a noite faz um silencio absoluto, estou sendo conduzido pelos meus imperfeitos poderes auditivos, haja vista não poder captar muitos sons que escapam à limitada capacidade que tenho de escutar. Mas será um erro afirmar, do meu ponto de vista, que a noite está absolutamente silenciosa? Acho que não”.


Bom, pensei também no sol, por exemplo, que é visto por nós bem pequeno em relação a seu tamanho real. Objetivamente ele é enorme, por razões já bastante conhecidas. Será que a questão então se resumiria em como eu vejo o mundo e como ele é de fato? Vou dar um exemplo que provavelmente não diríamos que é um caso de ilusão de ótica, mas penso que pode ser chamado de ilusão, no sentido em que você empregou o termo, ou visão equivocada, no sentido em que eu o tomei.

Por muitos anos mantivemos a visão, ilusão ou crença de que a terra era o centro do universo e que o sol girava em torno dela, até que Copérnico nos fez saber que o centro era o sol e que é a terra que gira em torno dele. Intuitivamente percebemos a terra parada, mas (contra - intuitivamente) agora sabemos que a terra gira também em seu próprio eixo. Você não diria que ao acreditarmos naquilo incorríamos em erro, ou que tínhamos uma visão equivocada desses movimentos? E que depois de Copérnico corrigimos nossa visão? Ao menos a meu ver, não vejo aqui como dissociar ilusão e erro.



Depois você diz: “veja o caso de Deus. Afirmar que Deus existe é um erro ou uma ilusão? Parece-me apenas uma ilusão muito mais do que um erro. [...] Como é insolúvel a questão sobre se Deus existe ou não (admito isso sem discutir), afirmar que ele existe não poderá ser dito um erro (pode ser que ele exista). Parece-me muito mais uma ilusão.” Ok, isso me fez perguntar: qual a diferença, então, entre crença e ilusão? A pergunta vale também para o ponto que você coloca sobre a liberdade.

Em relação ao amor você afirma “Ora, nenhum ser destituído de ilusão poderá pensar que um outro ser possa lhe trazer felicidade”. Mas por que não? Porque ele perceberá que uma felicidade duradoura, em sentido pleno, não deve, por questão de segurança, depender de um outro ser. Mas talvez um ser destituído de ilusão possa perceber que embora a sua felicidade não deva depender de um outro ser, esse outro ser pode contribuir em muito para sua felicidade, caso contrário teríamos de dizer ou que somos capazes de ser feliz independentemente de qualquer coisa, ou que só podemos ser felizes com alguém se nos mantivermos sempre iludidos, digamos, fora da realidade - e aí eu não me simpatizo mesmo com a idéia. Aliás, a associação do termo ilusão que me é mais simpática é a que relaciona ilusão à arte, ao encantamento proporcionado pela criação e contemplação estéticas. Agora, interessante que esse encantamento não deixa de ser algo que poderia ser também chamado paixão.

Você pede para eu perceber que você fala em "momentos", “pois há algo na ilusão que diz respeito ao desligamento dos botões do tempo. Não somos nós que apertamos o botão para que o tempo deixe de existir. Simplesmente o tempo deixa de existir e então ocorre o mergulho. E cremos, talvez com nossas mais poderosas forças, naquilo que a ‘suspensão do tempo’ nos oferece. E não será completamente ilusório pensar que nossa existência goze de algo fora do tempo? Naturalmente não teria sentido eu pensar: ‘sou feliz e sou iludido’. O que ocorre parece ser algo como: ‘sou feliz’. E depois: ‘eu era feliz (e iludido)’.” Diante disso, fiquei a pensar: será que sempre que estou feliz é porque estou iludida? Não pode haver felicidade sem ilusão? O que é felicidade real e o que é felicidade ilusória? Podemos, com propriedade, admitir como felicidade (em sentido pleno) uma felicidade ilusória? Podemos mesmo ser felizes ou podemos apenas ter a ilusão de que somos felizes?

Bom, acho que quando li pela primeira vez o Discours da Marquesa estava sob a influência da eudaimonia. Percebi que o tratamento que dei para a idéia de felicidade envolvia algo de mais pleno e duradouro, uma concepção, digamos, mais próxima da aristotélica, aquela que se diz amealhada “numa vida completa”, uma vez que, “um dia, ou um breve espaço de tempo [um momento ou alguns momentos], não faz um homem feliz e venturoso”. Agora, como você bem sabe: penso, logo, mudo de idéia... haha.


Quanto à sua última observação, não entendi qual a nossa divergência: não disse em momento algum que existe um número maior de mulheres que superam os homens, mas que podemos constatar numa proporção sem precedentes apenas, que muitas mulheres superam em muito muitos homens. E não pensei só na academia, mas em atividades variadas (como a política, por exemplo, ou qualquer outra atividade antes delegada e permitida apenas aos homens). O que me parece notável é a progressão aritmética deste quadro que, acredito, se deu com a liberdade que elas conquistaram, dentre outros fatores sócio-histórico-culturais.

Você pensa que eu sou muito otimista sobre as diferenças entre homens e mulheres. É verdade, sou mesmo, e penso que você tem uma idéia um tanto preconceituosa em relação às múltiplas capacidades das mulheres, se esquece que hoje, a exceção de atividades que exigem uma força máscula (ou que são mais apropriadas mesmo aos homens - não me peça para dar exemplos rs), elas revelam poder exercer qualquer outra atividade tão bem ou melhor do que muitos homens. Concordo que há muitas diferenças biológicas (ou de natureza) entre mulheres e homens, diferenças que contribuíram para que o quadro fosse restritíssimo para elas exercerem muitas atividades em tempos mais remotos, mas que muitas dessas restrições foram conseqüências do que fizeram (e fizemos) com a natureza das mulheres (nada a ver com aquele blá-blá-blá de vítimas).

Filosofar, por exemplo, depende não só de capacidade e inclinação naturais, mas de tempo, ócio, reflexão, liberdade e acesso. Ora, se às mulheres cabia, em parte por natureza, e em parte por imposição do contexto em que viviam, unicamente os cuidados consigo própria, a casa, filhos e marido, que tempo, acesso e liberdade restavam a elas para se dedicarem à filosofia, ou mesmo à política, à engenharia ou à medicina? Nada disso era acessível a elas. Muito poucas tinham acesso aos estudos. E isso mudou, alterando completamente o quadro estatístico. Acredito que há algo que podemos fazer além de nos dobrarmos a nossas determinações e características genéticas. E as mulheres estão saindo do armário, como diz o Milk em relação aos gays. Talvez, num futuro longínquo, tais mudanças possam ser ditas frutos de uma evolução da espécie (ou do gênero mulher), uma seleção natural dos mais fortes e aptos. E acho que não precisamos aqui falar em números.

Preciso dar um fim nisso. Hora de trabalhar!
Obrigada por vascolejar minhas idéias. Beijo e me liga ...

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Felicidade, amor pelos estudos e ilusões



Num desses felizes encontros casuais me deparei, ao entrar na USP, com uma mesa cheia de livros de filosofia expostos ali para vender. Uma tentação para quem gosta. Não resisti. Parei, toquei alguns, passei os olhos por aqui, por ali, respirei fundo (para sentir o cheiro daqueles livros novinhos), abri um, li partes, abri outros, devorei trechos, pensei: compro-ou-não-compro? Calculei os custos e benefícios e, controlada, comprei dois: um, dentre tantos que necessito: A Política de Aristóteles; e outro, que não conhecia, mas que me despertou uma curiosidade gostosa: o Discours sur le bonheur, de Madame Du Châtelet.


Quem seria essa mulher que escrevia, em meio a toda profusão grafomórfica sobre o assunto (muitos tratados, ensaios, cartas, poesias, teorias e teses sobre a felicidade já foram escritos) esse pequeno Discurso sobre a Felicidade - um tema que interessa a qualquer ser humano digno de assim ser chamado?

Penso que todos haverão de concordar com a máxima de que “todos os homens desejam ser feliz” e que, por isso, todos, de uma maneira ou de outra, buscam a felicidade. Porém, nem todos concordariam, como disse Aristóteles, quanto ao que seja a felicidade (EN I 1095a 20) e quais os meios para alcançá-la. Mas é notável que a idéia de felicidade reúne elementos comuns (e universais) facilmente aceitáveis para qualquer cabeça pensante (que pense minimamente bem, é claro!).

Por exemplo: a maioria das pessoas concordaria que a felicidade é um bem desejável, aliás, lembremos novamente Aristóteles, o bem mais desejável de todos (EN I 1097b 15), e que ela tem relação com ações, paixões, prazeres e dores, virtudes e vícios. Não são poucos os exemplos disso encontrados nas diversas obras sobre o tema.

Um exemplo dessa relação nos oferece Epicuro em sua Carta sobre a felicidade (a Meneceu): “De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas”(p. 45-46).

Bom, o Discours sur le bonheur de Émilie du Châtelet [1706-1749] despertou minha curiosidade não só pelo tema (já que eu também persigo a felicidade, como todo e qualquer mortal comum), mas também porque foi escrito por uma mulher. E, pasmem, uma mulher do século XVIII, tempo em que a atividade filosófica era, raríssimas exceções, reservada aos homens.

Abri e avidamente devorei aquele livrinho: uma nova personagem da literatura filosófica francesa do século XVIII apresentava-se a mim, conhecida não só por sua personalidade e comportamentos inusitados para a época, mas também por sua erudição filosófica, literária e mesmo científica. Muito se tem a dizer sobre a vida e escritos dessa mulher que não caberia aqui nesse pequeno espaço. Por isso, limito-me a tecer apenas alguns comentários.

Segundo Elisabeth Badinter, que escreve um pequeno prefácio à tradução da obra, a pergunta que se coloca nesse pequeno discurso é: “como ser feliz neste mundo e, sobretudo, quando se trata de uma mulher que, apesar de excepcional, vê proibidas para si quase todas as ambições e glórias permitidas aos homens?”

E mais, ao passar das reflexões gerais sobre a felicidade a reflexões e confidências mais íntimas sobre seu caso particular, a pergunta de Madame Du Châtelet desdobra-se também em “como ser feliz, enfim, quando se é uma amante apaixonada exclusivista e tirânica?”

Como se essas questões já não fossem suficientemente interessantes, é digno de nota que Du Châtelet estudou obstinadamente matemática, física e metafísica e foi considerada “a mais consistente e completa das ‘eruditas’ de sua época”, reconhecida (a contragosto de muitos) pelo mundo científico. Ademais, era uma amante (e notem, por favor, não uma esposa) apaixonada por ninguém mais ninguém menos do que Voltaire. Nesse sentido, deu o que falar, pois não só separou-se do marido e viveu por alguns anos um romance com Voltaire, como também, ao separar-se deste, alguns anos depois, “perdeu a cabeça” novamente por um jovem oficial da corte de Lorena chamado Saint-Lambert, dez anos mais novo do que ela, provocando assim um escândalo na sociedade ao engravidar dele aos 41 anos de idade.

Bom, façamos um recorte do que aqui interessa agora ser comentado, ou seja, ao menos algumas fontes e detalhes que podem, segundo Émilie, contribuir para a nossa felicidade.

Madame Du Châtelet diz que “devemos começar por nos dizer – e nos convencermos disso – que nada temos a fazer nesse mundo a não ser nos proporcionar sensações e sentimentos agradáveis. Os moralistas que dizem aos homens: reprimam suas paixões e controlem seus desejos se quiserem ser felizes, não conhecem o caminho da felicidade. Só se é feliz com os gostos e paixões satisfeitos; digo gostos, porque nem sempre se é suficientemente feliz com as paixões, e, na ausência de paixões, é preciso contentar-se com os gostos. Deveríamos, portanto, pedir paixões a Deus, caso ousássemos pedir-lhe algo” (pp. 4-5).

Curioso isso, pois vocês leitores não perguntarão a ela se as paixões não nos fazem mais infelizes do que felizes? Ça dépend, eu diria: é preciso qualificar as paixões. Émilie considera as paixões que contribuem para a nossa felicidade (as chamadas paixões virtuosas) e as que nos arrastam à infelicidade (paixões viciosas). Além disso, afirma : “... quanto menos nossa felicidade depende dos outros, mais nos é fácil ser feliz” (p.20). Nesse sentido, uma das paixões que Émilie considera virtuosa e menos dependente dos outros é a paixão pelo estudo:



“... por essa razão de independência, o amor pelo estudo é, de todas as paixões, a que mais contribui para nossa felicidade. No amor pelo estudo encontra-se encerrada uma paixão da qual uma alma elevada jamais é inteiramente isenta, a da glória; para a metade das pessoas, existe apenas essa maneira de conquistá-la, e a essa metade justamente a educação arrebata os meios de alcançá-la, tornando-lhe a fruição impossível” (p. 21).

É claro que essa paixão específica não captura a todos. É preciso ter inclinação para ela. Mas Du Châtelet observa que “o amor pelo estudo é menos necessário à felicidade dos homens que à das mulheres”. Ora, por quê? Primeiro é preciso lembrar que estamos no contexto do século XVIII, época em que as mulheres tinham poucos, digamos assim, instrumentos para alcançar a felicidade. Às “mal-nascidas” ou desprovidas de nobreza e riquezas, restavam-lhes o casamento, filhos e afazeres domésticos. E se a sorte não colocasse em sua vida um bom (pra não dizer excelente) casamento (e aqui não é fácil determinar o que significa um excelente casamento) e bons filhos, aí é que a felicidade tornar-se-ia mesmo impraticável. Já “os homens têm uma infinidade de recursos, que faltam inteiramente às mulheres, para serem felizes” (p. 21).

Certamente podemos empregar os verbos dessa última frase no passado, pois hoje, em pleno século XXI, as coisas não são mais assim. Atualmente a mulher conquistou muito do espaço que antes era reservado apenas aos homens. Aliás, permitam-me que eu me divirta um pouco rsrs, podemos constatar que, numa proporção sem precedentes, muitas mulheres superam em muito muitos homens (hehe, está aí Andrea Faggion que não me deixa mentir).

Mas voltemos ao século XVIII. Nessa época, os homens tinham muitos outros meios de se chegar à glória (uma paixão reconhecidamente das mais desejáveis). Eles podiam “tornar seus talentos úteis a seu país e servir seus concidadãos, por sua habilidade na arte da guerra, ou por talentos para o governo, ou ainda pelas negociações” - ambições, segundo Du Châtelet, “bem acima da glória que é possível se propor pelo estudo”. Já as mulheres eram “excluídas por sua condição, de qualquer espécie de glória”, mas quando, por acaso, se encontrava alguma que havia nascido com a alma elevada, só lhe restava o estudo para consolá-la de todas as exclusões e de todas as dependências às quais ela se encontrava condenada por condição (cf: p. 22). Era o caso dela.

É engraçado que esse quadro mudou muito, no sentido que indiquei acima, ou seja, de que as circunstâncias em que as mulheres vivem hoje já não limitam tanto os meios que elas têm de alcançar a felicidade. Mas nem por isso o amor ao estudo (válido evidentemente para aquelas que têm uma inclinação natural a ele) deixou de ser “um recurso seguro contra as desventuras” [...] “uma fonte inesgotável de prazeres” (p. 23-24). E nisso eu concordo com ela, embora eu pense também que o estudo (ou o conhecimento) contribui para que nos dispamos de muitas ilusões, um outro elemento que curiosamente Madame Du Châtelet afirma ser necessário para a felicidade.

Diz ela: “Para ser feliz é preciso desfazer-se dos preconceitos, ser virtuoso, gozar de boa saúde, ter gostos e paixões, ser suscetível de ilusões, pois devemos a maioria de nossos prazeres à ilusão, e infeliz de quem a perde. Em vez, portanto, de tentar fazê-la desaparecer com a chama da razão, tratemos de adensar o verniz com que ela reveste a maioria dos objetos; este é-lhe ainda mais necessário do que os cuidados e os adereços o são para nossos corpos” (p. 4).

É como se ela dissesse que certos objetos necessitassem de um verniz que escondesse suas imperfeições e misérias, um verniz que desse brilho e adornasse o que em si seria demasiadamente fosco e cru. Não sei se essa idéia cai bem à minha natureza, mas muitos dizem que, na medida do possível, quanto menos sabemos sobre a realidade das coisas, quanto mais ignorantes, mais facilmente somos felizes. Mas até onde sei, o estudo é um antídoto à ignorância e ilusão. Nesse caso, para não acusarmos Émilie de flagrante contradição, é preciso esclarecer o que ela entende por ilusão, pois, em geral, entende-se que a ilusão, se não se identifica com o erro, ao menos flerta com ele. Os filósofos vivem dizendo: ah... isso não passa de ilusão, associando-a ao erro. E Du Châtelet considera que “o erro jamais pode ser um bem, e certamente é um grande mal nas coisas de que depende a conduta da vida”(p. 11).

Émilie questiona se a ilusão é um erro e responde com um NÃO em alto e bom tom. Para ela, “a ilusão não nos faz ver os objetos inteiramente tal como devem ser para dar-nos sentimentos agradáveis”. O que a ilusão faz é acomodar os objetos à nossa natureza, tal como a ilusão de ótica que, embora não permita que vejamos os objetos tais como são, na verdade, não nos engana. A ótica nos faz ver os objetos “da maneira que é preciso que os vejamos para eles nos serem úteis” (pp. 15-16). Ops, como assim? Úteis? Acho que preciso de exemplos para entender isso.

Ela pergunta: “Por que razão eu rio mais do que ninguém no teatro de marionetes, senão porque me entrego mais do que qualquer outro à ilusão e, ao final de quinze minutos, acredito que é Polichinelo quem está falando? [...] que prazer teríamos com um outro espetáculo em que tudo é ilusão, caso não nos entregássemos a ele” (p.16)?

Bom, é verdade que se formos assistir a um espetáculo que se pretende ilusório (pois há aqueles que prezam o realismo), vestidos com uma armadura anti-ilusão, dizendo o tempo todo: bah, isso é pura ilusão! ele não atingirá seu fim, não cumprirá a sua função, não nos será útil, tampouco a nossa ida até lá. Nesse caso, parece-me que o que Émilie quer dizer é que a ilusão cumpre uma função na vida feliz. Qual seria essa função? Enganar-nos? Ora, mas o engano não é um erro? Não necessariamente. (Sinto que estou me enrolando rsrsr). Seria a de manter-nos acreditando que aquilo em que cremos é, sem dúvida, verdade mesmo? Ou, quem sabe, a de revestir, adornar ou adoçar a realidade amarga, nua e crua? Ich, percebam que dei voltas e acabei esbarrando no mesmo ponto.

Última tentativa de acomodar essa idéia. Recorro aqui à outra parte do Discours na qual Émilie fala de amor e ilusão.

“uma alma terna e sensível é feliz pelo simples prazer que experimenta amando; não quero dizer com isso que se possa ser perfeitamente feliz amando, conquanto não seja amado; mas digo que, embora nossas idéias de felicidade não se encontrem completamente ocupadas pelo amor do objeto que amamos, o prazer que sentimos em entregar-nos a toda a nossa ternura pode bastar para nos tornar felizes; e, caso essa alma tenha ainda a ventura de ser suscetível à ilusão, é impossível que não se acredite mais amada do que talvez o seja efetivamente; ela deve amar tanto, que ama por dois, e o calor de seu coração complementa o que realmente falta à sua felicidade” (p. 30).

Eis aí algo que não me desce bem novamente. De qualquer modo, vamos lá. Num certo momento do texto, Châtelet revela que foi feliz durante dez anos com o amor daquele que subjugara sua alma, mas que “quando a idade, as enfermidades e talvez também um pouco a facilidade do prazer reduziram-lhe o sabor” (p. 32), por um bom tempo não se apercebeu; amava por dois, e seu coração, isento de suspeita, usufruía o prazer de amar e a ilusão de se acreditar amada. Mas depois, perdeu essa condição “bem-aventurada”, claro, à custa de muitas lágrimas.

Percebo por que a idéia não me cai bem. Para que a ilusão possa valer como ingrediente de felicidade, é preciso que nunca a percamos, pois, uma vez perdida, adeus felicidade: quanto maior a felicidade ou o prazer que a ilusão nos proporciona, maior a dor e infelicidade ocasionada pela desilusão, pela perda daquilo que acreditávamos ser verdadeiro. Seria preciso, para conservar a felicidade, conservar a ilusão. Será que Émilie concordaria com isso? Talvez, ao menos é o que se depreende da seguinte passagem.

“Não sei, contudo, se alguma vez o amor já uniu duas pessoas feitas a tal ponto uma para a outra que jamais conheceram a saciedade do gozo, o arrefecimento motivado pela segurança, a índole e a insipidez geradas pela facilidade e pela continuidade de uma relação cuja ilusão jamais é destruída (pois onde ela entra mais do que no amor?) e cujo ardor, enfim, foi igual no deleite e na privação e pôde tolerar igualmente as desventuras e os prazeres” (grifo meu, p. 29).


sábado, janeiro 24, 2009

Sob a pena da morte




“... a melancolia inclui as coisas mortas em sua contemplação, para salvá-las” (Walter Benjamin)

Sempre me pego pensando na morte (isso não significa que eu seja nefasta). Penso na morte levada por uma certa dose de melancolia. Não preciso de muitas doses pra isso, apenas uma certa dose. Percebo que enquanto não morremos definitivamente, vivemos muitas mortes em vida. A morte vem a conta-gotas. Embora eu sempre pense na morte, não tenho a menor inclinação para o suicídio. Profundamente mesmo, só uma vez desejei morrer, e isso já faz uns quatro anos. Mas não quis me matar. Esfacelada, quis deixar-me morrer, aos poucos, de tristeza. Demorei a sair daquele estado, mas meu apego à vida, minha vontade de vida, instinto de conservação ou “coisa que o valha” (essa expressão me lembra alguém), falaram mais alto. E eu voltei: saí daquele estado de auto-abandono. 

Em geral, minha alegria e vontade de vida falam mesmo mais alto, mas eu tenho sim vontade de morte (pulsão, diria Freud). A tristeza, a melancolia, a dor na alma (quem as pode negar quando elas nos abatem?) conduzem meus pensamentos à morte. Já morri incontáveis vezes nessa vida. Perdi a conta das gotas. Nesses dias de muita tristeza, não funciono direito, o trabalho não anda, e se anda, só na marra. Tendo a diletar. Tenho necessidade de ficar quieta, ensimesmada, no redemoinho de meus próprios pensamentos. 

Mas minha casa é muito agitada (os deveres para com ela e minhas filhas me chamam a cada instante). Fico brigando comigo mesma (e muitas vezes com elas), num mau-humor desgraçado. I get unbearable. Brava, emburrada, bicuda e chorona, chuto as paredes, bato as portas, dou murros em pontas de facas. Minha única saída é trancar-me em meu quarto. Começo a folhear livros, especialmente de poesias. Procuro poesias de amor e de morte. Trechos de tragédias, romances, contos e filosofia. É uma maneira d’eu me acalmar, mergulhar na tristeza. 

Imagino alguém a se perguntar agora: mas por que ela não foge da tristeza em vez de procurar mergulhar nela? Não seria mais saudável? Talvez! Mas não vejo assim! Na verdade vejo algo de belo e sublime na tristeza, eu diria, uma estética no sofrimento, uma estética do sofrimento... pois o que seria da poesia, da música, da arte, da literatura e da filosofia, se seus gênios não experienciassem, com todo o ardor de suas almas, a dor do amor e da morte? Enfim, da própria existência? E como eu poderia apreciá-los tanto se eu não pudesse absorver e partilhar ao menos um pouquinho dos pensamentos, obras e sentimentos deles?

terça-feira, janeiro 13, 2009

Epitáfio


Um  dia, no ano de 1987, ganhei de aniversário do meu pai uma agenda chamada Diário Poético de Mário Quintana. Cada página, de cada dia, trazia um poema, um verso, uma trova ou uma frase.

Bom, já se passaram 22 anos e eu nunca consegui me desfazer dessa agenda. Ao fazer uma arrumação geral na tranqueirada, encontrei-a esquecida numa velha prateleira, toda amarelada, carcomida pelo tempo, com a capa desmantelada (mas colada com papel contact), e, imagino, uma quantidade incalculável de inimigos invisíveis - colônias de fungos que se alimentam dos restos de cola e papel velho. Pensei: devo jogar fora? Talvez... mas imediatamente me convenci de que não.
Ganhei do meu pai (motivo mais do que suficiente).
E eu gosto dela... ponto final!

Depois, vacilei novamente: puxa, mas está velha demais, carcomida demais! Tsts... deixa eu dar mais uma olhada. Sabia que a tinha guardado porque gostava, de vez em quando, de ler e refletir sobre um poeminha ou outro, em geral, tão simples e curtinho. Li vários novamente. Diversos me chamaram a atenção; outros não! Mas esse, ah... esse eu não resisti. Eis-o aí:

Epitáfio

Que importa restarem cinzas,
Se a chama foi bela e alta?

[Well... gosto pela simplicidade, pela impassibilidade, mas nem sou tão simples e impassível assim, aliás, não sou nada assim. Talvez, por isso, eu goste].

domingo, dezembro 14, 2008

Reflexões acerca de uma excursão pelas montanhas




























Dia desses um aluno me perguntou se eu era obrigada a participar das bancas de monografia ou TCCs que me aguardavam nos próximos dias. Expliquei-lhe que não, que os professores eram convidados (e não intimados) a compô-las, por isso, poderiam aceitar ou não. E conversei sobre a importância de participar de algumas bancas, já que isso faz parte do métier, e o quanto isso poderia ser interessante.

Esclareci, é claro, que não aceitaria, por exemplo, participar de uma banca sobre Hegel, Heidgger, Husserl (pra ficar só nos Hs), porque são autores que não estudo (apenas li por alto). Mas que aceitaria participar de bancas sobre Hobbes, Locke, Tomás de Aquino, Anselmo, Agostinho (sempre levando em conta o tema), enfim, que poderia participar da banca sobre autores que me são mais familiares.

Um autor que já estudei e volta e meia o retomo é Schopenhauer. Ao ler o TCC do Jorge Prado (um TCC nota 10), encontrei ali uma pequena citação que não conhecia, extraída de uma obra que eu também não conhecia. Sorvi aquele pequeno trecho com um prazer indescritível (não só aquele, mas aquele era especial, grávido de beleza e profundidade).

A despeito dos vários significados que a filosofia toma ao longo de sua história, bem como dos modos de se definir o que é filosofia, eis aí uma bela metáfora, uma definição, penso, mais poética do que filosófica (o que em hipótese alguma a desmerece, mas sim a enaltece), do que é filosofia:

"A filosofia é um elevado caminho montanhoso, o qual só se pode acessar seguindo uma vereda escarpada e pedregosa, cheia de pungentes pedregulhos. Essa via de acesso é uma senda solitária, que se torna mais intransitável quanto mais se ascende por ela. E quem a toma não deve abrigar temor algum, mas sim mostrar-se disposto a deixar tudo atrás de si, confiando em traçar seu próprio caminho sobre a fria neve. Ao bordejar o abismo e contemplar esse verde vale que ficou abaixo, experimentará uma poderosa sensação de vertigem. Mas terá de sobrepor-se a ela e sujeitar-se às rochas, ainda que seja com seu próprio sangue. Logo terá o mundo a seus pés, de sorte que seus pântanos e desertos se esfumacem, tornando, assim, qualquer irregularidade uniforme, até que suas dissonâncias deixem de importar. E em meio à semelhante atmosfera, tão pura quanto refrescante, nosso alpinista vê já o sol, ainda que abaixo reine, todavia, a negra noite."


(­­­­­­­­­­­­­­­­­SCHOPENHAUER, Arthur. Escritos inéditos de juventud: sentencias y aforismos II. Tradução de Roberto R. Aramayo. Valencia: Pre-Textos, 1999, p.27).

[Tela: O viajante sobre um mar de nuvens, 1818 Caspar David Friedrich (Alemanha, 1774-1840) óleo sobre tela, 98 x 74 cm Kunsthalle Hamburgo, Alemanha].

segunda-feira, outubro 27, 2008

XIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste/Toledo


Entre os dias 27 e 31 de outubro acontece o XIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste de Toledo, e eu estarei lá!!!
Eis o resumo da minha comunicação:

RELIGIÃO E MORALIDADE NA FILOSOFIA DE HUME


Penso que a crítica de Hume à religião insere-se em seu projeto maior de construir uma filosofia moral, ou ciência da natureza humana, ao mesmo tempo em que visa destruir a má metafísica ou metafísica das escolas, conforme distinção que ele mesmo apresenta em algumas passagens espraiadas por suas obras. No § 12 da seção I da Investigação sobre o Entendimento Humano (IEH), por exemplo, Hume diz: “devemos dedicar algum cuidado ao cultivo da verdadeira metafísica a fim de destruir aquela que é falsa e adulterada”. Para realizar esse objetivo, Hume debruça-se sobre o tema da religião natural e revelada a fim de examinar a validade dos argumentos em favor da existência de Deus (ou Deuses), seus atributos e plano providencial. Nesse sentido, a seção XI da IEH, acredito, pode e deve ser vista como uma importante peça introdutória da crítica que Hume faz ao argumento do desígnio ─ segundo o qual a existência de um criador infinitamente benevolente, justo e sábio pode ser inferida a partir da ordem e da beleza do mundo ─ bem como um componente de sua crítica à Religião Natural em geral. Podemos encontrar nesta seção muitos argumentos que serão desenvolvidos de maneira mais profunda e completa nos Diálogos sobre a Religião Natural (DRN). Todavia, embora Hume se sirva nesta seção do argumento do desígnio como um instrumento de sua crítica à religião em geral, seu alvo principal é, conforme o título indica, discutir a existência de uma providência particular e de um estado vindouro. O ponto de Hume é mostrar que não temos boas razões para argumentar em favor de uma providência particular e de um estado vindouro com base neste argumento, embora revele que não está, propriamente, a negar a existência divina. Ao contrário, ele enfatiza que o principal ou único argumento aceitável em favor dela deriva da ordem natural. Mas a seção abrange também aspectos ulteriores. Hume defende que negar a providência divina e uma vida pós-morte não ameaça a ordem social e política, uma vez que a moral, entendida aqui especialmente como um dos pré-requisitos para a manutenção da paz da sociedade e segurança do governo, pode, conforme algumas teses defendidas por ele, ser fundamentada ao longo de linhas laicas, sem qualquer apelo a mandamentos morais divinos. No Tratado da Natureza Humana (TNH), ao tratar do tema da liberdade e responsabilidade moral, Hume diz que a religião tem sido desnecessariamente envolvida nessa questão. Ali ele assinala um péssimo expediente em discussões filosóficas “tentar refutar uma hipótese a pretexto de suas conseqüências perigosas para a religião e a moral”. A hipótese da qual Hume fala neste contexto é sua teoria da necessidade, conforme nos mostra a seguinte passagem: “a doutrina da necessidade, segundo a minha explicação, é não apenas inocente, mas vantajosa para religião e a moral” (TNH 2.3.2.§ 3-4). Como podemos perceber, Hume alega que suas críticas são inocentes à religião e à moral. Não obstante, sua crítica não só foi vista como prejudicial à religião em geral, mas de maneira tal que nenhum antecessor seu a empreendeu. Em relação à seção XI da IEH, pode-se dizer que o problema de Hume gira em torno de saber o quanto as questões religiosas dizem respeito ao interesse público. A seção é escrita na forma de um diálogo entre Hume e um amigo. Esse amigo assumirá o papel de Epicuro e fará de Hume “a parcela mais filosófica” do povo de Atenas. Note-se que ao proceder assim, Hume desloca a discussão no tempo e no espaço, o que pode ser particularmente importante à medida que se discute a necessidade que Hume tinha de servir-se de estratagemas literários para proteger-se da censura de seu tempo àqueles que criticavam a religião. Ironia, recursos literários e retóricos, afirmações contraditórias, todos esses elementos podem ser encontrados em seus textos, o que torna particularmente difícil identificar as intenções e real posição de Hume em relação à religião. Na narrativa da seção XI da IEH, por exemplo, Hume transfere a responsabilidade dos argumentos a personagens históricos (no caso de Epicuro) e imaginários (como a “parcela mais filosófica do povo de Atenas”, representada pelo próprio Hume). Mutatis mutandis a mesma estratégia aparecerá nos DRN, obra em que o autor não se exprime em seu próprio nome, dando lugar, assim, ao afrontamento de teses e argumentos concorrentes.  Vale lembrar que a seção XI da IEH foi escrita originalmente em forma de Ensaio cujo título era Das Conseqüências Práticas da Religião Natural. Mas, conforme pretendo mostrar, Hume ─ na voz do amigo que defende princípios epicuristas ─ argumentará que não ocorre, de fato, nenhuma das supostas conseqüências corrosivas para moral, a sociedade e segurança do governo.

sábado, outubro 04, 2008

Anpof 2008


Entre os dias 06 e 10 de outubro/2008, grande parte dos estudiosos de filosofia deste país participarão em Canela-RS do XIII Encontro Nacional de Pós -Graduação em Filosofia da ANPOF. E eu não poderia deixar de fazer o mesmo. Abaixo segue o resumo do trabalho que apresentarei no evento:


DIVINDADE, IMPUTAÇÃO E MAL MORAL EM HUME



Nos Diálogos sobre a Religião Natural o personagem Philo argumenta que, dada a existência do mal, a existência de uma mente criadora do universo somente pode ser aceita se essa mente for ou impotente ou portadora de deficientes qualidades morais. Nesse sentido, Philo contundentemente declara: “As velhas questões de Epicuro permanecem sem resposta. A Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então ela é impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal” (Diálogos X)? O apelo à evidência das falhas e imperfeições do mundo, abundantemente mencionadas na parte X dos Diálogos, serve a Hume não exatamente para refutar o argumento do desígnio, mas para interpor um limite às inferências que a analogia das mentes inteligentes tenta estabelecer, em especial, às inferências sobre os atributos divinos. Efetivamente, a hipótese de que o mundo teria sido planejado por um Deus bondoso é enfraquecida com o reconhecimento dos males naturais e morais. Ou seja, é até possível que o argumento do desígnio possa ser aceito, mas de modo algum ele poderia implicar a atribuição de perfeição, máxima bondade e justiça à divindade, tal como pretende a crença específica do cristianismo. Ora, se tais atributos se vêem enfraquecidos com o incontornável reconhecimento da existência do mal no mundo, uma possível base religiosa para a moralidade torna-se, assim, também enfraquecida. A partir desse aspecto da crítica humeana ao argumento do desígnio, meu objetivo será examinar a possibilidade que Hume oferece de discutirmos a moralidade sem qualquer apelo a noções teológicas e religiosas.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Professor João Paulo Monteiro na UEL


O Professor João Paulo Monteiro, professor de filosofia da USP, realizará uma conferência na UEL sobre “Problemas da Filosofia de Hume”. Um dos maiores especialistas no pensamento de Hume, internacionalmente reconhecido, João Paulo Monteiro fará sua conferência dia 28 de agosto/2008, quinta-feira, na sala de eventos do CCH/UEL, a partir das 19 horas. Após a palestra, haverá debate entre o professor convidado, os professores Marcos Rodrigues da Silva (UEL), Marília Côrtes de Ferraz (Unioeste/PR e doutoranda USP) e Andréa Cachel (doutoranda USP).

O evento é promovido pelo Departamento de Filosofia, Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea e Especialização em Filosofia Política e Jurídica. A entrada é franca. Para os interessados em receber certificado de participação, a taxa de inscrição é de R$ 5,00 (cinco reais) e pode ser feita no local.

O professor João Paulo Monteiro é autor de diversos estudos sobre a filosofia de Hume. Dentre seus principais livros podemos destacar: “Hume e a Epistemologia” e “Novos Estudos Humeanos”.

domingo, agosto 03, 2008

Gosto Estranho


[Desenho: Graciliano Ramos, de Hugo Enio Braz]


Uma de minhas manias, ao pensar numa palavra, numa simples palavra, é seguir as trilhas de seus subseqüentes significados. Angústia, esta é a palavra! Para onde me levas? Há alguns anos fui atraída pelo peso do sentimento, e da própria palavra, a ler Angústia de Graciliano Ramos. Há, ali, litros e litros de angústia. Eis um golinho dela!


"Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. [...] Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos [...] Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. [...] Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão... À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos [...] e disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre diabo. Tipos bestas. [...] O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido."

Pois bem, isso é só o começo! Bom mesmo é mergulhar naquela angústia. É claro que alguém poderia pensar: - mas que conselho esquisito... e eu lá quero isso pra mim? Que gosto estranho! Pode ser... so what?

Pra quem não conhece, mas quer conhecer, o protagonista de Angústia é Luís da Silva, um cara de 35 anos que, como vocês podem ver, tem um humor demasiado sensível. Ele é cáustico. Sua existência, de um lado, é completamente ordinária, mas seu mundo interior, aquele outro lado, está bem longe de ser frívolo. É mesmo de uma profundidade abissal!

Como bem nos conta Maurício Santana Dias, "narrador de sua própria história, Luis da Silva vive ruminando frustrações intelectuais, memórias de infância, o desejo desesperado pela vizinha Marina e o ódio pelo bem-sucedido Julião Tavares, que lhe rouba a pretendente". “A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Uma voz líquida e oleosa que escorria sem parar”.


"Escrito num andamento de pesadelo, mas com a concretude do pequeno detalhe cotidiano que é a marca do estilo de Graciliano Ramos, Angústia faz uma lenta imersão na consciência desse personagem complexo e atormentado, que afunda no inferno do ciúme [eu já cheguei lá também] e do ressentimento até o ponto de cometer um ato extremo".

“Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas”.



domingo, junho 15, 2008

Natureza atroz, paixão atroz... dúvidas atrozes!

Esse post refere-se ao comentário que o Aguinaldo fez ao meu post imediatamente anterior a este. Ali ele levanta uma questão que é, de fato, uma verdadeira e grande pedra no meu sapato. Não estudo (ao menos suficientemente), nem estudei tanto assim as paixões humeanas para apresentar uma solução clara aos problemas que emergem de sua teoria.

Aguinaldo: sei que sua pergunta reclama uma resposta ao problema da liberdade e responsabilidade moral, um problema cuja melhor solução você acredita que é Kant quem dá. Eu, sinceramente, sou uma vacilante ainda quanto a esse ponto.

Veja bem, no fundo, não acho que você sente paixão por um time de futebol (e não é qualquer time rsr) à revelia de sua vontade, mas sim de suas paixões, o que, segundo Hume, não são a mesma coisa. Ao contrário, seguindo os passos de Hume, você estaria determinado a querer isso pela sua própria vontade e não à revelia dela. Quer dizer, sua vontade quer isso (admito que isso soa bem esquisito e que vou ter de pensar mais, pois acho que me meti numa sinuca de bico). Se algo ocorre à sua revelia (à revelia do homem Aguinaldo) são suas paixões frente a esse objeto chamado Inter, que, nesse caso, são paixões violentas e não paixões calmas ─ distinção crucial que não considerei em meu comentário anterior, assim como a distinção entre paixões fortes e fracas. Eu não queria (e continuo não querendo) entrar nessa complexa dinâmica das paixões. Gostaria apenas de lembrar que aquilo que entendemos por razão, no domínio das questões de fato, para Hume, não passa de uma paixão calma.

E, talvez, para acalmar os ânimos dos defensores da liberdade (e eu me incluo aqui, pois o meu também se exalta, principalmente quando estou violentamente apaixonada), Hume diria que “o que se chama de firmeza de caráter implica o predomínio das paixões calmas sobre as violentas” (T 2.3.3), e daí a possibilidade de regularmos nossa conduta de modo a agirmos moralmente ─ já que a moral humeana, bem entendida, repousa, em última instância, na natureza humana, em seus sentimentos de aprovação e censura, prazer e dor, quer dizer, repousa nas paixões que sentimos diante de certas ações, comportamentos, inclinações ou, digamos assim, objetos.

Diga-me, você torce pelo Inter à revelia de sua vontade? Você não quer torcer pelo Inter? Desculpe-me perguntar, não quero de modo algum ferir seus sentimentos (ou suas paixões) com minhas perguntas, mas, investiguemos... por que, então, você não passa agora a torcer para outro time de futebol? Nem é preciso que você traia seu Estado. Por que você não exerce a autonomia de sua vontade e a determina a torcer, a partir de então, pelo Grêmio (ai... calma... sorry)? Você não quer torcer pelo Grêmio? Faltam-lhe boas razões para isso? Ou será que lhe faltam paixões? Sua vontade não é livre para querer diferentemente? Onde está, ao menos nesse caso, a sua autonomia volitiva?

Ai, que dúvidas atrozes! Minha vontade é ou não livre? Eu posso ou não querer diferentemente do que quero? Ai, como eu sofro... shuiff!

segunda-feira, junho 02, 2008

Triste Consolo


O post abaixo é comentário ao post "Por que sofrer com o futebol", publicado por Aguinaldo Pavão em seu blog http://agguinaldopavao.blogspot.com/ em 25/05/2008.

Agui, o post é uma graça, principalmente aquela parte em que você diz “sinto paixão por uma mulher que estuda os Diálogos sobre a Religião Natural de Hume”. Não sei por que razão, mas essa é a parte que mais gostei rsrsrs. A pior, e essa é claro que não gostei, é quando você diz saber “que há uma razão para sentir paixão por mulheres”, no plural. Essa eu anotei no meu caderninho negro grhgrhgrh (só espero não ser, por causa disso, processada por preconceito racial rsrs).

Mas o ponto que me interessa aqui é a lembrança que o post traz de Hume. Será que ele poderia amenizar esse seu sofrimento oferecendo uma explicação que o auxilie a compreender melhor as “razões escravas” dessa sua paixão pelo Inter? Sei não!

Você pergunta: “Por que sofrer com mais uma derrota do Inter? Porque tenho paixão pelo Inter. Mas a resposta não me satisfaz. Por que eu deveria sentir paixão por um time de futebol?”

Bom, a respeito dessas perguntas de índole apaixonada, bem sabe você que paixões não se sentem por dever. E acho que Hume diria que as razões que justificam essa sua paixão pelo Inter incluem também razões biológicas (embora, evidentemente, estas não dêem ensejo a nenhuma procriação hahaha), ou melhor, razões naturais. Explico:

Segundo Hume, as paixões e outras emoções semelhantes são impressões secundárias ou reflexivas que procedem de determinadas impressões originais, e pela interposição de idéias (T.2.1.1). Acredito que a paixão pelo time de futebol de seu Estado envolva uma diversificada gama de paixões, como por exemplo, a do amor e do orgulho (pela vitória do time da sua terra adorada, idolatrada, salve, salve rsrsr, não resisti), chamadas de paixões indiretas; a da tristeza (quando o time perde) e da alegria (quando vence), a esperança (de que irá vencer), o medo (de perder), o desespero e a confiança, ou seja, as paixões diretas. Estas, de acordo com a divisão humeana, são as que nascem imediatamente do bem e do mal, da dor ou do prazer.

Nesse caso, acho que não dá para negar (e nem é preciso confessar) que quando seu time perde você sente dor e tristeza, e, quando vence, seu amor e entusiasmo por ele se intensificam, seu coração se enche de alegria e orgulho. Ah... quanta paixão!

É curioso que Hume diga que os objetos do amor e do ódio se dirigem sempre a algum ser sensível exterior a nós. Ora, um time de futebol não é exatamente um ser sensível, mas uma união de seres sensíveis unidos num só time de seres. Hume diz também que as paixões compreendem “qualquer objeto que tenha conosco a menor aliança ou relação”. A teoria parece subsistir aqui.

Hume dá uma longa e complexa explicação sobre essa dinâmica das paixões. Busca as causas e objetos de cada uma delas. Mas não quero entrar nesses detalhes. Meu propósito aqui é apenas assinalar que “nas variações e disposições naturais da mente”, ao passar por diversas impressões, sensações ou emoções, ao produzir idéias e fazer associações entre elas, as razões de sua paixão pelo Inter dependem da constituição primitiva de sua natureza, ou seja, do modo como você se deixa afetar por este objeto que te faz sentir prazer e dor, euforia e decepção. Ora, você não deveria sofrer! Você não deveria sentir paixão pelo Inter: simplesmente você sente e sofre, sem dever e sem, talvez, propriamente querer. Tudo por causa da sua natureza humana hehehe! Um beijo!

terça-feira, maio 13, 2008

Beleza e simplicidade


















Segue comentário ao post (logo abaixo) sobre os Essays de Montaigne.

Inspirado, Aguinaldo assinala: eu gosto de uma passagem dos Ensaios em que Montaigne diz:

“Em casa, passo muito tempo na biblioteca, de onde, de um golpe de vista, observo tudo o que ocorre em minha propriedade. Da entrada descortino o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos. Ora folheio um livro, ora outro, sem ordem, ao acaso. Ora sonho, ora tomo notas ou dito, passeando, os devaneios que aqui se registram. Essa biblioteca situa-se no terceiro andar de uma torre. [...] Aí passo boa parte das horas e dos dias [...] Qualquer retiro exige um espaço para passear; meus pensamentos cochilam quando sento; meu espírito não anda sozinho, parece–me que o movimento é que o excita e força a trabalhar. [...] O cômodo, a não ser na parte em que se encontram a mesa e a cadeira, tem uma forma circular, o que me permite ver todos os livros dispostos em cinco filas de prateleiras. [...] É meu covil; procuro fazer desse recanto um domínio pessoal, e subtraí-lo à comunidade conjugal e filial” 

Montaigne | Essays | Da companhia dos homens, das mulheres e dos livros | Livro III | Cap. III

segunda-feira, maio 05, 2008

Sobre os Essays, de Michel de Montaigne


Que figura fantástica! Num desses meus ataques de curiosidade, por conta de uma simples palavra, entrei no oráculo google e coloquei aquela palavrinha curiosa ali, a fim de fazer uma pesquisa. Eu procurava o significado específico do termo uneasiness (traduzido por inquietude, inquietação, intranqüilidade, desassossego, desconforto), visto que um texto sobre Locke me remetia ao significado que Malebranche dava a ele. Precisamente inquietude.

No entanto, minhas pesquisas levaram-me a encontrar o termo, não por acaso, em alguns links sobre Montaigne. E ali mergulhei. Li pequenos ensaios sobre ensaios. Uma coletânea. E foi inevitável. Ali, eu me identifiquei.
Já conhecia alguns Ensaios de Montaigne. Mas, ali, soube que foi ele quem criou o gênero Essays. Do alto da torre de seu castelo Montaigne recolheu-se em "uma melancólica disposição de espírito" e passou a escrever.

Nasceram os Ensaios: "uma expressão da alma humana, inacabada e insatisfeita, sucessivamente tentando, errando e aprendendo. Por meio do ensaio, imprime-se a imperfeição de maneira tão insistente que não mentiria se dissesse que ela é objeto de uma procura" (Dutra, Luíza M. Das amarras da liberdade. In: Ensaios em Arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

"Com total liberdade criativa, [Montaigne] lançou-se à saborosa tarefa de interpretar o mundo, elucidando suas facetas ao expor a própria visão da realidade. Nos Essays, ele inova, fazendo da digressão uma arte. O ensaio toma forma a partir daí, embora não possa ser facilmente caracterizado: um passeio por idéias e temas variados, que nunca encerra em si uma visão acabada do mundo, mas um sublime contemplar" (Horta, Ricardo Lins. Passeios Possíveis. In: Ensaios em arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

"Montaigne..., então, projetava-se em sua obra até que essa passava a se confundir com o próprio autor. Afinal, como ele próprio afirmou Je suis moi-même la matière de mon livre. Mosaico pessoal, impressionista e leve, que exprime a reação íntima de um indivíduo ante a realidade, ante os sentimentos ou ante as cotidianeidades da vida, sem estrutura clara ou preestabelecida, já que, também na vida, nada é assim tão claro e definido, ao contrário, o que não nos faltam são incertezas e indefinições.[...] E nesse trajeto rumo aos ensaios, é certo que de um aspecto jamais se poderá prescindir: a subjetividade. Após quatro longos séculos, o ensaio ainda pede, exige, que o autor se exponha, se mostre. É preciso que se esteja lá, no texto, ainda que o texto não trate de si”. Francisco, Denis Leandro. Ensaiando sobre Ensaio. In: Ensaios em arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

Depois de me reconhecer nos ensaios, do térreo de meu apartamentinho, abandonei por mais um tempo o texto de Locke e fui ler novamente alguns ensaios de Montaigne. Um deleite só!

O link no qual encontrei os (32) Ensaios em arte final (frutos de uma oficina de textos) organizados por Regina Lúcia Péret Dell’Isola, é: 

http://www.letras.ufmg.br/site/publicacoes/download/ensaioemartes.pdf

terça-feira, janeiro 08, 2008

Essa sou eu!


A bem da verdade eu menti. Disse que estava acometida por um mental block. Isso não passou de uma desculpa esfarrapada, estratégia (bem ruinzinha, confesso) para justificar o tempo em que andei sumida. Posso até ter vários blocks, isso não vem ao caso, mas minha mente não costuma ficar bloqueada, ao contrário, vive em constante atividade, haja vista o fato de eu ser uma amante da sabedoria (embora a tenha muito pouco), das boas, belas e profundas idéias, palavras, frases, parágrafos, teses, contos, romances, explicações, paradoxos (ich, provavelmente alguém deve estar me achando volúvel rsrsr). E eu acho que sou mesmo, ao menos nesse sentido!

A bem da verdade, eu entrei em crise com meu blog. Ele funciona pra mim como um alter ego. Comecei a achar que alguma coisa não ia bem com ele (rsr um pequeno problema de relacionamento).

Dizem que a gente deve escrever com uma certa constância, ainda que mínima, para poder manter os leitores e fazer valer o canal de comunicação. Pois é, entrei em crise porque não gostei, nesse caso, da idéia de dever, de ter de escrever para. Fiquei me cobrando... de mal comigo e com meu alter ego.

Para mim, escrever (ao menos num blog) tem de ser por puro prazer e de modo espontâneo, como faço agora e fiz nos outros posts. Há casos em que a gente escreve por pressão, como quando temos que entregar um texto, um trabalho, um capítulo de uma dissertação, uma tese inteira (deixemos isso para a Academia). Bom... na academia ou num blog, pra quem gosta do ofício, sempre há prazer (embora, muitas vezes, também comporte dor). O problema é que comecei a achar que ao ser espontânea estaria, ao mesmo tempo, me expondo demais. De novo algo não ia bem. Agora era com o meu superego. Maldito superego! Você me fez perder o sono! (Preciso me livrar dele, não do Alter, sim do Super).

Domingo passado, numa conversa de bar com meu namorado e minha amiga Carina conversamos sobre nossos blogs. Cada um falou um pouquinho do seu e do dos outros. Eles me disseram: e daí que você está se expondo? É assim mesmo... mande ver! e dane-se rsrs!



Isso me fez lembrar uma frase tocante: "[...] Que se afunde Roma no Tibre e de seus gonzos salte a gigantesca abóboda do império!" (Shakespeare. Antônio e Cleópatra).

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Mental Block



Esta é a bela teia de aranha que se formou aqui enquanto permaneço com este mental block. Mas não se desesperem (rsrsrs quem vê pensa...), e não me abandonem, é passageiro!

sábado, outubro 13, 2007

Operações da Matéria e Ações da Mente: A Tese Humeana da Unidade Explicativa



Unioeste: Campus de Toledo: de 15/10/2007 a 19/10/2007

Resumo: Hume oferece na Investigação sobre o Entendimento Humano (IEH) e no Tratado da Natureza Humana (T) importantes reflexões que visam elucidar a controversa relação entre liberdade e necessidade — ou seja, em que sentido esses conceitos são compatíveis ou incompatíveis. Hume, em seu exame das noções de liberdade e necessidade anuncia introduzir novidades que prometem ao menos algum resultado na decisão dessa controvérsia. Ele propõe um “projeto de reconciliação (reconciling project)” que consiste em mostrar que liberdade e necessidade são perfeitamente compatíveis entre si, e que afirmar que as ações humanas são livres não é afirmar que estejam misteriosamente fora do âmbito da necessidade, mas apenas que se realizaram sem constrangimento. A chave para a reconciliação humeana verteria sobre o significado da palavra ‘necessidade’ em sua discussão sobre a necessidade causal - uma consideração que torna a causação das ações compatível com a liberdade. Do ponto de vista humeano, não é preciso, nem justificável, qualquer comprometimento ontológico com a existência de um poder causal nos objetos ou a adesão à velha metafísica das causas primeiras. A necessidade é uma idéia e, como tal, só pode ser encontrada na mente de quem observa as coisas e não nas próprias coisas. Segundo Hume, nada que possamos observar em um objeto ou evento anteriormente à experiência provê uma razão para esperarmos que algum tipo de efeito se siga necessariamente a outro. Percebemos tão-somente conjunções constantes entre aquilo que costumamos designar como causa e seu efeito e, através disso, percebemos que um evento segue-se regularmente a outro. Os princípios epistemológicos que fundamentam a teoria de conhecimento humeana, relativos às idéias de liberdade e necessidade, são os mesmos para ações dos corpos e ações da mente. Nesse sentido, há, na teoria de Hume, um monismo explicativo ou metodológico, ou, como se poderia dizer, um monismo epistemológico. Hume mostra que a partir da inferência das motivações para as ações voluntárias podemos explicar o conhecimento histórico, a política, o fundamento da moral e a crítica estética. É evidente que não escapa a Hume a impossibilidade de explicar todos os aspectos da vida humana. O que ele busca é uma estrutura geral dentro da qual essa tarefa pode ser feita. A ciência humeana do homem intenta explicar os diversos fenômenos da vida humana apelando a princípios gerais, tal como a teoria newtoniana proveu explicações de por que as coisas no mundo da natureza acontecem como acontecem. Pode-se dividir a disputa sobre a necessidade e liberdade em dois problemas: um de ordem epistemológica e outro de ordem moral. O epistemológico é se as ações humanas são, de fato, causalmente determinadas por condições antecedentes. O moral refere-se às implicações do determinismo para a moralidade em geral e, especialmente, para a responsabilidade moral. Nesta comunicação pretendo discutir as conseqüências epistemológicas do compatibilismo humeano.

domingo, julho 22, 2007

A filosofia e a morte


[ Natureza Morta com Livros | Fernando Botero ]

Este pequeno espaço do meu quarto, no qual durmo, sonho e estudo, guarda muitos assuntos. Vocês sabem, uma de minhas principais atividades é estudar filosofia. Ao pensar num desses assuntos para escrever neste blog (que aliás estava formando teias de aranha, de tanto tempo faz que não escrevo) resolvi folhear uma de minhas cadernetas de anotações. Ao folheá-las encontrei várias notas sobre diversos autores e temas. Leio várias observações sobre Hume. Continuo a folhear e dou de cara com alguns parágrafos que traduzi de um texto de Penelhum, depois de J. Bricke, Barry Stroud, Georges Dicker, enfim, leio uma variedade de pequenos comentários. Percebo que quase toda ela, ao menos esta caderneta que está agora em minhas mãos (tenho várias, e elas marcam sempre um período de estudos), consiste em anotações sobre Hume e seus comentadores, ou seja, comecei a escrever nesta por ocasião do meu mestrado. Folheio mais um pouco e encontro questões, dúvidas, termos desconhecidos, expressões estrangeiras, latim, grego, inglês, francês - quase chego a acreditar que sou erudita mesmo (e principalmente modesta rsrsrsr). Mas eu não sou nada disso, nem erudita e nem modesta hahaha. Mais algumas páginas e encontro já algumas observações sobre o meu doutorado, especialmente indicações bibliográficas que deverão ser consideradas. A cada página um cabedal de digressões, divagações e excursões que vão de Heráclito, Parmênides e Platão, a Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes... Enfim, esse caderninho contém um pequeno diálogo sobre esse grande diálogo que é a história da filosofia: ele traz uma pluralidade de vozes, autores, teorias, pensamentos e opiniões.


Bom, como quem brinca de mamãe mandou escolher aquele ali, mas como eu sou teimosa escolho este daqui, penso em expor algumas notas que fiz sobre Epicuro. A que mais me chama a atenção neste momento diz respeito à morte. Pensar na morte é para mim, num certo sentido, pensar na vida, na minha vida, na vida dos outros e na vida em geral. E eu estou particularmente inspirada pelo mais recente e nefasto acontecimento do maior acidente, até então, da história da aviação brasileira. Fiquei a pensar se as palavras de Epicuro poderiam servir de consolo àqueles que no momento sofrem a trágica perda de seus entes queridos.

Diz Epicuro (341-270 a.C): “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade" (Antologia de Textos, p.14). Quer dizer, a morte é simplesmente a dissolução do agregado corpóreo a que pertence a sensibilidade. Dessa perspectiva, a morte não existe para nós enquanto vivemos, assim como não existimos para ela quando surge, uma vez que já não existe sensibilidade ou capacidade de sofrimento.


Bom, certamente esse trecho, se não de maneira impossível, dificilmente contribuiria para amenizar a dor daqueles que sofrem a perda de pessoas queridas. Penso que essa passagem, se bem compreendida e experimentada, é capaz de tocar apenas o próprio espírito (talvez, apenas, de um espírito sobre-humano), e é apenas este, ao pensar na própria morte (e que para isso tem de estar vivo), que pode alcançar aquela imperturbabilidade de espírito (ataraxia) conquistada pelo domínio de si.

Ora, para Epicuro, a filosofia tem função terapêutica e deve libertar a alma (ou o espírito) das perturbações que a abalam. É o que se depreende da afirmação “Deves servir à filosofia para alcançar a verdadeira liberdade” (Antologia de Textos, p.13). Nesta obra encontramos também a seguinte declaração: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia se não liberta das paixões da alma” (p.13). Tais males e paixões que nos dominam têm suas origens naquilo que Epicuro chama de quatro erros ou falsas opiniões, a saber, o temor dos deuses, o medo da morte, o desejo ardente de prazeres e o pesar pelas dores. No caso daqueles que sofrem a morte de seus entes queridos é o pesar pelas dores da perda e a saudade que tristemente perturbam seus inconsoláveis espíritos.

quinta-feira, maio 24, 2007

Schopenhauer e o pessimismo


Numa de minhas postagens abaixo “A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?”, usei a expressão punctum pruriens vista uma única vez no suplemento 17 (referência ao § 15) que Schopenhauer faz ao livro I do Mundo Como Vontade e Representação. Quando me servi dela prometi explicar depois o que significa. E aqui estou, depois de um longo e luminoso verão, para cumprir minha promessa.


Li essa expressão quando estudava a Teoria da Liberdade da Vontade de Schopenhauer – objeto do meu TCC. Ela me tocou sensivelmente porque, além da passagem em que a expressão se encontra ser extremamente bela, como eu não sou versada em latim, fiquei incomodada e curiosa para entendê-la. A expressão aparece na seguinte passagem:


"O espanto filosófico é, no fundo, uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e sua intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam aplacar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias." (Schopenhauer apud Rosset | Schopenhauer, philosophe de l'absurd | p.18)

Este trecho se apresenta de uma profundidade abissal. Ele atinge o ponto nevrálgico do pessimismo schopenhaueriano. Como se sabe, para Schopenhauer, “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida...” (PP, §148, 277) é o sofrimento. Trata-se do modo como ele concebe a existência, isto é, como uma dor infinita, um sofrimento inexorável. A felicidade, prazer ou bem-estar é avaliado pelo autor como ausência de sofrimento. Nesse sentido o fundamento destes é negativo, em oposição à positividade da dor. Para ele o sofrimento banha o mundo. A existência é falta, carência, desejo insaciável e necessidade. Quer dizer, prevalece a dor e o sofrimento. No § 65 do MVR, Schopenhauer diz: “Com efeito, o que é um sofrimento? Apenas uma vontade que não está satisfeita, e que está contrariada”.

Punctum pruriens significa ponto pruriente, de prurido mesmo. Aquele ponto que nos queima, seja pelo calor ou pelo frio. Vocês já ouviram falar de inferno gelado? Pois é, em geral quando pensamos em inferno, nos vemos logo ardendo em chamas. Mas o gelo também dói e queima, o que me faz lembrar a representação que os budistas fazem dos vários infernos, incluindo aí a idéia de um inferno gelado. Ou seja, punctum pruriens é aquele ponto que nos faz sentir comichão, que nos incomoda insuportavelmente, que nos faz desejar algo ardentemente, seja em alcançar ou possuir algo, seja em nos livrar de algo. Quando Schopenhauer diz que a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor (registre-se que na música o acorde menor é mais denso e dramático, o que indica uma certa tensão), penso que ele está a dizer que o despertar filosófico se dá quando nos deparamos com a dor infinita que é a existência. A afirmação de que o mal moral, o sofrimento e a morte são o punctum pruriens da metafísica (lembremos que o núcleo do sistema filosófico de Schopenhauer é a metafísica da vontade) corresponde, a meu ver, à tese de que a consciência trágica, oriunda da certeza ontológica que o homem tem da morte, mais a consideração da dor perpétua e da miséria da vida são o que dão o mais forte impulso ao pensamento filosófico e à explicação metafísica do mundo.

Agora, se estou ou não de acordo com esta concepção da existência seria matéria para um outro post


quarta-feira, abril 11, 2007

Artigo na Dissertatio (UFPel)



Segue abaixo artigo meu publicado na Revista Dissertatio de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas [n.24]

O Compatibilismo em Hobbes
 

Resumo: De acordo com Hobbes, a liberdade deve ser entendida como ausência de impedimento ao movimento de um corpo qualquer. O autor de Of Liberty and Necessity acredita que todas as coisas que acontecem, incluindo toda ação humana, são efeitos necessários de causas antecedentes. Ele não reconhece a existência de uma vontade livre, embora admita que existam ações livres. Hobbes pensa, como compatibilista, que a liberdade da ação é consistente e compatível com a necessidade. Neste artigo faço uma análise dessa concepção.

Palavras-chave: compatibilismo, necessidade, liberdade, ação, responsabilidade moral

segunda-feira, abril 02, 2007

A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?


Numa noite dessas recebi um telefonema do Aguinaldo dizendo que ao tentar trocar a lâmpada da cozinha cortou de maneira dramática seu dedo no lustre. É claro que o drama maior estava no modo como ele contava do que propriamente no corte. Ele tem o poder de deixar a gente sem saber qual é mesmo a verdade, se está a brincar e, se pudermos falar em graus de verdade, qual é esse grau. Fiquei um tanto desconcertada porque, a distância (e eu estava impossibilitada de ir até lá), não poderia fazer nada, a não ser dizer algumas palavras de conforto. Na manhã seguinte enviei-lhe um e-mail assim:
- Bom dia! Sarou o dedinho? Precisa de algo? Beijos!

E ele, com aquela sempre endiabrada mente filosófica, enviou-me a provocação que se segue:
- Oi. Segundo o grande filósofo escocês, "não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo" (T: 2. 3. 3). O que você acha? A mim, não convence. O meu dedo está bom. Beijo.

Aguinaldo sabia que eu conhecia essa passagem do Tratado da Natureza Humana de Hume. Ele sabia também que sua provocação atingiria meu punctum pruriens (explico depois o que isso significa), afinal, eu já havia me incomodado muito com essa passagem. Fui lá no Tratado conferir e apresentei-lhe a seguinte resposta como conclusão (passível de revisão, é claro!).

Caro Aguinaldo: a mim também não convence. E nem acho que Hume queira mesmo nos convencer disso. A meu ver, a afirmação é capciosa e serve de estratagema para corroborar sua tese de que as paixões, como móbiles das ações, têm primazia sobre a razão, ou seja, de que “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (TNH: 2.3.3)

O que Hume está a dizer? Que a razão não se opõe à preferência da destruição do mundo e que é perfeitamente natural e legítimo optarmos por ela em vez de arranharmos um dedo? Ou que a perspectiva de virmos a sentir dor em conseqüência de um arranhão no dedo tem mais poder e influência sobre nós do que a perspectiva racional de preferir a destruição do mundo?

Ora, não vejo (e acredito que Hume também não vê) como a idéia de destruição do mundo possa envolver somente a razão. A meu ver essa perspectiva inevitavelmente envolve paixão, pois a destruição do mundo todo (ao menos para um ser humano) implica uma perspectiva de dor e, portanto, uma paixão - por certo muito maior do que a de um arranhão em meu dedo. Talvez essa afirmação possa valer para a alma de um egoísta facínora (ou seja, para a alma de um desalmado rsrsr, e o que é pior, completamente irracional, pois não posso compreender como alguém pode preferir a destruição do mundo sendo racional), mas não para a de um ser humano mortal e comum, dotado de razão e sensibilidade.

Ademais, se tomarmos ipses litteris a afirmação em pauta, sem levarmos em conta o que vem antes e o que vem depois, penso que as próprias explicações de Hume destruir-se-iam a si mesmas - e não acredito que Hume cometeria um deslize tão crasso como esse.

Veja só: ele diz que “... a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade...” (TNH: 2.3.3). Pois bem, como eu já disse, não me parece possível que só a razão intervenha na preferência da destruição do mundo todo. “E, em segundo lugar, que [a razão] nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade” (TNH: 2.3.3).

Ora, ao preferirmos a destruição do mundo não é a vontade de destruí-lo que está a se exercer? Se não for assim, teríamos de dizer que a razão sozinha influenciou a preferência da ação de destruir o mundo. Como você pode ver, ela teria agido sozinha, completamente depurada de vontade, e como ele mesmo diz, “a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição e é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção” (TNH: 2.3.3).

A bem da verdade, penso que o que Hume está a dizer quando afirma que “não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo”, ele está apenas querendo mostrar que é contrário à minha paixão preferir a destruição do mundo, ou seja, que a paixão de não destruí-lo tem de intervir com muito mais força sobre a perspectiva passional de um arranhão em meu dedo.

Um beijo!

sexta-feira, março 23, 2007

Fluxo e refluxo do politeísmo e monoteísmo


Na História Natural da Religião [1757] Hume trata todas as crenças religiosas como meros produtos da natureza humana. Nessa obra, Hume sustenta que a religião tem por base fatores psicológicos completamente independentes de um fundamento racional. Ao afirmar isso, Hume vai de encontro à tese segundo a qual as pessoas são levadas à crença religiosa pela contemplação racional do universo. Para Hume, as religiões populares têm origem nas paixões humanas mais primitivas e básicas, como por exemplo, nas paixões do medo e da esperança. Sendo assim, a origem das religiões populares não está, para Hume, numa tentativa de entendimento racional do universo, mas sim no medo de influências desconhecidas sobre a sociedade humana. Para demonstrar isso, Hume faz uma narrativa histórico-filosófica digna de nota. Conforme assinala Jaimir Conte (tradutor da obra), a perspectiva segundo a qual a crença é entendida como produto da natureza humana, “busca justamente as origens e causas que produzem o fenômeno da religião, seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas e as variações cíclicas entre o politeísmo [considerado a ‘religião original dos homens’] e o monoteísmo”.


Bom, nada melhor do que dar voz ao próprio Hume para confirmar a propaganda gratuita que faço aqui de sua obra:

“Deve-se assinalar que os princípios religiosos sofrem uma espécie de fluxo e refluxo no espírito humano, e que os homens têm uma tendência natural de elevar-se da idolatria [que é o mesmo que politeísmo] para o monoteísmo, e recair de novo do monoteísmo para a idolatria. O vulgo, ou seja, na verdade todos os homens exceto uns poucos, por falta de conhecimento e de instrução, nunca levantam os olhos para o céu, nem investigam a estrutura oculta dos vegetais e dos corpos dos animais, a ponto de chegar a descobrir um espírito supremo ou uma providência originária que conferiu ordem a todas as partes da natureza. Eles observam essa obra admirável de um ponto de vista mais limitado e egoísta, e, descobrindo que sua própria felicidade e desgraça dependem de influências secretas e do concurso imprevisto dos objetos exteriores, examinam com atenção perpétua as causas desconhecidas, que, por meio de sua poderosa mas silenciosa operação, governam todos os fenômenos naturais e distribuem o prazer e a dor, o bem e o mal. Essas causas desconhecidas também são invocadas em todos os momentos difíceis; e essas formas gerais e imagens confusas constituem o objeto eterno de nossas esperanças e temores, de nossos desejos e apreensões. Pouco a pouco, a imaginação ativa dos homens, incomodada por essa concepção abstrata dos objetos, dos quais constantemente se ocupa, começa a torná-los mais precisos e a revesti-los com formas mais adequadas a sua compreensão natural. Ela os representa, então, como seres sensíveis e inteligentes, semelhantes às oferendas e às súplicas, às pregações e aos sacrifícios. Eis aqui a origem da religião e, conseqüentemente, da idolatria ou do politeísmo” (História Natural da Religião, seção 8, p.71-71-grifei).