disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.
Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem-vindo.
"Não há amor de viver sem desespero de viver" (Albert Camus em O Avesso e o Direito).
"À querida e saudosa memória daquela que foi a inspiradora, e em parte a autora, de tudo que há de melhor em meus escritos - a amiga e esposa, cujo exaltado senso de verdade e justiça foi meu estímulo mais forte, e cuja aprovação foi minha principal recompensa - dedico este volume. Como tudo que escrevi por muitos anos, este livro pertence a ela tanto quanto a mim; mas esta obra, tal como está, teve em medida muito insuficiente o inestimável benefício da revisão dela; algumas das partes mais importantes haviam sido reservadas para um reexame cuidadoso, que estão agora destinadas a não receber jamais. Se fosse eu capaz de interpretar para o mundo metade dos grandes pensamentos e nobres sentimentos que estão sepultados em seu túmulo, eu seria o meio para um benefício maior do que o que se possa obter de qualquer coisa que escreva sem contar com e sem ser assistido por sua incomparável sabedoria."
(In: Sobre a liberdade, obra de John Stuart Mill [1806-1873] dedicada à sua esposa Harriet Taylor [1807-1858]).
Na verdade, H. Taylor foi o grande amor da vida de Mill, vale frisar, já que nem sempre a esposa (ou o marido) e o grande amor da vida andam juntas, quero dizer, coincidem na mesma pessoa. Mas eles têm uma bela história de amor, cumplicidade, companheirismo e parceria intelectual, tal como se pode perceber nas poucas linhas dessa tocante dedicatória.
Quanto ao fato de Mill ser aqui chamado de filósofo feminista, isso pode ser verificado, entre outros escritos, a partir da leitura de seu ensaio intitulado A sujeição das mulheres. Há uma boa edição das duas obras aqui mencionadas, com uma ótima introdução crítica, publicada pela Penguin-Companhia.
Toda semana em que entro num certo banheiro, de um certo posto de gasolina, de uma certa estrada, não me conformo em ver que o suporte para pendurar a bolsa que, em geral, as mulheres carregam está fixado poucos centímetros acima da lixeira. Fico pensando que é muitíssimo provável que quem teve essa brilhante ideia deve ter sido um homem que não costuma usar bolsas e, portanto, não entende nada do assunto.
Pergunto: de que vale um suporte para tal fim se quando penduramos a dita cuja ali ela fica tão mais encostada naquela lixeira (cheia de papéis higiênicos sujos e outros lixos mais) quanto mais ou menos comprida for a sua alça?
Ah... mas por que você não muda a lixeira de lugar? ora bolas, já pensei nisso, mas não há outro espaço que a caiba. Do outro lado temos cravado na parede o suporte para o rolo. E, no mais, qualquer outro lugar obstrui a porta. Ou seja, no way...
Quando estive em San Francisco, em Janeiro do ano passado, vi carros que andam sozinhos pelas ruas, sem motorista e sem passageiros. É curioso e assustador ao mesmo tempo.
Numa das noites em que estive por lá, minha filha parou rapidamente em fila dupla para que eu descesse em frente ao seu apartamento, no coração da cidade, numa rua bem íngreme, feito várias que têm por lá (é um sobe e desce que não tem tamanho).
Dali minha filha ia procurar um lugar para estacionar — artigo raro; de luxo mesmo, a ponto de me fazer pensar que o metro quadrado daquela cidadezinha de terras e mares recortados deve custar uma fortuna. Há muitos predinhos de três ou quatro andares que, dadas as especificidades da cidade, têm apenas uma garagem. Muita gente tem que estacionar nas ruas.
Logo atrás de nós vinha um desses carros sem motorista e passageiro. Já havia visto, durante o dia, un passant, um ou outro mapeando a cidade, tal como minha filha me explicou. Mas esse, daquela noite, parou bem atrás de nós. Tipo freou de repente para não bater atrás, e o carro ficou enviesado. Desci e, quando o vi, tão de perto, parado com as luzes piscando, fiquei perplexa. Era tarde da noite. Umas 11 pm. Estava bem escuro. E sempre tive medo de ficar sozinha numa rua escura.
Paulinha já havia se mandado rapidinho para procurar uma vaga, plugada no 220, comme d’habitude. Corri até a porta do prédio e, ali, do lado de fora, me embananei com as chaves. Estava nervosa, com o coração na boca.
Aquele carro vazio ficou ali emperrado, piscando suas luzes como quem não está entendendo nada. Não saía do lugar. Parecia mesmo ter parado no susto, como se o script tivesse mudado. Não havia ninguém dentro dele. Nenhum motorista, nenhum passageiro.
Gentemm, parecia um carro-fantasma a me observar pelas costas.
A porta do prédio era de vidro liso e transparente. Depois de me acertar com as chaves, entrei e me tranquei. Ali fiquei a observar os próximos acontecimentos, ansiosa para que minha filha (toda destemida) chegasse logo. Ela conhece os passos da cidade. Anda tranquilamente por lá. Eu? me senti completamente estrangeira. E era mesmo. A começar pela enrolação na língua 😛 na hora de travar uma conversa, solicitar uma informação, pagar uma conta, enfim, quando precisava me comunicar com desenvoltura.
Voltando ao relato do episódio sinistro, de repente, um carro “normal”, com motorista, parou atrás, uma vez que, parado ali de soslaio, o carro-fantasma estava a obstruir a passagem. O cara de trás deu umas duas ou três buzinadas. O carro-fantasma entendeu a mensagem, deu uma rezinha, endireitou-se na rua e desceu calmamente como se nada tivesse acontecido.
Paulinha chegou. Subimos para o apto. Vida que segue.
Lissy Elle's Photography
Hoje tive que ir ao shopping Catuaí e resolvi almoçar por lá mesmo. Entrei num restaurante (Original Prime Grill) e, na hora em que fui escolher o que comer na mesa de self-service, encostei numa mesinha lateral que tinha uma caixa de acrílico grande, cheia de latas de refrigerantes, sucos, garrafas de água etc… todas mergulhadas numa água com bastante gelo. Apenas toquei nela com o quadril. E eis que, não sei por que cargas d’água, a mesinha escorregou e a caixa espatifou no chão, fazendo um barulhão danado. E, claro, a água espirrou pra todo lado me dando um banho gelado. Todos do restaurante me olharam assustados. Eu apenas sorri, pedi desculpas aos funcionários (que logo se organizaram para enxugar o chão) e, meio encabulada, disse: nossa! mal encostei nela (dando a entender que não entendi como aquilo havia ocorrido). E acrescentei: tudo bem. Até que o banho foi bom, dado o calor infernal. Me servi, sentei e almocei calmamente. Quando fui pagar a conta, a moça do caixa me disse: não, você não precisa pagar nada. Ora, como assim? perguntei. E ela: dado o acidente com a caixa, o gerente pede desculpas e seu almoço fica por conta da casa. Eu insisti: imagina, não foi nada, não precisa. Olhei para o gerente e ele: faço questão, assentindo com a cabeça e um sorriso no rosto. Vi que ele não arredaria o pé da gentileza. Achei fofo demais.
Pode-se dizer que a relação entre a filosofia e a literatura vem sendo debatida há séculos. A história da filosofia está repleta de reflexões em torno desse tema. Reflexões que remontam, ao menos, à Grécia Antiga, com Platão e Aristóteles, e atravessam seus mais de 2.500 anos. Em cada período de sua história — antiga, medieval, moderna e contemporânea — há, nessa galáxia, uma constelação de filósofos-literatos e muita filosofia escrita em gêneros literários distintos: ensaios, diálogos, epístolas, tragédias, confissões, tratados, investigações, aforismos, romances filosóficos, romances autobiográficos, contos e poemas.
Afora esse aspecto em torno dos gêneros textuais, tanto filosóficos quanto literários, temos, de um lado, em seu sentido primordial, a filosofia em busca da sabedoria, do conhecimento e compreensão das questões mais fundamentais da existência, e, de outro, a literatura, como arte criativa, expressa por meio da linguagem e suas mais diversas narrativas. Ambas se expressam por meio da linguagem, das palavras, dos discursos. E produzem textos, isto é, são textualmente transmissíveis, cada qual a seu modo.
Nesse horizonte, o que se percebe é que, embora a filosofia e a literatura sejam disciplinas distintas, mostram-se, em seus variados gêneros, temas, aspectos, perspectivas e problemas, profundamente entrelaçadas. Dá-se, digamos assim, uma relação transacional entre elas, isto é, de transação, no sentido, entre outros, que Benedito Nunes deu a essa relação, em seu ensaio Poesia e filosofia: uma transa (2010), designando o termo poesia “no sentido estrito de composição verbal, vazada em gênero poético, [...], mas designando, também, no sentido lato, o elemento espiritual da arte [...] que acompanha o poético do romance, do conto e da ficção em geral”. Ali Nunes também esclarece o uso e significado do vocábulo ‘filosofia’, estendendo-o da noção de um “sistema e da elaboração reflexiva à denominação dos escritos, textos ou obras filosóficas que os formulam” (NUNES, 2010).
Dessa perspectiva, o próprio evento também se torna transacional, na medida em que propõe pontes com o curso de Letras, num momento em que as ciências, sobretudo as ciências humanas, encontram-se tão isoladas, e que as humanidades perdem espaço nos currículos da educação básica. Diante desse cenário, buscamos promover um debate acerca de um possível parentesco discursivo entre essas duas áreas das ciências humanas, bem como em torno de suas críticas, semelhanças, dificuldades, diferenças, limites, gêneros, temas e problemas.
Pergunta-se: em que sentido filosofia e literatura se aproximam? Dialogam? Com que olhares se veem? Em que sentido haveria uma transa entre elas? Em que aspectos se diferenciam? Para discutir essas questões, a filosofia sai em busca de um encontro (um date) com a literatura. Promove uma jornada de debates, propõe um diálogo, um flerte, um caso de amor. Ambas como espaço de humanidades, de expressões da vida humana. Quer especular o que literatos e literatas têm a dizer sobre a filosofia, e o que filósofos e filósofas têm a dizer sobre a literatura. Quer saber o que nossos alunos, professores, artistas, estudiosos, autodidatas, diletantes e curiosos pensam a respeito.
Em um evento de somente uma tarde e quatro noites, isso seria beber apenas uma gota do vasto e profundo oceano das Humanidades — conceito mais do que relevante nesse universo, e que deve ser sempre trazido à baila, tanto no ambiente acadêmico quanto fora dele.
Uma tal inteligência artificial anda me ligando. Quando ela diz:
- olá, eu sou a inteligência artificial da Vivo e tenho pra você blá blá blá... já desligo na cara dela. Recuso-me a falar com inteligências artificiais e suas vozes robóticas (embora tenha, às vezes, de recorrer a elas).
Esses sistemas de vendas (Vivo e afins) e/ou tentativas de resolver problemas técnicos (Net Claro e afins) por meio daquelas gravações intermináveis, nas quais a gente nunca consegue falar com um ser humano com o mínimo de inteligência natural, esses sistemas, eu dizia, deveriam ser chamados de sistemas de estultices naturais.
Em geral, os serviços são terceirizados por empresas que mal se comunicam. Para cada assunto, depois de repetidas tentativas frustradas e muito tempo perdido nas malditas gravações, damos de cara com um atendente ou um técnico diferente, que só entende de uma parte do sistema operacional da porra toda. E o problema não se resolve.
Há semanas encontro-me mobilizada em busca de uma solução para meu problema com os canais da Net Claro TV. Várias tentativas, horas e horas de conversas truncadas, técnicos que vão e voltam em sua casa sem que o problema se resolva, outros que não vêm, deixando-nos em esperas vãs, porque os sistemas não se comunicaram entre eles e a tal visita técnica não ficou devidamente marcada, enfim, ao que tudo indica, a coisa não tem fim...
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[Caio Fernando Abreu | Revista Bravo | Fev 2006]
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"Aí estão os elementos, que parecem zombar de toda coerção humana; a terra, que treme, se fende e soterra tudo que é humano e obra do homem; a água, que, em rebelião, inunda e afoga tudo; a tempestade, que sopra tudo para longe; aí estão as doenças, que apenas há pouco tempo reconhecemos como sendo ataques de outros seres vivos; por fim, o doloroso enigma da morte, para o qual até agora não se descobriu nenhum remédio e provavelmente nunca se descubra. Com tais forças, a natureza se subleva contra nós, imponente, cruel e implacável, colocando-nos outra vez diante dos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que pensávamos ter escapado graças ao trabalho da cultura."
[Sigmund Freud | In: O Futuro de uma Ilusão]
Estive vasculhando algumas velhas anotações e encontrei a seguinte passagem:
"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar em um parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro" (Lou Andreas-Salomé).
Não sei quando a anotei, nem de onde a extraí. Tenho duas biografias de Lou Salomé. Uma delas, li e grifei inteirinha (a que tem um prefácio da Anaïs Nin), cujo título é LOU, minha irmã, minha esposa, de H. F. Peters (Jorge Zahar). A outra, de Dorian Astor (L&PM Pocket), li e grifei boa parte, mas não a li inteira ainda.
Fiz uma rápida pesquisa e é certo que tal passagem se encontra aos borbotões na internet, todas sem referências pontuais, o que me faz desconfiar se a passagem é dela mesma, se a tradução é boa ("funesto de se enxertar um sobre o outro?" não soa bem, há termos melhores para designar o que se quer dizer), ou se se trata de mais uma daquelas imposturas que encontramos pelas nets. Mas isso, aqui, não tem importância. Importa o que a passagem diz, e o porquê desse trecho ter me chamado a atenção (provavelmente há uns 10 ou 15 anos).
Creio que desejava alcançar esse estado de vida, pois, naquele tempo, ao amar louca e apaixonadamente, não me sentia propriamente "eu mesma", ao menos em toda a minha inteireza, tal como me sinto hoje: plena, sem necessidade de me adaptar a ninguém, ou de fazer concessões que possam trair, em nome do amor, meus próprios princípios, opiniões e/ou sentimentos. Hoje, posso dizer que me encontro enraizada em meu solo particular, robusto e independente (ainda que não tenha garantia de que será sempre assim). Hoje, sou todo um mundo, seja apenas para mim mesma, ou mesmo para um outro amor, além do meu próprio. E isso não tem preço. Tem valor, mas não tem preço, se é que vocês me entendem...
"É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...] Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidade universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal".
Charles Baudelaire apud Susan Sontag
In: Diante da Dor dos Outros
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"... nós nos salvaremos pelos afetos. O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria."
[Ernesto Sabato | A Resistência]
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[art by William-Adolphe Bouguereau | Pietà | 1876]
O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.
"Minha querida, não há nem muros nem jardins secretos para você. Você tem as chaves para todas as portas."
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Albert Camus em carta a Maria Casarès, 12 agosto 1948, in Correspondance: 1944-1959. Paris: Gallimard, 2017.
"... queria te falar, te falar da morte de Ivan Illich, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo."
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Hilda Hilst | In: "A obscena senhora D" | São Paulo : Globo | 1a edição | 2001