terça-feira, dezembro 31, 2019

Corsário




Meu coração tropical 
está coberto de neve
mas ferve em seu cofre gelado
a voz vibra e a mão escreve mar

bendita lâmina grave 
que fere a parede e traz
as febres loucas e breves 
que mancham o silêncio e o cais

Roserais
Nova Granada de Espanha
por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar
me arrastar até o mar
procurar o mar

Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufragos
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar.


***


[ compositores: João Bosco & Aldir Blanc ]


Ouça aqui uma das mais belas versões dessa música, com João Bosco e Marie So.




segunda-feira, dezembro 30, 2019

À tua porta


Egoísmo

Fui sozinho à minha entrevista,
Quem é esse que me segue
na escuridão calada?

Afasto-me para ele passar,
mas não passa.

Seu andar soberbo
levanta poeira,
sua voz forte
duplica a minha palavra.

É o meu pobre eu!
Ele não se importa com nada.
Mas como sinto vergonha
por ter de vir com ele
à tua porta!

(TAGORE, Rabindranath | 1861-1941 | in: O Coração da Primavera | Lisboa | A. O. | 1990 | Tradução de Manoel Simões).


sábado, dezembro 14, 2019

Missivas


Meu querido,

Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, de saudade e de esperança, e meu coração e minhas entranhas, do doce fogo que abrasa sem queimar, e do amor e do desejo unidos em casamento feliz.

Por que assinarias umas cartas que só poderiam ter saído de tuas mãos? Quem me estudou, me formou, me inventou, como fizeste? Quem podia falar dos pontinhos vermelhos de minhas axilas, das rosadas nervuras das cavidades ocultas entre os dedos dos meus pés, desta “franzida boquinha rodeada por uma mini circunferência de alegres ruguinhas de carne viva, entre azulada e plúmbea, à qual se chega escalando as lisas e marmóreas colunas de tuas pernas”? Só tu, meu amor.

Desde as primeiras linhas da primeira carta, eu soube que eras tu. Por isso, antes de terminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante do espelho, imitando a Dânae de Klimt. E recomecei, como em tantas noites de que tenho saudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia que exploramos juntos, ao longo daqueles anos compartilhados que agora são, para mim, fonte de consolo e de vida na qual volto a beber com a memória, para suportar a rotina e o vazio que vieram substituir aquilo que, ao teu lado, foi aventura e plenitude. [...]
.
.

[Llhosa, Mario Vargas |  Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva |2009 | p. 186].

Dânae | 1907 | Gustav Klimt | óleo sobre tela

domingo, dezembro 01, 2019

Identificação


Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
e percorri o espaço no sopro do vento;
marulhei na corrente inquietadora de rios,
penetrei a mudez milenária das montanhas;
desci ao vácuo silencioso dos abismos;
circulei na seiva das plantas,
ardi no olhar das feras,
palpitei nas asas das pombas;
fui sublime n'alma do homem bom
e desprezível no coração do mesquinho;
inebriei-me da alegria do venturoso
e deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.

Nada encontrei mais doloroso,
mais eloquente,
mais grandioso
do que a tragédia cotidiana
escrita em cada vida humana.

[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | p. 119]




Man Bending Down Deeply by Egon Schiele (1890-1918, Australia) 
Museum Art Reproductions Egon Schiele

quarta-feira, novembro 20, 2019

Memória





Vozes-Mulheres 

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
    

[Conceição Evaristo | Poemas de recordação e outros movimentos | p. 10-11]




Esta é a Nayara. Minha aluna da UENP em duas disciplinas: história da filosofia moderna e tópicos especiais de filosofia moral. Foi ela quem leu, sob absoluto silêncio, este poema fodástico na abertura da XII Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Mulheres na Filosofia, antes mesmo de um 'boa noite a todas / boa noite a todos'. Há dias pensei em publicá-lo. Achei que hoje, dia da Consciência Negra, por razões óbvias, seria um bom dia.


quinta-feira, novembro 07, 2019

Zeitgeist : no espírito do tempo




Este é o cartaz da XII Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Mulheres na Filosofia; e IX Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP. Um evento realizado nesta semana, entre os dias 04 e 07 de Novembro/2019, e coordenado por mim. Confesso que não foi fácil, desde a sua concepção até a sua realização final. 

Quando assumi coordenar essa Jornada, em torno de abril/maio/2019, ainda sem a escolha de um tema, jamais imaginei que ele viesse a se configurar precisamente neste. Passei algumas semanas pensando em alguns assuntos e também quais temas poderiam ser interessantes, ainda que eles não contemplassem propriamente meus horizontes de estudos. Propus em torno de sete temas: Filosofia e Literatura; Arte e Filosofia; Filosofia Ensaística; Filosofia Política; Filosofia, Misticismo, Superstição e Fanatismo; Filosofia e Senso Comum; Ceticismo; Mulheres na Filosofia.

A ideia de incluir o tema "Mulheres na Filosofia" me veio à mente quando me lembrei da formação  do GT Filosofia e Gênero e, posteriormente, passei a notar a série "Conheça Filósofas" promovida pela Associação Nacional de Pós-Gradução em Filosofia - ANPOF. Achei que o tema estava, digamos assim, na ordem do dia. Mas jamais imaginei que o colegiado, composto atualmente por nove homens e uma mulher (euzinha aqui), votasse nele. 

De imediato, me vi em maus lençóis, uma vez que em 20 anos de academia estudei apenas o pensamento de filósofos homens. Curioso é que nunca havia estranhado propriamente tal fato. Tomava a hegemonia masculina dos cânones filosóficos e agendas de pesquisas nesse assunto como algo natural. Afora as mulheres que li (fora da academia), mais da literatura do que propriamente da filosofia, não conhecia bulhufas desse tema, nem ninguém que o trabalhasse pontualmente. Algo nada difícil de descobrir, dadas as ferramentas de pesquisa disponíveis na atualidade. 

A princípio, mal percebi que o assunto nos conduz, num certo sentido de modo indissociável, ao tópico do feminismo e às discussões sobre gênero e violência contra a mulher. Definitivamente, tal tema passava ao longe de meus horizontes de estudos, embora estivesse sempre a me rondar. Comecei a pesquisar, num primeiro momento, com uma certa resistência. Jamais havia me envolvido efetivamente com o feminismo, suas lutas e desdobramentos. Tampouco me assumia, declaradamente, como feminista. Porém, passei a perceber, de uns tempos pra cá, e, definitivamente, após me envolver com esse evento, que, na verdade, sempre fui feminista ─ feminista na vida, dada a maneira como a levei, e dadas algumas posturas determinantes que assumi e certas atitudes que tomei nesse meu mais de meio século de existência.

Foram meses gestando uma proposta, uma imagem e um texto de abertura que pudesse representá-la. A imagem já se encontra acima (arte realizada pelo Paulo Guerreiro da Concebe Agência de Publicidade). O texto, lido na abertura, após a leitura de um poema de Conceição Evaristo (depois eu digo qual e publico), segue abaixo:



XII JORNADA DE DEBATES: ENCONTROS COM A FILOSOFIA
MULHERES NA FILOSOFIA
IX ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA EM FILOSOFIA DA UENP


Na contemporaneidade, a mulher na filosofia assume uma posição sem dúvida bastante relevante. Isso se dá, principalmente, em virtude do momento histórico atual que, por sua vez, exige a inserção da mulher como conceito filosófico em face aos diversos sistemas e perspectivas de pensamento. Nesse horizonte, torna-se urgente pensar e ressignificar outros conceitos que, há algum tempo, encontram-se em crise: política, diversidade, minorias, lugar de fala, igualdade de gênero, feminismo, liberdade, violência, resistência, modos de avaliação e valoração de conhecimentos, práticas, culturas, etc. Contudo, é sabido que a presença das mulheres na filosofia (assim como em outras áreas do saber) foi, em grande parte, apagada ao longo de toda a tradição filosófica. Quer dizer, a perspectiva filosófica da mulher não se constitui de modo consistente como parte dessa tradição. Mas não é verdade que elas não existiram. A aparente ausência das Mulheres na Filosofia revela, em larga medida, desconhecimento da própria historiografia da filosofia: Hipátia de Alexandria, Aspásia, Safo de Lesbos, Hildegarda de Bingen, Lou Andreas Salomé, Susan Sontag, Graciela Hierro, Angela Davis, Émile Du Châtelet, Edith Stein, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Margaret Cavendish, Damaris Cudworth, Marie de Gournay, Christine de Pizan, Elizabeth de Bohemia, Judith Butler, Mary Astell, Anne Conway, Hannah Arendt (e tantas outras que não foram aqui mencionadas) figuram nesse universo filosófico até então muito pouco explorado e de evidente supremacia masculina. Ora, não cabe mais apontarmos esse apagamento das mulheres filósofas como ausência de Mulheres na Filosofia. É preciso, antes, questioná-lo, tendo em vista a construção histórica do pensamento e os diversos motivos pelos quais essas vozes estiveram relegadas ao silêncio. De outro lado, a crise das Humanidades aponta para um levante extremamente interessante de escrituras – filosóficas e literárias – nas quais as vozes das mulheres ressoam em caráter investigativo e reflexivo acerca de problemas e questões não apenas filosóficas, mas também políticas, econômicas, sociais e culturais. Em vista disso, uma Jornada de Debates em torno desse tema vem ao encontro dessas vozes femininas que clamam por uma investigação, resgate e lugar de fala das Mulheres na Filosofia. Alinhar as diretrizes de pesquisa em filosofia da UENP com os problemas que estão sendo postos na esfera nacional de pesquisa pela ANPOF ─ e, em especial, com as demandas sociais, políticas, econômicas e culturais da atualidade ─ visa aqui, além de promover o debate, revirar os cânones filosóficos, incluindo as filósofas nas agendas de ensino, pesquisa e extensão das universidades, de modo a reconhecer e fortalecer a presença fundamental das Mulheres na Filosofia e seus possíveis desdobramentos.


***
[obs: as primeiras linhas desse texto foram traçadas, lá no início, por um aluno da filosofia, Murilo N. Nucini, que topou de cara me ajudar a pensar  num projeto para esse evento. De lá para cá, o texto deu voltas e voltas em ma tête. Cortei, acrescentei, incluí, excluí, revirei frases, termos, expressões e parágrafos, mudei a ordem, torci e retorci, encorpando-o significativamente. Um retoque semifinal (aquele olhar exterior necessário de quem não o tem já viciado depois de tantas edições e reedições) foi dado pela minha amiga Bárbara Marques, professora da UEL  uma das conferencistas que já trabalhava esse tema].


Bom, acho que posso dizer, sem receio de passar por mentirosa, que o evento foi impactante para todos aqueles que participaram. De minha parte, tomei ciência de muitas mulheres filósofas escritoras porretas e poderosas da filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea. Como tema de estudos - Mulheres na Filosofia - será um caminho sem volta, ainda que eu não vá abandonar os estudos de meus filósofos preferidos. Um novo leque se abriu. Tenho em vista, agora, novos horizontes. Minhas alunas(os) também.

Para mais informações sobre essa XII Jornada de Debates (resumos das conferências, minicurso, mesa-redonda, intervenções culturais, atividade paralela e comunicações), acesse: 



quinta-feira, outubro 10, 2019

Escuros caminhos


Quem chorava em meu sonho?
Eu ia, deslembrada,
pelos caminhos sem nexo
no escuro do sono,
quando alguém soluçou.
Onde, nas algas profundas,
se enredava essa dor?
(Seu pranto doía no mundo).
Quem soluçava em meu sonho,
tão perto que me acordou?


..................................

[ Helena Kolody | Infinita Sinfonia | p. 63 ]


head back in | © Lauren Jenkins


domingo, setembro 01, 2019

Prece



Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
de ser o coração singelo que perdoa,
a solícita mão que espalha, sem medidas,
estrelas pela noite escura de outras vidas
e tira d'alma alheia o espinho que magoa.


[Prece | Helena Kolody | Infinita Sinfonia | p.116]



Golden Slumber © 2014 by Thomas Dodd


sexta-feira, agosto 30, 2019

O Fideísmo Místico de Demea e sua crítica ao Antropomorfismo nos "Diálogos" de Hume




Sensação boa essa de chegar em casa e encontrar um 'packet' contendo aquele artigo publicado depois de tanto tempo guardado e aguardado.

Apesar da espinhosa especificidade do tema, foi escrito no espírito segundo o qual "as decisões filosóficas nada mais são do que as reflexões da vida ordinária, sistematizadas e corrigidas" (EHU 12 | Hume | 1711-1776).

acesso em

Síntese: Revista de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.





Hume, nos Diálogos sobre a religião natural, faz com que o personagem Demea defenda algumas teses que, a meu ver, podem ser formuladas do seguinte modo: i) a assimilação dos tradicionais atributos divinos depende de argumentos místico-religiosos, pois nossa razão, embora seja potente para provar a existência de Deus, não tem poderes para nos dizer qual a sua natureza; ii)  o antropomorfismo implicado na tese de Cleanthes é inaceitável; e iii) a existência de Deus pode e deve ser demonstrada por um argumento formal ou prova a priori. Pretendo, neste artigo, examinar conjuntamente as duas primeiras teses, uma vez que as entendo como teses solidárias, isto é, uma implica a outra. Defendo que o fideísmo místico (ou misticismo religioso) de Demea está circunscrito à sua concepção religiosa cristã e que seu compromisso mais forte em sua crítica ao argumento do desígnio é com a teologia racional subjacente à prova da existência de Deus. Para tanto, faço um exame dos argumentos que Demea oferece contra o antropomorfismo implicado no argumento do desígnio e suas relações com aquilo que chamei de fideísmo místico.

Palavras-chave: Religião Natural, Existência de Deus, Natureza Divina, Fideísmo Místico, Antropomorfismo.


quinta-feira, agosto 15, 2019

Minuto




lá vem você
se passando por vento
como se ninguém te visse,

lá vem você dublando pensamento
como uma praia que se sentisse,

pra perto do riso, do risco, do início
das ondas, das dunas do espanto,

lá onde o calar fala mais alto
e onde o momento comemora
com um minuto de silêncio.



[Rodrigo Garcia Lopes | In: Visibilia | 1996 | Poemas Escolhidos | Centro Cultural São Paulo]

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(Photo: © Tetsuro Higashi)

terça-feira, julho 30, 2019

Verso Angular






Com a beleza e precisão
das ciências matemáticas
e um toque delicado
de geometria...

Bom Dia!

pois já dizia
Galileu Galilei
entre 1564 e 1642:

"... o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos."

quinta-feira, julho 25, 2019

Da calma e do silêncio




Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.



[Conceição Evaristo | Poemas da recordação e outros movimentos | Belo Horizonte | Nandyala | 2008]

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fotos: Morro do Gavião | Ribeirão Claro | Represa de Chavantes | Rio Paranapanema | Paraná | Maio/2019]





sábado, julho 06, 2019

Afora o teu olhar...



[...]
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
[...]





Lílitchka! (Em lugar de uma carta)


Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto —
um capítulo do inferno de Krutchônikh. (1)
Recorda —
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração — aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua .
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor, meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
— duro fardo por certo —
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos — rodopiante carnaval —
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

[Vladimir Maiakóvski |1916 | Tradução de Augusto de Campos]

(1) Alusão ao poema "Um jogo no inferno",
de A. Krutchônikh e V. Khliébnikov.


sábado, junho 22, 2019

Baruk sem ser Spinoza




Esse é o Baruk... o carinha mais difícil de conquistar que encontrei nessa vida. Do tamanho de um sapato, e da cor de um carvão (no escuro ninguém o vê), parece que tem medo de mim. A seus olhos devo parecer uma gigante, que anda a passos largos com suas botinhas ameaçadoras e uma cabeleira comprida, loira e esvoaçante. Baruk adora destruir uma vassoura (dizem que é sua tara). Talvez ele me veja como uma bruxa.

Na tentativa de atraí-lo pra um carinho, faço com minha voz experimentos: Baruk...  BAruk... BaRUk... vem cá coisa fofa... baRuK... baruk... vem aqui... vEem... vem... lindinho. Se tento falar naturalmente ele permanece inconquistável, se tento falar mais fino, melodioso e suave, tipo quando a gente fala com criancinhas (vem tiiii fofinho), ele continua a latir, irredutível, com rabinho, orelhas e olhares de desconfiança.




Logo que entrei na casa ele latia fino e ardido o tempo todo. Agora, só de vez em quando, quero dizer, quando estou sozinha ou na companhia de dois dos meus colegas. Porém, quando seu dono (que, aliás, é um gato) chega ou está presente, ele rosna e late pra mim como um louco, correndo atrás de minhas botas e canelas (o máximo de mim que ele alcança). Diz o dono que ele faz isso porque quer mostrar serviço, além de ter muito ciúmes dele.

Já tentei de tudo para conquistá-lo: desci à sua pequena estatura, o que significa deitar no chão, esperando que ele viesse até mim. Ele até veio, mas para me morder. Ofereci-lhe ração pra que chegasse perto e comesse em minhas próprias mãos. Sabem o que ele fez? Veio, comeu rapidinho e tentou me lascar seus dentinhos finos feito alfinetes. Não sei mais o que fazer. Diz meu colega Miguel que o conquistou em não muito tempo. E, de fato, ele é cheio de graça e carinhos para com o Miguel (morro de inveja). O Márcio não dá muita bola para ele, nem ele pro Márcio. Convivem muito bem. E sem melodramas. Com o Maciel, seu dono, vive in love. E ai de mim se chegar perto dele.


[ photos by Miguel Zioli]


sexta-feira, maio 31, 2019

Miséria existencial


Das páginas de um notebook qualquer 
encontrado, parcialmente rasgado, num terreno baldio 
da cidade de São Paulo, em 03 de maio de 2018...


Acordo cedo pra fazer algumas coisas, mas minhas intenções parecem se esvanecer no tempo de um mero cruzar de pernas. Estou perdido, sem emprego, sem dinheiro e sem esperança. Me vejo numa encruzilhada da vida. Mais uma. E tudo no mundo me parece sem graça, sem brilho, sem cor, sem gosto. Minha cabeça dói e não tenho vontade de nada. Dados os acontecimentos dos últimos anos, sinto-me enganado, injustiçado, indignado e, ao mesmo tempo, sem forças ou, talvez, coragem para gritar. Procuro resistir, mas, aos poucos, a desesperança e a depressão tomam conta de mim. Tento respirar fundo, o ar me falta... 



Preciso tomar algumas decisões e não sei direito quais. Tenho a sensação de patinhar na existência (tal como disse Camus alguma vez em algum lugar). Tento meditar para me equilibrar emocionalmente, arranjar forças para continuar, para encontrar uma saída. Porém, percebo que o que mais custa é mesmo continuar. Procuro sair do meu mundinho particular, mas o que vejo é apenas caos: caos político, caos social, caos econômico, caos mundial: caos, caos, caos para todo lado. Diante desse cenário, todas as questões parecem se reduzir à sobrevivência, à minha miserável e desgraçada sobrevivência. Sobreviver, resistir, lutar, persistir, continuar. Preciso respirar. Sair. Andar...




sexta-feira, maio 24, 2019

The true idea of the human mind





Nos dias 06 e 07 de junho/2019, terei o prazer de estar na UNICAMP, a convite do Prof. Dr. Daniel Omar Perez, para falar sobre a identidade e princípio de união que constitui uma pessoa, com base na formulação dada por Hume a este tema no Tratado da Natureza Humana.



Título I

I. Hume e a concepção de sujeito num teatro sem palco

(graduação: livro I)

[06/06/2019, 19 h, sala 05 do prédio da graduação do IFCH]


Título II


II. O papel das paixões na formação do sujeito em Hume

(pós-graduação: livro II)

[07/06/2019, 19 h, prédio da pós-graduação do IFCH]



Resumo: O tema da identidade pessoal tornou-se muito debatido na filosofia moderna e contemporânea a partir da controversa formulação dada por Hume no livro I do Tratado da Natureza Humana (1.4.6). Ali Hume rejeita a tese metafísica, defendida por alguns de seus antecessores e contemporâneos, segundo a qual existe um eu substancial, incorpóreo, contínuo e invariável ao longo do tempo, dotado de identidade e simplicidade perfeitas. Hume argumenta que a atribuição de uma identidade pessoal a um sujeito é produto de uma ficção, bem como de uma tendência natural da imaginação em conectar percepções na mente por meio de certos princípios associativos. Tendo em vista esclarecer o que a filosofia de Hume tem a dizer acerca da identidade do ‘eu ou pessoa’ a partir do pensamento e da imaginação (Livro I), e o que pode ser dito sobre ela a partir das paixões e do interesse próprio (Livro II), as aulas terão como objetivo uma exposição geral do tema por meio do exame de alguns elementos articuladores centrais de sua filosofia implicados neste tópico, tais como: percepções, impressões, ideias (e seus princípios de associação), imaginação, memória, crença, paixões e the true idea of the human mind.


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Art by Matthew Spiegelman


terça-feira, maio 14, 2019

Happy bday


Em alusão a Baudelaire, de minha parte, num Happy Bday, é mais fácil que eu me embriague de poesia do que de vinho ou de virtudes. Sendo assim, tomo aqui meu primeiro gole...



    "Perdão se sou existente - perdão!
    Quis dizer 'insistente'."

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P.H. Britto | Sete peças acadêmicas

sexta-feira, maio 10, 2019

Bagatela



II

Então viver é ísso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vício,
só isso.

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[BRITTO, Paulo Henriques | "Duas bagatelas II"| Mínima Lírica | São Paulo | Companhia das Letras | São Paulo | 1989]




domingo, abril 21, 2019

No meio de mim




Ygor Raduy
new painting over 
Caravaggio´s Flagellation of Christ


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Comunhão


A carnal, não a outra, a eucarística, também chamada canibalística, já que se trata de beber o sangue e comer a carne de alguém que morreu há 2000 anos - isso os canibais nunca conseguiram. Sim, a comunhão. Não a de bens, mas a carnal. Supondo que se saiba o que a palavra “carne” significa. Mas não é necessário saber. É apenas preciso tentar chegar sempre um pouco mais perto, mais, um pouco mais. Quando se vê, já estou em ti, já estás em mim. Terminantemente sagrado. “Que eu esteja convosco.” - “Tu estás no meio de mim.”


[Ygor Raduy | in: Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes | arquivo pessoal]



sábado, abril 13, 2019

Tremor de estrelas


Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma de névoa.

A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da ideia.

Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.

Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.

A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.

A neve cai das rosas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.

Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?

[...]

Se o azul é um sonho,
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas ?

Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?

Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Coração dos meninos!
Almas rudes das pedras!

Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.


[Federico García Lorca | Canción Otoñal ]



[collageArt by Sara Shakeel]


quinta-feira, abril 11, 2019

domingo, abril 07, 2019

Cântico Negro


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

[...]

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

[...]

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

[...]

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

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[ José Régio | Cântico Negro | Poemas de Deus e do Diabo ] 



Noir | by Hengki Koentjoro | Fine Art Photographer

segunda-feira, março 25, 2019

Poder da Palavra





Uma palavra
basta
para acordar os
demônios
que se hospedam
no poema.

Uma palavra
basta
para estancar
as veias desatadas
do poema.

Uma palavra
basta
para ferir de morte o poema.



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Francisco Carvalho | in: O Silêncio é Uma Figura Geométrica | 2002.

sexta-feira, março 15, 2019

Água fria


A água que bebi
na fria fontana
queimou os meus lábios.

A água, de tão fria,
como fogo ardia
até na minha alma.

Assim é o amor,
fogo que se bebe
na fontana fria.

Assim é a morte.
A água fria apaga
o fogo que ardia.

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Lêdo Ivo | in: De Plenilúnio | 2001-2004


“Bacio alla Fonte” | Photo by © Henri Cartier-Bresson 


quarta-feira, fevereiro 27, 2019

Poesia e prosa



                          
Quem ri quando goza
é poesia
até quando é prosa



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(Alice Ruiz)



quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Canção de já-não-mais




Se digo “estou”, mesmo em hora morta,
o silêncio contesta: “esteve”. Se ouso “sou”,
o mesmo hiato repara: “eras, foste, estiveste,
viste, feriste, vagaste.” E eu mesmo, 
já em doce genuflexão, concedo: 

“Daqui, pouco falta que me sustém sem partir,
espaçar, romper o que une flanco e flanco 
rumo ao sem susto, sem lastro, sem solidez.”

O silêncio aquiesce sem um gesto.

E se vieste, cabe “logo vais”;
e se estamos cabe “já não mais”.
Pois basta um zás – não mais estar:
o possível escasso que vos alinhaste sobre o chão 
agora vos é fosso, ataúde, desvão. 

Repara que nada vos sustenta, 
alinha, indica, oferece linha-guia 
ou pouso onde, abrigado do incerto,
possas reclamar-te existente fora do
limite esguio que vos cabe.

O vento que se nega transpassar-te.
A noite que te oculta o dele ventre,
olhos, pélvis, voz: tudo o que dele,
ausente, se demora e te suspende.

A dor que é tua mais perene mandatária.
A morte que te aguarda indiferente.
A noite se retrai e se afasta desdenhosa,
alada, para espaços mais egrégios.

Resta a ti, como leito perpétuo, a escuridão.
Escuridão e silêncio.




[ poema & pintura | ygor raduy ]

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* o último verso faz referência direta ao verso final do poema "The moon and the yew tree", de Sylvia Plath: "And the message of the yew tree is darkness. / Darkness and silence." In: "Ariel and other poems".

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hoje o facebook resgatou a lembrança desse meu amigo tão denso, querido e talentoso. Pena que de vez em quando ele mergulha nessa escuridão e silêncio. E dá uma sumida. Mas de vez em quando também ele volta, e ilumina tudo. Digo que lamento apenas retoricamente (ainda que sinta saudades dele), porque no fundo sei que ele se nutre dessa escuridão e silêncio para, em algum momento, ascender à luz.

terça-feira, janeiro 29, 2019

Void





A tristeza irreparável
Daquele que sabe que nada serve nem vale,
Que o esforço é um absurdo desgaste,
Que a vida é um espaço vazio,
Porque a desilusão vem sempre através da ilusão
E parece que a Morte é o sentido da Vida...
É isto, mas não é só isto, que tu vês no meus rosto
E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente...

Fernando Pessoa | in: Poemas de Álvaro de Campos | Editora Saraiva de Bolso | 2012.


terça-feira, janeiro 15, 2019

Déjà vu


Tortura e Glória

"Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. Veio a ter um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de algum livrinho, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima com paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade.

[e agora começa a melhor parte]

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.

Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho.



Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me
mandou entrar.

Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Bom, mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer está precisando que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você não veio, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se formando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não entender. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha. Com certo horror nos espiava: a potência de perversidade de sua filha desconhecida, e a menina em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar agora mesmo As reinações de Narizinho. E para mim disse tudo o que eu jamais poderia aspirar ouvir: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais comendo pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."

Clarice Lispector
2 de setembro de 1967
in: A descoberta do mundo
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Há pouco, quando li essa crônica, me vi criança, mas também em diferentes idades e contextos análogos. Tive a vívida sensação de um dejà vu, ao chegar nesse desfecho incrível, cuja última frase nos remete a uma mulher (ainda que menina), in love, numa espécie de affair, com seu amante (o livro), concebido como o mais amado e amoroso objeto de desejo. Oui, déjà vu!