quinta-feira, outubro 01, 2015

Besta-quadrada

Ontem à noite, ao voltar da UFFS, um táxi tentou me ultrapassar pela direita. Mas deu com os burros n'água (ao dar de cara com uma baita cratera e desnível no asfalto) e teve que dar uma freada daquelas: quase bateu na minha traseira direita. E eu, como faço do trânsito um lugar para, em casos como esse, esbravejar sem que ninguém me ouça, imediatamente disse: 

VAI! SUA BESTA-QUADRADA. VAI..!

Pronto: minha mente inquisitiva pariu uma pergunta que eu já havia me feito outras vezes, mas nunca havia parado para levá-la a sério. Eis a pergunta: por que a besta é quadrada e não redonda? (E olha que nem me perguntei por que ela não é triangular, retangular, oval ou coisa que o valha). Limitei-me a perguntar por que a besta é quadrada e não redonda.



Lembrei-me da propaganda da SKOL que diz que essa cerveja “desce redondo”. A ideia é boa. Sugere que ela desce macia, lisa, como uma bola que rola sem obstáculos e percalços. Bom, e se descesse “quadrada”? Sugeriria que desce com dificuldade, machucando, com as pontas dos ângulos do quadrado, a laringe, a faringe, o esôfago and so on...? 

Oh... inquietantes questões! 

Será que se a besta fosse redonda seria menos besta? Well, besta é besta em qualquer figura ou situação, mas quero saber por que nos referimos a uma pessoa muito besta como quadrada e não numa outra figura geométrica qualquer.

Lá vou eu consultar o oráculo do século. E eis a resposta: a besta-quadrada não tem propriamente nada a ver com a figura geométrica. Na verdade, a expressão foi, digamos assim, “encolhida”. A versão original é "Besta elevada ao quadrado", o que significa que ela poderia ser besta-cubo (elevada ao cubo), mas também à quinta, décima e/ou enésima potência.

Bah! Quanta besteira rs!

segunda-feira, setembro 28, 2015

Ausência


Ainda mal te deixei,
e vais comigo, cristalina
ou trémula,
ou inquieta, ferida por mim mesmo
ou cheia de amor, como quando os teus olhos
se fecham sobre o dom da vida
que sem descanso te entrego.
Meu amor,
encontrámo-nos
sedentos e bebemos
toda a água e sangue,
encontrámo-nos
com fome
e mordemo-nos
como morde o fogo,
deixando-nos feridos.
Mas espera por mim,
guarda-me a tua doçura.
Dar-te-ei também
uma rosa.

[Pablo Neruda, Ausência, in Poemas de Amor, tradução de Nuno Júdice, Dom Quixote]

domingo, setembro 27, 2015

domingo, setembro 20, 2015

Tácita aliança


Ele é o chefe. A divisão está lotada. Fila em todos os setores. Ella passa. O chefe? Arregala os olhos. Se atrapalha na entrevista sobre a greve. Ella percebe o impacto que sua passagem causa nele. E resolve se servir disso. Tudo é urgente. A burocracia é de ranger os dentes. E as soluções? Todas morosas. A divisão trabalha com poucos funcionários. Ella tem pressa.  Respira fundo, cresce o corpo, engrandece o espírito, e se exibe um pouco passando pra cá e pra lá como quem procura a pessoa certa para resolver seu problema. Ele, perturbado, dá a maior bandeira. Não consegue tirar os olhos dela. Ella passa, então, para o outro lado. Exibe-se um pouco mais. O chefe, todo atordoado, termina a entrevista, entra em sua sala, e manda um funcionário chamá-la. Tudo está implícito. Ambos sabem que não vai rolar nada. É suficiente que ele a olhe e que ela entenda o olhar dele. E, para ele, é suficiente que ela permita ser olhada com aquele olhar de quem diz que a quer, ainda que saiba que nunca vai tê-la. Ella é educada. Ele? Prestativo. Acompanha-a por todos os setores necessários, facilitando as coisas. Tudo se resolve rapidamente com a maior discrição e boa vontade. Ella estende a mão, agradece-o de modo cortês e, com um reservado sorrisinho no rosto, sai toda satisfeita e desenvolta. C'est tout.

quinta-feira, setembro 17, 2015

Uma Voz na Pedra


Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

[António Ramos Rosa]





domingo, setembro 13, 2015

Hurt




"o amor aperta meu pescoço, 
assim como uma mancha de sangue que se espalha 
mostra quando se está ferido..."


[Ludovico Vicedomini (Harvey Keitel) a Leda (Jane March), in: O Mercador de Pedras, 2006, Renzo Martinelli]

segunda-feira, setembro 07, 2015

Tal como o vento

Conheço vários intérpretes (e diversas versões) dessa música maravilhosa. Essa interpretação do David Bowie é a... "the best". Simplesmente divina.  Além disso, ele está lindo de morrer... (e eu já morri incontáveis vezes ouvindo-o cantá-la).



Wild is the Wind

Love me, love me, love me, love me, say you do
Let me fly away with you
For my love is like the wind
and wild is the wind
Wild is the wind
Give me more than one caress
satisfy this hungriness
Let the wind blow through your heart
For wild is the wind, wild is the wind

You touch me
I hear the sound of mandolins
You kiss me
With your kiss my life begins
You're spring to me, all things to me
Don't you know, you're life itself!

Like the leaf clings to the tree
Oh, my darling, cling to me
For we're like creatures of the wind
And wild is the wind
Wild is the wind

You touch me
I hear the sound of mandolins
You kiss me
With your kiss my life begins
You're spring to me, all things to me
Don't you know, you're life itself!

Like the leaf clings to the tree
Oh, my darling, cling to me
For we're like creatures in the wind
and wild is the wind

Wild is the wind
Wild is the wind
Wild is the wind

quinta-feira, agosto 13, 2015

Expectativas


Ele passava o dia esperando uma ligação dela, uma mensagem, uma iniciativa que o trouxesse ou o levasse de volta ao seu lugar. Sofria o silêncio dela. E quebrava-o escrevendo-lhe uma carta, apenas para dizer que ele não sabia mais onde estava, e que gostaria muito de sabê-lo. Dissera-lhe que gostaria de saber ainda mais se seu lugar fosse estabelecido por ela, ao lado dela. Mas se ela preferia o silêncio, que fosse então o silêncio a dizer que o lugar dele era ali, do outro lado do mar, ou melhor, naquela ilha em que a tirania do seu triste eu governava anarquicamente.

Ela respondera-lhe que não preferia o silêncio, mas que de algum modo ele se impusera entre eles. Acordava em prantos, passava boa tarde da manhã em prantos, lembrando-se das coisas que ele dissera. Lembrava-se e chorava também pelos descuidos que ela havia cometido com ele. Tentava escrever para ele o que realmente sentia. Escrevia bastante, chorava mais ainda. Perdida, congestionada, passava o resto do dia de cama, numa tristeza e infelicidade profundas, alquebrada, perseguida pelas boas e más lembranças, subjugada pelas dúvidas, asfixiada pelas dores, dominada pelo medo. 

Ela também esperava uma ligação, uma mensagem que a levasse até ele ou que o trouxesse até ela. Um turbilhão de questões constrangia seus pensamentos. Ela não tinha respostas. Temia pelas respostas. Conjeturava. Tinha a impressão de que haviam se perdido completamente neles mesmos. Ele, em sua casmurrice e misantropia. Ela, em sua sociabilidade natural. Ele, naquele ponto fixo, naquela linha reta. Ela, naquela difusão de pontos e linhas. Ele, na vida pacata e pouco diversa. Ela, na vida agitada e multifacetada. E não parecia haver culpados. Apenas seus tristes eus ilhados e perdidos em suas próprias tiranias.

art by Mantha Tsialiou
ink on paper

terça-feira, agosto 11, 2015

Guess Who?


Ele, atraído pela música, caminha até a sala, passa por ela e, com um ar sugestivo, pergunta-lhe: tá romântica hoje?
Ela, com aquele conhecido sorrisinho no rosto - uma mistura de discrição e malícia - responde-lhe: as always...





Someone really loves you
Guess who
Someone really cares
Guess who
S'open your heart
Oh, then surely you'll see
Oh, that the someone who really cares is me

Someone will wait eternally
Someone who'll want your love
Oh so desp'rately
Open your heart
Oh, then surely you'll see
Oh, that the someone who really cares
Who really cares is me

segunda-feira, agosto 10, 2015

Ventos uivantes

Os ventos estão uivantes, hoje, aqui, nessa cidade que não é minha. Uivaram a noite inteira. Quem leu O Morro dos Ventos Uivantes sabe o que isso significa. Talvez, lá em baixo, nas ruas, eles apenas soprem um ar morno, aquecido por um sol que brilha timidamente num céu de braços abertos. Mas cá, dentro do meu minúsculo e acolhedor apartamento, pelas frestas das janelas, ele uiva geme grita se contorce e chora, anunciando o maior dos pesos, isto é, o eterno retorno do mesmo

Há tempos eu não amaldiçoava, rangendo os dentes, o demônio que volta e meia aparece furtivamente em minha mais desolada solidão dizendo que terei de viver esta vida, como a estou vivendo neste instante e já a vivi outrora, mais uma vez e por incontáveis vezes; e que nada haverá de novo nela, que cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e que tudo que é inefavelmente grande e pequeno em minha vida terá de me suceder de novo, tudo na mesma sequência e ordem, e que a perene ampulheta do existir será sempre virada novamente, e eu, mera partícula de poeira, serei virada e revirada junto com ela (e todas as outras partículas de poeira). Minutos depois, após suspirar e pensar mais um pouco, lembrei-me que já experimentei instantes imensos nessa minha vida (muito maiores, melhores e mais frequentes do que este), nos quais certamente eu poderia dizer que esse demônio, na verdade, é um deus, e que a mensagem que ele assopra agora em meus ouvidos me permite exclamar, com grande contentamento, jamais ter ouvido coisa tão divina.


[quem conhece Nietzsche deve também conhecer (ou ao menos ter ouvido falar) de sua teoria sobre O eterno retorno do mesmo  anunciada no aforismo 341 de A Gaia Ciência, p.230, fonte inspiradora desse post, da edição da Cia. das Letras, 2001, e desenvolvida no Assim falou Zaratustra].

sábado, agosto 08, 2015

Afinal, por que não?

Pensei em escrever sobre algumas declarações, frases e expressões que li e ouvi nos últimos dias. Elas suscitaram vários temas interessantes (que vou elencar abaixo) sobre os quais eu poderia escrever, assim, numa ordem que não alteraria o resultado, pois todos levariam a um mesmo ponto.

Eu poderia escrever sobre valores e referências sagradas. Sobre jogar com ambiguidades de sentimentos. Sobre a inteireza nas relações amorosas, o silêncio necessário, o silêncio excessivo e cruel, a hora de falar, a hora de calar e a hora de jogar a toalha. 

Eu poderia escrever sobre o significado e importância das pessoas em nossas vidas. Sobre estratégias ocultas e a busca de satisfação do nosso querido e amado eu. Sobre nos colocarmos no lugar e nas mãos do outro. Sobre estilo, intuição e abandono. Gosto, falta de gosto, filosofia e olhos nos olhos. 

Eu poderia escrever sobre ciúmes, posses e palavras sopradas em ouvidos sensíveis. Sexo, literatura, perdão, abismos e pirilampos. Sobre desejos, sinais confusos, corações quentes, frios, feridos, sobressaltados e algo mais. 

Eu poderia escrever sobre decisões frágeis, negligências, filmes, afetos e atenções. Sobre versos tristes, rir e passear de mãos dadas. Meias-verdades, facebook, beijos e desculpas esfarrapadas. Sobre carências, carinhos, explicações, dedicatórias, teses e dissertações.

Eu poderia escrever sobre enredar pessoas nas teias pérfidas da manipulação. Sobre histórias de amor e ilusões perdidas. Sobre sermos ou não indiferentes aos sentimentos dos outros. Sobre choros e compulsões. Etta James, Van Morrison, zelo, emails, telefonemas, mensagens, cigarros e aviões.  

Eu poderia escrever sobre moleskines, olhos cansados e mentes turvas. Viagens mentais e a inexorabilidade do tempo. Sobre contar e não contar com o outro em nossas vidas. O significado de lutar por um amor, conservar e proteger esse amor. Sobre o ato de ludibriar com palavras, ter a posse do coração de alguém, e BB King quando canta Guess Who, Waiting for you call e Come rain or come shine

Eu poderia escrever sobre dedicação e capacidade de amar. Johnny Winter e Johnny Cash in Hurtin' So Bad. Temores e tremores. Sobre sussurros, persuasão, solidão e silêncio confortável. Sonhos, cumplicidade, Eric Clapton, mágoas e rancores. Sobre melancolia, dores, ironia, o valor das palavras e a responsabilidade com o que dizemos.

Eu poderia escrever sobre Piazzolla e ideias que se desfiam. Sobre bons e maus argumentos. Sobre talentos e a falta deles. Ray Charles e palavras ao vento. Sobre culpa, lealdade, proteção, Robert Cray e Imelda May. Tolices e corações que sangram. Mentiras e enrolações. 

Eu poderia escrever sobre pedidos de espera, direitos e sinceridade. Sorrisos e estrelas apagadas. Sobre cartas, declarações de amor, bolhas de sabão e crueldade. Céu nublado, migalhas, hesitações, garantias vãs e tentativas frustradas. Sobre riscos, estranhos amores, leveza e felicidade. Sobre ventanias, prazeres e arrependimentos solenes. 

Eu poderia escrever, também, sobre loucuras, voragens e castelos de areia. Ella Fitzgerald, Schopenhauer e Leonard Cohen. Sobre pressa, ânsia, urgência e peças que não se encaixam. Abraços, contradições e flutuações anímicas. Sobre sangue, caráter e formação. Ressentimentos, Tom Waits, blues and rock’n’roll

Eu poderia escrever, ainda, sobre o que há de mais importante na vida. Sobre prosas, poesias e facadas no peito. Tangos e frequências eletromagnéticas. Raridades, belezas e economia de vida. Sobre Hume, almas leves, ternura, Lorca e Neruda. 

Eu poderia escrever sobre instinto, drogas e remédios para dormir. Sobre a morte, reclusão, apetites e deliberações. Sarah Vaughan, Allan Poe, feelings e maturidade. Sobre consistência, raízes, solo firme e profundidade. 

Eu poderia escrever sobre o ato de aliviar um coração, Montaigne, black coffee, viagens e aventuras. Sobre confiança, história e aprendizado. O amor, a amizade, ventos uivantes e promessas não cumpridas. Sobre dúvidas, incertezas e Georgia on my mind. Sobre compreender e não compreender. A franqueza, Kafka, Zweig, admiração, miséria, pequenez e borboletas azuis. 

Eu poderia escrever sobre whatsApp, egoísmo, Camus e altivez. Sobre protestos, omissões e lamentações diversas. Atitudes, prazos e tensões amorosas. Sobre o futuro, Balzac, Willie Nelson cantando Crazy, e Nina Simone Let it be me

Enfim (sei que já me excedi), eu poderia escrever sobre imagens distorcidas, Dostoiévski, comparações e angústias. Águas pantanosas e areias-movediças. Móveis ocultos, mensagens codificadas, esperanças, decepções, cálculos, escolhas, doçura, paixão, liberdade e muito mais, bem como, para encerrar, um conto de fadas que pode dar certo. Afinal, por que não?



sexta-feira, julho 31, 2015

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei.

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso.

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo.

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

[Sophia de Mello Breyner Andresen]
Livro Sexto (1962)

segunda-feira, julho 27, 2015

A carta de amor



"Como desejo, a carta de amor espera sua resposta; ela impõe implicitamente ao outro de responder, sem o que a imagem dele se altera, se torna outra. '[...] Eternos monólogos sobre um ser amado, que não são nem ratificados nem alimentados pelo ser amado, acabam em ideias falsas sobre as relações mútuas, e nos tornarão estranhos um ao outro quando nos encontrarmos novamente, e acharmos então as coisas diferentes do que, por não termos nos certificado delas, se imaginava.” 

(Freud. Correspondência, 39, apud Barthes, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. p.33).

[ Francine Van Hove: Hand-Painted Oil Painting on Canvas]

quinta-feira, julho 23, 2015

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

[António Ramos Rosa | Viagem Através duma Nebulosa | Lisboa | Ática | 1960]

terça-feira, julho 21, 2015

O insuportável peso do ser

"Will"

[Photography by Tommy Ingberg]


alce esse voo
ice essa âncora
ascenda ao sombrio céu que te aguarda
voe leve
e leve contigo 
o insuportável peso do ser





A imagem acima é uma daquelas que me impactam e, por isso, salvo em meus arquivos. Tenho imagens guardadas há tempos, ali, em banho-maria, fomentando ideias e pensamentos. Fiz uma rápida pesquisa sobre o autor e vi vários trabalhos dele, todos perturbadores, inquietantes, surreais. Sempre que abria meus arquivos, ficava ali, a contemplá-la, cheia de perguntas do tipo: o que será que o cara quis dizer com ela? Qual o sentido, qual seria o seu significado? Escrevi muitas coisas a partir disso. Mas deletei quase tudo (é comum que eu faça isso).  Achei que me excedi, pois uma imagem, assim, tão impactante, talvez não careça de uma única palavra. Mas eu não vivo sem palavras. Sou uma enamorada da linguagem, do discurso verbal, da prosa poética, e não apenas imagética. Daí, para conter minha natureza verbal excessiva, tornei as ideias e sentimentos que a imagem suscitava em mim, mais condensadas e sintéticas. Deu nisso. That's all! 

[mais trabalhos deste autor podem ser encontrados em http://www.ingberg.com/ ]

quinta-feira, julho 16, 2015

The love letters

Particularmente inspirada, e com saudades das minhas epístolas de amor, especialmente daquelas já consagradas na história e na literatura, tomo em mãos as Cartas de Amor de Albert Einstein à Mileva Maric'. Abro, ao acaso, a Carta 16 (p.62), na qual Einstein nos dá uma pequena amostra da delicadeza e doçura com as quais se dirige à sua "querida boneca", ao mesmo tempo em que, em pouquíssimas palavras, transmite (ao menos parte de) sua visão a respeito do casamento, do relacionamento homem-mulher, e das forças motivadoras da vida. Nesta carta, bem como em muitas outras, Einstein revela-nos também a capacidade de compreensão e profundo respeito para com seus pais.



[Melchtal], segunda-feira, [6 de agosto de 1900]

Minha querida pequena, 

A primeira deliciosa cartinha que me enviou de casa chegou ontem. Saí sozinho para ler as linhas em silêncio, e depois relê-las mais duas vezes, e depois ler por entre as linhas com intenso prazer durante muito tempo antes de meter a carta no bolso e sorrir para comigo mesmo. Sua "sogrinha" tem estado muito amável e não toca mais no "assunto delicado". [...] 

Por enquanto, papai só me escreveu uma carta moralista, prometendo transmitir a parte principal em pessoa brevemente. Aguardo obedientemente. Entendo meus pais muito bem. Para eles a esposa é um luxo que o homem pode se permitir somente quando tem um bom padrão de vida. Tenho em baixa conta essa visão do relacionamento homem-mulher porque só distingue a esposa da prostituta na medida em que a primeira tem condições de obter do homem um contrato vitalício graças a sua posição social mais favorável. Tal visão é consequência natural do fato de que, no caso dos meus pais, como no de muita gente, o bom senso exerce um controle direto sobre as emoções. No nosso caso, graças às felizes circunstâncias em que vivemos, o prazer de viver é vastamente ampliado. Mas não devemos nos esquecer de quantas existências como as de meus pais tornaram possíveis as nossas. No desenvolvimento social da humanidade, o primeiro contingente é bem mais importante. A fome e o amor foram e continuam sendo as forças motivadoras da vida, tão importantes que quase tudo pode ser explicado por elas, mesmo se desprezarmos os outros temas dominantes. Sendo assim, estou tentando proteger meus pais sem comprometer aquilo que é importante para mim - ou seja, você, amor!

[...]
Quando não estou ao seu lado, parece que me falta um pedaço. Quando sento, quero andar; quando ando, fico pensando em voltar para casa. Quando me distraio, quero estudar, quando estudo, não consigo ficar parado e me concentrar. E quando vou dormir, não fico satisfeito com a maneira que passei o dia.

Divirta-se, meu bem, e receba beijos carinhosos de seu 

Albert.

[Albert Einstein-Mileva Maric': cartas de amor/ Jürgen Renn e Robert Schulmann (orgs.); tradução: Telma Médice Nóbrega. Campinas, SP: Papirus, 1992]

domingo, julho 05, 2015

Endless



O sol nasce
o céu azula
o frio corta
o silêncio reina

o tempo passa
o tempo passa
o tempo passa

o sol se põe
o céu escurece
o frio gela
o silêncio permanece

o tempo passa
o tempo passa
o tempo passa




quinta-feira, julho 02, 2015

As palavras



São como cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

[Eugénio de Andrade]



(a imagem que ilustra o poema foi publicada na página do facebook Artes & Poesia: uma das inúmeras páginas que unem, como o próprio nome diz, arte e poesia. O mérito da composição é, portanto, todo dela).

domingo, junho 14, 2015

Amizade Estelar

" ─ Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho, podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos ─ e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido só um destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo ─ ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos ─ elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. ─ E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra."

(Nietzsche. A Gaia Ciência IV §279, p.189-190)



Não me lembro quando li pela primeira vez esse aforismo de A Gaia Ciência. Provavelmente foi quando comecei a estudar Nietzsche, a fim de desenvolver um projeto de iniciação científica (CNPq), na época de minha graduação (idos de 2000-2002). Há algum tempo, ao retomar minhas leituras de partes da obra deste autor perturbador, tropecei várias vezes neste belo e trágico aforismo, já tão lido, relido, trelido, pensado, sentido, interrogado e grifado. Pensei: por que ele me chama tanto a atenção? Por que ele me afeta tanto? Por que meu coração se ressente ao lê-lo? Well, não estabeleci nenhuma relação do que Nietzsche afirma nele com a pessoa para a qual ele destina este aforismo. Pois tal aforismo nunca fez propriamente parte dos temas que me propus a estudar. Minha interpretação sempre foi, num certo sentido, totalmente parcial e descontextualizada do restante de sua obra (se é que me permitem...). Sempre admirei o teor poético, imagético e passional (bem ao estilo amor-fati) do que Nietzsche escreve. Ao lê-lo, sentia em meu coração (e sinto sempre que o leio) uma dorzinha aguda e gelada. Pensava no valor da amizade e lembrava da minha amizade mais cara. Perguntava-me: será que será assim? E repetia a mim mesma, como quem torce fazendo figa: tomara que não, tomara que não! Quero continuar a crer em nossa amizade terrena, ainda que ela possa ser também estelar e celestial.

[Há uma ano e meio li a biografia de Lou Salomé e pensei se Nietzsche teria escrito esse aforismo pensando nela. Eu não havia feito ainda nenhuma pesquisa a respeito. Na época, não fui adiante com minha dúvida. Mas, lendo-o novamente esses dias, fiquei curiosa. E fui conferir. Descobri que Nietzsche escreveu-o de modo a deixar "claro que não poderia atender ao apelo" do grande compositor Richard Wagner "para resgatar uma amizade perdida." Ao menos é o que está dito na sinopse do livro Amizade Estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, de Rosa Maria Dias, que, aliás, ainda não li. Quem sabe um dia. Até lá... (ou talvez para sempre) mantenho minha leitura parcial, ainda que agora eu saiba que a relação de amizade que serviu de mote a este aforismo é outra].

quinta-feira, junho 11, 2015

Tudo flui...

Dia bom pra ficar em casa, pensando na vida, fazendo um monte de coisas e nada ao mesmo tempo. Estudar até que vai bem. Estuda-se um pouco, pensa-se muito, dileta-se demasiadamente, e a saudade se sente por todos os pelos e poros, e se ressente a cada gota de chuva do dia que cai e escorre...